Estamos há um ano sem beijos, abraços e apertos de mão. Quebrou-se no quadro afetivo, familiar e da amizade, o toque físico que nos permitia comunicar com a pele, o corpo, alguma mímica. Até o sorriso está coberto pela máscara. Temos barrados esses gestos que, para lá das palavras, transmitem poderosas mensagens silenciosas, ricas de calor humano. Receber amigos em casa ou encontrá-los num restaurante, ou num bar, ou numa sala de espetáculos, para conversar, festejar ou consolar, é um desejo que ainda segue no passado. Com esperança de que esse tempo feliz volte mais para diante neste ano, com toda a liberdade recuperada.

Pandemia significa que o vírus está por todo o lado. Tem-nos confrontado com uma ameaça ao mesmo tempo iminente e indeterminada. Não sabemos onde está a ameaça, sabemos que pode estar em toda a parte. E que é irresponsável não a levarmos a sério e não acatarmos as limitações, por muito duro que seja o custo.

Nestes últimos 12 meses, as coordenadas que costumavam organizar o nosso tempo ficaram alteradas. As horas e os dias e as semanas ficaram substituídos pelos decretos sobre o estado de calamidade ou de emergência.

O monstro entrou devagarinho. O primeiro contágio foi detetado em Portugal no dia 2 de março de 2020: um médico, com 60 anos, recém-regressado de dias de férias em Itália, o lugar ao tempo mais fértil da Europa para a epidemia Covid-19, então já em pandemia, com altíssima intensidade de propagação.

Os concelhos de Lousada e de Felgueiras, com indústria que contacta frequentemente com Itália, foram primeiros epicentros do contágio em Portugal.

Duas semanas depois, a 16 de março, aconteceu a primeira morte conhecida por Covid em Portugal: Mário Veríssimo, 80 anos, antigo massagista do Estrela da Amadora. Estava internado na UCI do Hospital de Santa Maria e padecia por outras complicações de saúde.

Desde então, nestes 12 meses, a Covid levou a vida de mais de 16 mil pessoas em Portugal e de mais de dois milhões e meio no mundo. Mais de 100 milhões de pessoas foram contagiadas. Muitas sofreram de modo terrível.

Fomos apanhados de surpresa, há um ano. É uma falha de todos termo-nos descuidado ao ponto de sermos apanhados totalmente desprevenidos. Que faltasse a quantidade necessária de aparelhos sofisticados, até se compreende. Mas é preciso meditarmos sobre o que nos levou a nem sequer termos acautelada a reserva de máscaras de proteção para emergência. Foi a Covid-19, poderia ter sido (ameaça que segue por aí) de origem climática.

Epidemias, pandemias, endemias, a espécie humana viveu sempre com flagelos que precipitam a morte e que modificam o modo de vida. A Covid-19 é apenas mais uma dessas tormentas. Houve a peste, a cólera, o tifo, a meningite, a varíola, a tuberculose, a ébola, a SIDA e tantos males mais que abalaram a humanidade. 

A Ciência, nos últimos 120 anos, conseguiu conter, controlar e até eliminar muitas calamidades, ao inventar vacinas e medicamentos revolucionários. Imagina-se o que teria sido a devastação se a penicilina não tivesse sido inventada – foi extraordinário serviço ao mundo prestado por Alexandre Fleming, em 1928.

Nestes últimos 100 anos, a humanidade conseguiu superar uma enorme variedade de infeções como as que ao longo dos milénios dizimaram populações e economias.

Os livros de história da Medicina contam-nos como a peste antonina (165-180) devastou o Império Romano no século II da nossa era e levou à morte de 10 a 20 milhões de pessoas.

As grandes doenças desse tempo antigo tomaram o nome do imperador da época, assim aconteceu com a bubónica seguinte, a praga de Justiniano, que deflagrou em 542, muito intensa por uma década, mas que permaneceu por dois séculos e que terá precipitado a morte de 50 a talvez 100 milhões de pessoas em volta do Mediterrâneo.

