Numa manifestação em Lisboa contra a discriminação racial e contra abusos nesse contexto praticados por polícias, um dos participantes empunhava um cartaz com a miserável inscrição “Polícia bom é polícia morto”. Quem quer dar nas vistas ao levantar esta frase absurda revela-se criatura miserável cuja mensagem só merece repúdio.
Dias depois, algum ou alguns ignorantes picharam a estátua do Padre António Vieira no coração de Lisboa. Que representatividade tem esta gente?
As imagens disponíveis sobre o rapaz do cartaz levam a crer que não havia qualquer grupo a compartilhar com ele a estupidez. Os organizadores da manifestação declararam logo rejeitar e condenar o conteúdo do cartaz.
Obviamente, a imagem daquele cartaz faz parte da notícia da manifestação. Mas não faz sentido que seja tratada como o assunto principal da manifestação.
Há o costume em alguns canais de televisão de repetir exaustivamente imagens que chocam. Sem surpresa, isso aconteceu com o condenável cartaz daquele rapaz com cabeça avariada, pelo menos naquela tarde. Mas, com esse foco numa personagem, ficou secundário o tratamento e a discussão informada, sensata, sobre o que está em causa na questão racial que gerou a manifestação. É uma questão que existe como problema, por mais que muitos recusem aceitá-lo.
O caminho para evitar inflamação maior, que ninguém sensato deseja, é o de tratar a questão, o que passa por discuti-la, com espírito aberto, sério e intelectualmente coerente, com todas as partes. Sem exploração sensacionalista. Os media têm a responsabilidade de enquadrar os factos com a dimensão que têm.
Ainda não tinha passado uma semana, e o que entrou, naturalmente, nas notícias e no debate foi a pichagem da estátua de Vieira.
A informação no pedestal daquela estátua, que não parece com estética à altura da grandeza de Vieira, esclarece que aquele homem foi “defensor dos índios”. Nem deveria ser preciso acrescentar, por ser missão da escola mostrar-nos a todos, como a escrita do padre António Vieira (89 anos de vida, entre 1608 e 1697) é das mais ricas e luminosas da língua portuguesa.
Quem fez aquelas pobres pichagens, obviamente não viu, nem na televisão, Palavra e Utopia, o filme que no ano 2000 Manoel de Oliveira dedicou a António Vieira, com foco na intervenção dele como missionário, ativo na “defesa dos índios e dos negros escravizados no Brasil Colonial”, como analisa a brasileira Edimara Lisboa, investigadora no Grupo de Pesquisa Colonialismo e Pós-Colonialismo em Português, da Universidade de São Paulo.
Obviamente, a cabeça onde germinou o ímpeto para aquelas pichagens não tem alguma ideia sobre o congresso internacional “Vieira – O Tempo e os seus Hemisférios”, que decorreu em Lisboa em 2008, nem alguma vez teve qualquer ponta de curiosidade para saber o que foi dito por gente que o estuda, como António Borges Coelho, Ana Hatherly, Maria Helena Carvalho dos Santos, José Eduardo Franco, Rui Zink e tantos outros, e que está escrito nas 631 páginas das Actas desse congresso.
Vale termos em conta o tempo de Vieira, conforme ficou enquadrado pelo saber do historiador António Borges Coelho: “A vida do padre António Vieira cobre todo um século, o século dos génios e da Física; das guerras de religião, pelos direitos de sucessão, pelos direitos históricos; das guerras do Turco, do Veneziano, do Tártaro, do Polaco. O político sobrepõe-se ao religioso. A teoria e a prática do método experimental fazem o seu caminho. Newton e Leibniz descobrem o cálculo infinitesimal, e Espinosa ensina-nos o modo de ler. As ideias de tolerância e da liberdade de consciência emergem no horizonte. Nas palavras do padre António Vieira: de Lisboa partiam por terra todos os sábados os correios com “grande cópia de mentiras por todo o Reino”, mas Portugal expulsava os holandeses de Pernambuco, avançava na colonização do Maranhão e sustinha no Ameixial e em Montes Claros as armas espanholas. Os conflitos envolviam o militar, o ideológico, o comercial e o político. Havia fome de capital, e nos países ibéricos e nas suas colónias fome de negros e de índios para as plantações do açúcar e do tabaco”.
No mesmo congresso, o catedrático Manuel Augusto Rodrigues, hebraísta e arabista, explicou que o padre António Vieira foi “um destacado defensor dos direitos dos Judeus e dos cristãos-novos”. O académico Artur Anselmo acrescentou: “Para o Padre António Vieira, a questão dos Judeus assume grande importância, pelos quais toma partido, em oposição ao Santo Ofício. Com igual empenho diplomático, procura evangelizar os Índios do Maranhão e melhorar as suas condições de vida, dedicando ainda os últimos anos da sua vida à defesa do povo índio e à redacção da História do Futuro, cuja obra não chega a concluir”.
