Ao longo das eleições, as sondagens indicavam um empate entre Donald Trump e Kamala Harris ou, pelo menos, a vitória de um deles por uma curta margem. Em vez disso, o milionário trapaceiro e o movimento MAGA que tomou conta do Partido Republicano obtiveram uma vantagem nunca vista desde Ronald Reagan (2017-19): a Presidência e a maioria no Senado e na Câmara dos Representantes, a adicionar ao domínio do Supremo Tribunal, desde 2020 - Tribunal esse que, numa decisão escandalosa em Julho deste ano concedeu ao Presidente imunidade absoluta pelos seus atos. 

Ou seja, o 47º Presidente dos Estados Unidos tem o mesmo poder de um rei numa monarquia absoluta - exatamente o oposto do que os autores da Constituição de 1789 quiseram evitar. Além desse poder praticamente tirânico, acontece que o Presidente é o indivíduo menos apropriado para o cargo: sociopata, narciso mórbido, racista, sexista, amoral, vingativo, aldrabão e violento. (Estes adjetivos não são a minha opinião; baseiam-se em factos e afirmações públicas e gravadas.) A única qualidade que se lhe pode apontar é o carisma, que nem sequer é uma qualidade em si.

Como é que isto foi possível, e que resultados terá?

Quanto à concretização da possibilidade: as preocupações dos eleitores são, em primeiro lugar, económicas sem preocupações políticas ou morais; o custo de vida, a inflação e o desemprego. Embora os números fossem bons durante os anos Biden, os democratas não conseguiram mostrar esses sucessos aos eleitores. Também as várias crises e a mortandade (1,300.000 mortos) provocadas pela pandemia de covid-19 durante a administração Trump (que aconselhou as pessoas a tomar lixívia) ficaram coladas ao governo Biden.

Em segundo lugar, a população, tanto os rurais como os operários industriais (e isto é um fenómeno mundial) tem a sensação de que a sua voz não é ouvida pelas elites políticas no Poder, identificadas com os Democratas. Sentem-se desprezadas e sem voz em Washington. Estes eleitores consideram que as afirmações apocalípticas e as ameaças inacreditáveis de Trump são espetáculo, pirotecnia política, e não lhes deram grande importância O que lhes interessa é a sua vida diária, as suas dificuldades; se Trump disse que ia prender os seus inimigos, fuzilar os recalcitrantes e despedir os infiéis na administração, isso não lhes diz respeito. Identificaram os seus problemas com Biden e, por extensão, com Kamala, que afinal era a sua vice-presidente. A continuação de um governo democrata significava a continuação do status-quo, enquanto Trump prometia uma mudança. 

A culpabilização dos imigrantes ilegais, que tiram trabalho aos americanos brancos e 'pretos' - sim, Trump disse especificamente “aos empregos de negro”! - agrada aos imigrantes legais, um fenómeno também mundial; quem já conseguiu estabelecer-se não quer que venham novos concorrentes. E os negros, fartos de serem explorados, com menos oportunidades, também esperam que uma mudança política lhes traga melhor futuro. Todos os grupos de estatuto inferior que os democratas esperavam conquistar, apostaram que só tinham a ganhar com uma mudança.

Depois, a raiva contra os “outros”; num país de grandes desigualdades, os desfavorecidos são os “nós” e os favorecidos os “outros”. Trump jogou nesta divisão. Nós vamos deportar, despedir, prender os outros. Nós vamos finalmente ocupar o lugar a que merecemos e ver-nos livres da escumalha que nos tira os nossos direitos naturais.

Os intelectuais, os jornalistas, analistas e doutores, os que vêem para lá destas demagogias, andaram horrorizados e pensaram que as massas também perceberiam. Daí que quem lesse com olhos de ler o que se publica e seguisse os noticiários e os brilhantes humoristas liberais - Jon Stewart, Steven Colbert, John Oliver, Seth Meyers - não tivesse dúvidas que elogiar Putin, Kim Jong Um e Victor Orban, ameaçar Liz Cheney com um pelotão de fuzilamento, despedir os operadores judiciais, limpar o “deep state” dos funcionários não-alinhados e extinguir as agências governamentais que tratam do ambiente e da saúde, não poderia de maneira nenhuma tolerar Trump. Kamala, tão sorridente, simpática e conciliadora, defensora de subsídios de saúde e habitação, pacificadora do “nós” e “eles”, tocaria no coração dos descamizados, mulheres à beira de perderem direitos básicos (o aborto!) e minorias desprezadas.

Ledo engano. As massas vêem a Fox News, Tucker Carlson, as rádios supremacistas brancas e todos os que falam a mesma linguagem de ódio ao “establishment” e uma América Outra Vez Grande.

Trump apostou nos instintos básicos da raiva, do egoísmo, da destruição dos “inimigos do povo”.

Só podia ganhar, numa população com 63,3” de semi-iletrados.

Quanto aos resultados da vitória de Donald Trump, que começará a governar em 20 de Janeiro de 2025: estão anunciados abertamente e descritos em pormenor num programa chamado “Projeto 2025” elaborado por dezenas de reacionários, ultra-conservadores e cristãos iluminados pela verdadeira fé. Dentro do país, uma limpeza geral na administração, instrumentalização dos órgãos de segurança - FBI, Guarda Nacional, polícias - demissão dos agentes judiciais hostis (juízes e procuradores) e deportação de 12 milhões de imigrantes ilegais. Perdão presidencial de todos os condenados por terem manobrado ilicitamente a favor do Rei, em especial os amotinados que atacaram o Capitólio em 6 de Janeiro de 2021. Execução imediata de todos os condenados à morte pendentes de revisão. Liberdade para as forças políciais atirar a matar supostos perturbadores da ordem. Pena de morte para traficantes. Proibição de todos os livros que defendem ideias nefastas, como a lista LGBT+, educação sexual e ideias “anti-americanas”, como os regulamentos ambientais e de segurança sanitária. A lista é enorme, o “Projeto 2025 tem 800 páginas.

Quanto à política internacional: abandono ou esvaziamento da NATO (a Europa e a Ucrânia que se lixem) e dos acordos de defesa com Taiwan e a Coreia do Sul. Tarifas brutais das importações chinesas e castigadoras das importações europeias (embora os especialistas financeiros afirmem que representará um grande aumento do custo de vida da América). Apoio incondicional a Israel e tratamento favorável aos regimes “democráticos Iliberais”, fim dos programas humanitários, aos “países de merda” (“Shithole Countries). Outras medidas isolacionistas que impeçam a volta dos Estados Unidos ao seu papel de garante internacional.

Está tudo previsto e escrito em letra de forma. Muitas consequências são previsíveis, outras imprevisíveis mas uma coisa é certa: a ordem mundial em que vivemos desde 1945 acabou. Chegou o maravilhoso novo mundo. Quem cá estiver, vai sentir na pele.