Todos já ouvimos referências ao grande flagelo da peste negra, surgida em 1347, com efeitos apocalípticos. Estima-se que, primeiro, tenha levado a vida de uns 40 milhões de pessoas na Europa e que depois, ao expandir-se pelo mundo tenha provocado a morte de 100 a 150 milhões de pessoas.

Ninguém sabia com exatidão de onde vinha essa peste nem como a curar. Os métodos de luta contra estas doenças foram rudimentares: as incisões para tentar limpar a suposta zona do corpo infetada, unguentos diversos, cataplasmas com substâncias julgadas curativas, fumigações, recurso a talismãs e, quase sempre, a esperança de milagre puxado por orações.

Ao mesmo tempo, instalaram-se as chamadas medidas de polícia: Veneza, Milão, Ragusa e Marselha montaram barricadas com a intenção de assim não deixarem entrar a peste de 1347. São desse tempo as primeiras quarentenas conhecidas.

As medidas de isolamento social propagaram-se a seguir pela Europa. Era a resposta à impotência da Medicina. Foi preciso chegar ao século XVIII para que uma doença infecciosa, a varíola, fosse dominada por um procedimento clínico, a inoculação.

Em 1796, surgiu o conceito de vacina: prevenir para evitar que epidemias continuassem a dizimar a espécie humana. Era preciso que elas fossem conseguidas a tempo. Foi o que falhou em 1918 e provocou um cataclismo.

Os espanhóis não se livram de estarem associados à maior mortandade do século XX, a gripe espanhola. Matou 50 milhões de pessoas, cinco vezes mais do que o pesadelo da I Grande Guerra, que acabou precisamente nesse ano.

Vários estudos científicos sugerem que a origem da gripe espanhola nem tivesse estado em Espanha. Os registos dizem que o primeiro caso foi identificado, em 4 de março de 1918, num acampamento militar no Kansas (EUA) e envolveu um combatente regressado da guerra no palco europeu. Dois meses depois, em maio, disparou em Madrid um surto com grande importância, tanto pela grande percentagem de população infetada, como pela alta letalidade. Madrid foi foco principal desta primeira vaga.

Estão reportadas três vagas da pandemia, entre maio de 1918 e junho de 1919, com grau de gravidade muito ligado a fatores socioeconómicos, com populações mais pobres a ficarem dizimadas. No entanto, esta gripe também desprezou muros de palácios e apanhou Afonso XIII, trisavô do atual rei Filipe.

Há relato de terem sido infetadas 500 milhões de pessoas pelo mundo, mais de um quarto da espécie humana naquele tempo.

Essa pandemia de gripe conhecida como “a espanhola”, abriu um ciclo que se repetiu, embora com impacto menor, em 1957 e em 1968, com outras epidemias mundiais de gripe. Essa sequência (1918, 1957, 1968), pôs os epidemiologistas em alerta, perante o temor de que cada dia que passa seja um dia a menos para novo ataque do vírus. Mas as condições sanitárias evoluíram muito e neutralizaram grande parte da ameaça contida no determinismo estatístico. Mas têm havido sustos, como o trazido pelo vírus H5N1, da gripe das aves. As ameaças que pululam remetem-nos para a necessidade de prevenção com as vacinas antigripe.

A “espanhola” de 1918 introduziu as políticas sanitárias globais, com impacto sem precedentes. Foram desenvolvidas no final do século XX com o enorme impacto da SIDA.

A atual pandemia SARS-CoV2 fez superar, como sabemos, toda a mobilização alguma vez antes conseguida para dominar um vírus.

Na Idade Média, nem os mais sábios alguma vez descobriram o que causou a peste negra. Agora, os cientistas conseguiram, em escassas semanas, identificar o coronavírus, sequenciar o genoma e desenvolver um teste fiável para deteção de pessoas infetadas. Em pouco mais de meio ano começaram a ser testadas várias vacinas.

