Lula recebeu 60,3 milhões de votos. Bolsonaro recolheu 58,2 milhões. O vencedor tem uma vantagem superior a dois milhões de votos. Mas há multidões nas ruas e estradas do Brasil que tentam sabotar as eleições e que, mergulhadas no sistema de realidade alternativa e de ódio, recusam o resultado.
Todas as elucubrações servem para que a realidade alternativa seja propagada. Bolsonaro passou os últimos meses a clamar que só poderia ser derrotado se houvesse fraude eleitoral.
Como perdeu, a “família” de apoiantes dele (Bolsonaro e a mulher cultivaram, designadamente nos altares evangélicos, essa ideia de pertença à mesma família) está a assumir a sua teoria: se está a ser dado como perdedor, é porque houve fraude.
Alguns, provavelmente reconhecendo a evidência de que o processo eleitoral foi correto, recorrem a um outro argumento: “o Brasil não pode ter um presidente que foi presidiário”. São, certamente, pessoas que nunca cuidaram de apurar com desejo de rigor as circunstâncias que levaram Lula a 580 dias de reclusão. Também são pessoas que, com o mesmo raciocínio, recusariam que Mandela fosse presidente da África do Sul após 27 anos na prisão.
Bolsonaro, ao longo dos quatro anos de mandato, abusou da postura de presidente provocador, grosseiro, manipulador e mentiroso. Sabia-se que é uma criatura mal-educada, agora confirmamos que também é um mau perdedor. Como se lê no Estadão “o silêncio de Bolsonaro vira sinal verde para a mobilização de extremistas”. É um comportamento (já tinha sido assim com Trump nos EUA) que quebra completamente a liturgia do cargo.
A realidade alternativa (“Bolsonaro só pode ganhar e continuar presidente”) amplificada por vasto aparelho de desinformação leva a que nestas horas seguintes ao anúncio do resultado da eleição haja bloqueios em 271 estradas principais de 22 estados. São bloqueios por gente que despreza a democracia quando esta não lhe satisfaz os desejos.
O que está a acontecer no Brasil pode atear uma fogueira com magnitude imprevisível. É uma repetição, com desenvolvimento, do que Trump iniciou nos Estados Unidos. Com os mesmos ingredientes: desinformação em doses altíssimas, polarização extremada, peso de alguns grupos evangélicos, culto do ódio.
Esta realidade alternativa coloca um desafio principal à democracia. Requer cuidado urgente, para evitar que se propague.
Como vai ser a tarefa de Lula?
Lula liderou uma era dourada de crescimento nos dois mandatos (2003/2010) em que exerceu a presidência do Brasil. Ele pôs-se a jeito para ser muito criticado, mas possibilitou que o Brasil progredisse com ambiciosos programas sociais e com forte impulso à economia brasileira. Lula deixou que o PT explorasse a corrupção de gente que manobrou para obter vantagens pessoais.
Em 2018, os eleitores brasileiros deram, mais que um sim a Bolsonaro, um não ao PT. Lula percebeu isso e foi agora eleito porque soube impor alguma distância em relação ao PT.
Lula sabe (disse-o a Felipe Gonzalez) que o PT precisa de ser refundado e livrar-se da corrupção e de outros pecados da velha política.
Vamos ver que Lula vai formar um governo plural, mais ao centro do que à esquerda, e com forte presença feminina.
É precisa muita arte política para a tarefa de recoser o possível neste Brasil em que a coesão da sociedade está rasgada. Mas há, seguramente, muita gente que votou Bolsonaro e que espera que Lula seja capaz de dissipar o ambiente irrespirável de ódio, de violência e de medo que até partiu famílias.
Marcelo e Costa fizeram muito bem ao felicitar Lupa pela eleição logo nos minutos seguintes ao anúncio do resultado. Tal como Biden e a maioria dos líderes europeus. Impuseram a força do reconhecimento internacional para secar à nascença qualquer ousadia golpista. Neste caso, Putin e Xi Jinping também estiveram do lado certo ao saudarem Lula e manifestar-lhe desejo de cooperação.
Bolsonaro está sem espaço para manobras. É facto que ele é a surpresa desta eleição, ao conseguir uma votação acima das previsões. Ao ficar em silêncio depois da eleição, deixou-se ficar cercado, acompanhado pelos que com ele mergulham na realidade alternativa da desinformação. Os aliados de peso já estão a articular o futuro com a equipa do presidente eleito, Lula.
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