Vieira, sendo missionário, dedicou-se a converter ao catolicismo os outros que encontrou no sertão brasileiro, para onde viajou, com travessia do Atlântico, por seis vezes. Mas sempre com a preocupação de compreender e proteger esse outro.
Há que reconhecer em Vieira uma questão que, com a perspetiva de agora, mais de três séculos depois, perturba: ele combateu a escravidão dos índios mas deixou andar a dos negros. A investigadora Maria do Rosário Pimentel explica-nos a visão de teólogos e juristas daquele tempo, século XVII, sobre a escravidão: “O próprio tráfico, feito legalmente, sem ser com indivíduos fraudulentamente escravizados, era considerado, pela maior parte dos teólogos, como um mal menor dado que permitia a evangelização e a perseverança na fé cristã”. O mal menor de então é hoje um mal maior.
Vieira, figura cimeira na cultura e nas letras portuguesas, foi um humanista mas, é um facto, não só nunca condenou como, pelo menos indiretamente, apadrinhou a violência colonialista da ação evangelizadora que incluiu a escravatura de povos africanos. A colonização portuguesa dizimou muito das tribos ameríndias. Esse é um nosso pecado à luz da realidade de hoje, que não é a do século XVII.
Mas o padre António Vieira, com a frequente inspiração da argumentação aristotélica, criticou as condições do trabalho escravo, num célebre sermão pregado, para deleite de quem o escutou, na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Pelourinho, ainda hoje importante símbolo da existência negra, na Bahia. Mensagem que reforçou, com recurso à junção de razão e imaginação na forma de metáfora, ao comparar o sofrimento dos escravos com o martírio imposto a Cristo pelos fariseus, como está escrito no Sermão XIV do volume XI dos Sermões: “Cristo despido, e vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo”. Através da construção retórica, Vieira busca o envolvimento e a adesão dos que o escutam ao comparar os escravos com Cristo, por mais que as realidades sejam diferentes.
No sermão XX, Vieira confronta os senhores (os donos) com os escravos, “De sorte que os ricos e os senhores têm nesta vida o seu paraíso, e os Lázaros e os escravos o seu purgatório”, e reconhece que a submissão dos escravos/negros apenas acontece por ser imposta pela força das armas: “Entre os homens dominarem os Brancos aos Pretos é força, e não razão, ou natureza”.
Vieira não se bateu pela libertação dos escravos, mas não é um explorador da escravatura, o que lhe valeu muita hostilidade de portugueses poderosos.
Por tudo isto e muito mais é uma tristeza que Vieira tenha sido o escolhido agora para alvo de pichagens com intuito antirracista. Mais valia que quem está nessa triste raiva se dedicasse a ler alguns dos sermões de António Vieira.
O argumento de que o mal está em a estátua em Lisboa corresponder a uma homenagem do nosso tempo também não tem base: a figura e a obra de António Vieira, embora tocada por abusos que assim não eram entendidos nos anos seiscentos em que viveu, colocam-no no topo dos portugueses de todos os tempos, por muito mais do que o que Fernando Pessoa definiu como “Imperador da Língua Portuguesa”.
Em vez de atiçar ódios, quem é pela boa convivência civilizada tem o dever de contribuir para desminar o terreno da intriga assente na distorção da realidade. Em vez de pretender abater estátuas, há que as contextualizar. É sábia a proposta de Banksy para a estátua em Bristol do poderoso mercador de escravos Edward Colston: não eliminem a estátua do esclavagista Colston, vão buscá-la ao fim do rio para onde a atiraram há uma semana, mantenham-na viva, recoloquem-na no lugar onde estava, mas envolvida pela denúncia da brutal violência que aquele mercador de escravos do século XVII praticou. O que Banksy propõe é que, em torno da estátua que evoca um lado desgraçado de um passado propagandeado como glorioso, sejam levantadas estátuas que representem e imortalizem os que agora abateram aquela estátua.
É, afinal, o que já foi feito com a belíssima cúpula de vidro e aço que envolve em transparência o Reichstag de Berlim. Permanece a memória daquela terrível noite de 27 de fevereiro de 1933 em que as chamas devoraram o edifício do parlamento alemão, ocasião aproveitada por Hitler, recém-chegado ao poder, para concretizar um golpe de morte na democracia alemã, com o Fuhrer a invocar as chamas como sinal divino para a total tomada do poder pelos nazis, com o fim das liberdades. Depois, em 2004, o arquiteto Norman Foster, ao coroar o edifício com aquela cúpula transparente por onde os cidadãos podem caminhar, preservou a memória histórica, envolvendo-a com uma mensagem essencial: os cidadãos, agora, ao contrário do que acontecia no tempo nazi, estão acima do plano do Governo.
A ter em conta:
Avança nos EUA a reforma do sistema de polícia.
A transformação da Globonews no Brasil.
As capas de revista escolhidas nesta semana: esta, esta e esta. Também o que esta nos traz.
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