Se a cooperação mundial se mantiver, alargada a todas as frentes, será um impulso para o mundo. A União Europeia, forjada em crises, já mostrou ser uma Europa solidária da saúde, ao tomar o encargo de repartir equitativamente as vacinas necessárias para cuidar todas as pessoas dos 27 países membros. Solidariamente, também promove a vacinação de pessoas em regiões mais pobres pelo mundo. A iniciativa de uma espécie de passaporte sanitário é uma medida de conforto ao regresso da confiança. A pandemia também levou a União Europeia a quebrar velhos tabus e a assumir em conjunto um plano de reconstrução que introduz modelos de desenvolvimento mais verdes e digitais.

A história mostra-nos que das tragédias podem surgir saltos de progresso. Após a praga de Justiniano, despontou o império Carolíngio, esboço de Europa unida. A seguir à peste negra do século XIV surgiu o impulso que levou ao Renascimento. Há um século, depois da Grande Guerra e da gripe espanhola, o mundo viveu os criativos – mas, é facto, perigosos – loucos anos 20.

Assim, que desta pandemia possa emergir um mundo melhor, ainda que por agora muita gente esteja furiosa – talvez para não deixar instalar-se a tristeza e a apatia.

Quando e como vamos sair desta pandemia? O verão passado coincidiu com a ilusão de retorno à vida e daí resultou a segunda vaga do vírus, que trouxe muito maior propagação da infeção e muito mais morte. A Covid-19 revelou-se armada e obstinada para continuar a desafiar os esforços sanitários e terapêuticos. Mas o valente pessoal médico e de enfermagem não cedeu, antes lutou ainda mais, e está a conseguir.

Os médicos intensivistas dos principais hospitais, gente como João Gouveia e Roberto Roncon; oa peritos que nos explicam a pandemia como o infecciologista Silva Graça, o virologista Pedro Simas ou o investigador em Saúde Internacional Tiago Correia passaram a fazer parte do nosso dia-a-dia. Faz-nos bem escutá-los, porque podemos entender sem especulações ou distorções.

Gente assim tem sido bastião a devolver-nos confiança, perante o massacre da cobertura monotemática dos males da covid, com notícias e reportagens que na prática são a repetição do visto na véspera, na semana anterior e nos meses passados. É uma prática que quanto mais drama nos quis mostrar e mais emoção explorar, menos nos deixou entender o conjunto da realidade.

Graça Freitas e Marta Temido também passaram a estar quase todos os dias em nossa casa. Há quem, por entre o desespero pelas consequências da pandemia procure todo o tipo de argumentos para as criticar – por mim, reconhecendo que toda a gente cometeu erros, prefiro agradecer-lhes a dedicação, obviamente total, à tarefa. A elas como a toda a gente a todos os níveis das estruturas de apoio a esta devastadora emergência Covid-19.

Muita gente perdeu a estabilidade social e económica, também o trabalho. É uma calamidade pessoal que para muitos é vivida como noção de abandono por parte das instituições do Estado.

Compete ao Estado, cabe-nos também a todos, escutar a palavra de quem vive com a angústia do futuro estilhaçado.

Há que tratar de evitar o nefasto alibi da vitimização dos jovens como “geração Covid”. É preciso proporcionar aos jovens condições para recuperação do que ficou para trás.

O comércio, a restauração, todo o turismo, toda a cultura e um sem fim de setores precisam de fôlego. Temos de saber ser solidários.

A vacinação em curso traz-nos grande confiança de que vamos poder chegar, daqui a alguns meses, ao fim deste túnel.  Com tanta gente em ânsia de ar novo e de viajar, o turismo vai certamente sentir rapidíssima recuperação. Em outros setores, não será tanto assim. Muito pequeno comércio terá sucumbido.

Cabe-nos tratar  o necessário para que o mundo a que havemos de regressar seja melhor, com mais qualidade.

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