Sendo verdade que todos os cidadãos são iguais perante a lei, é igualmente verdade que existe uma distância considerável entre o dever ser (o que prescreve a lei) e o ser (a realidade).
Considerando as desigualdades sociais que distanciam as pessoas em tantos aspectos da vida, sabemos que a capacidade económico-financeira de cada um é capaz de conferir maior liberdade e também maior protecção – o que é particularmente impressivo no que respeita ao acesso à justiça, designadamente pelos serviços de advocacia que cada cidadão pode pagar.
Um bom advogado – e sobretudo um advogado empenhado, focado e com tempo para estudar e trabalhar – pode trazer benefícios profundos para a vida do seu cliente, sejam preventivos ou restaurativos.
Por outro lado, com advogados mal remunerados e sem tempo para se dedicarem às causas que trabalham, fica muito limitada possibilidade de concretização plena dos direitos que a lei confere.
Somos iguais perante a lei, mas desiguais no acesso à justiça.
O sector da advocacia tem sofrido enormes transformações nas últimas décadas, tendo passado da predominância da prática individual para o rápido desenvolvimento de sociedades de advogados de grande e média dimensão.
Se antigamente as condições de remuneração de um bom advogado não se afastavam muito das de um magistrado (juiz ou procurador), a realidade hoje é muito distinta: a carreira de advocacia, quando exercida nas estruturas mais sofisticadas e especializadas na assessoria dos temas mais complexos e a clientes com elevado volume de negócio, não compete minimamente com a carreira da magistratura – nem sequer nos primeiros anos de estágio.
O que temos vindo a observar ao longo dos últimos anos é um açambarcamento dos melhores alunos de Direito por parte das sociedades de advogados, que podem pagar muito mais do que qualquer outra profissão forense.
Existirão excepções e é evidente que existem excelentes profissionais na magistratura e na advocacia fora das sociedades de advogados, mas não podemos simplesmente ignorar esta tendência, que representa uma ameaça à salubridade da nossa democracia e Estado de Direito.
Agravando este problema, está o facto de o sistema de apoio judiciário, coordenado entre a Ordem dos Advogados e a Segurança Social, ser ignorado pelos sucessivos governos: as tabelas de remuneração dos advogados que se inscrevem para prestar serviços a quem está em situação comprovada de insuficiência económica foram actualizadas pela última vez em 2004.
Não se compreende como é que a actualização da tabela de remunerações de advogados inscritos no apoio judiciário não é a primeira prioridade de qualquer Bastonário da Ordem dos Advogados, de qualquer Ministra da Justiça e, considerando que 20% dos deputados na Assembleia da República são advogados, também não se percebe como é que este tema é deixado ao abandono há quase duas décadas.
O acesso à justiça é um tema que precisa de ser cuidado continuamente: o descrédito da população na Justiça é uma das grandes ameaças à democracia e só com advogados bem remunerados e com tempo para trabalhar nas causas da maioria das pessoas – e não apenas nas causas de quem detém a maioria do capital – é possível começar a restaurar essa confiança.
A advocacia é uma profissão, não é um hobby nem é caridade. Pode ser exercida, pontualmente, a título voluntário ou contra o pagamento de uma quantia simbólica, mas é impossível sustentar uma prática nesses moldes.
Não existindo incentivos económicos a prestar serviços a quem não pode pagar, os advogados desviam as suas atenções para quem lhes paga (naturalmente) e, em decorrência da total omissão do Estado neste tema, ficam as pessoas mais desfavorecidas, como sempre, desprotegidas e menos livres.
Para ajudar a solucionar este problema, restaurando a prática da função social da advocacia, vislumbram-se duas grandes propostas:
A primeira: a criação de uma carreira pública, paralela à magistratura, mas sob a tutela da Ordem dos Advogados, de defensoria pública, à semelhança do que existe no Brasil, com bastante sucesso.
A tarefa de assegurar o acesso ao direito e aos tribunais é primordialmente do Estado e os advogados não são acessórios para a administração da justiça – são fundamentais para trazer à justiça causas que, de outro modo, jamais veriam a luz do dia, pelo lado activo, e para assegurar a defesa de todos os direitos que a lei prescreve a quem é réu ou arguido, pelo lado passivo.
Faz, por isso, todo o sentido, que o Estado crie condições para uma carreira de advocacia ao serviço de quem mais precisa, sendo remunerado de forma condigna e que atraia profissionais capazes e motivados, e não só gente voluntariosa.
A segunda: a permissão para que sejam criadas ONGs de advogados sem fins lucrativos, que, dependendo de doações, bolsas, fundos públicos ou privados, sejam estruturas de advogados, também remunerados, com poder de escolher, com total independência e autonomia, os temas conexos a direitos humanos que queiram trabalhar em prol de quem não pode pagar.
Cabe, aqui, uma declaração de interesses: eu própria tenho um plano para criar, a breve trecho, uma estrutura que junte advogados investidos em trabalhar no sentido do activismo judiciário – isto é, assumir o patrocínio judiciário de quem está em situações de vulnerabilidade, em causas relacionadas com problemas estruturantes da sociedade portuguesa, assumindo, por isso, contornos de interesse público.
Espero que este sonho se concretize num futuro próximo.
O acesso à justiça, ignorado que está, merece lugar de destaque em matéria de política legislativa.
Ao mesmo tempo, a função social da advocacia precisa de ser restaurada, com urgência, se queremos maior igualdade no acesso à justiça e a consequente reabilitação da confiança na Justiça por parte dos portugueses.
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