Estávamos longe de imaginar quantas famílias seriam separadas. Quantos civis morreriam. Quantas crianças ficariam órfãs ou longe dos seus pais. Os números não param de crescer. Desconhecíamos o rasto de destruição que a invasão russa deixaria na Ucrânia. Não fazíamos ideia de como esta guerra mudaria a resposta migratória europeia, revelando que, para os migrantes e refugiados de anteriores conflitos, a tão apelidada “crise de refugiados” sempre foi, afinal, uma crise de solidariedade.
Não sabíamos, nem sabemos hoje, quando termina o conflito. O que sabemos é que o seu término é mais urgente a cada dia.
As crianças fazem parte dos grupos mais vulneráveis em qualquer conflito. Na Ucrânia, os seus direitos humanos têm sido repetidamente violados e a segurança é coisa de outrora. Os ataques indiscriminados das forças russas atingem infraestruturas civis e as escolas, maternidades ou jardins de infância não lhes escapam. Um ano depois, dos mais de 8.000 civis mortos, pelo menos 487 foram crianças. Estes números podem pecar por defeito. Nas cidades ocupadas é difícil saber ao certo o que aconteceu.
Para as gerações mais novas que permanecem no país, a agressão russa compromete-lhes o direito à educação. Os constantes cortes de energia, fruto dos bombardeamentos russos às principais centrais energéticas da Ucrânia, dificultam as aulas à distância, impedindo o progresso académico das crianças e jovens. Por outro lado, num ano em que a rotina escolar foi relegada para segundo plano, as crianças tiveram de adquirir novos conhecimentos para se protegerem durante a guerra.
Aprenderam que após o soar das sirenes dos ataques aéreos têm dez minutos para chegarem ao abrigo mais próximo porque a partir desse momento, cada segundo na rua é de acrescido risco de vida. Começaram a evitar parques e florestas, tantos agora transformados em campos minados. Perceberam a importância de, durante um ataque, ter pelo menos duas paredes entre si e o perigo, já que é provável que a primeira desabe e a segunda os proteja de fragmentos e destroços. Há relatos de sobreviventes, como a estudante Alina da cidade de Chernihiv, que sentiu o edifício tremer tanto que pensou que as paredes tivessem desmoronado. Ouviu as janelas partir e deve a sua sobrevivência e a da avó ao corredor, onde ambas permaneceram deitadas. Além dos abrigos, bunkers e caves, os corredores e casas de banho têm sido locais de relativa proteção para os ucranianos.
Para as crianças que procuram fugir da guerra, somam-se os desafios. As autoridades russas deportaram e transferiram, à força, civis de áreas ocupadas da Ucrânia para a Rússia ou para territórios ocupados pelas suas forças, ações que constituem crimes de guerra e que podem equivaler a crimes contra a humanidade. Em processos de rastreio abusivos, conhecidos como “filtragem”, existem casos de crianças separadas das suas famílias pelas forças russas. Num conflito, nenhuma parte deve retirar crianças dos seus pais, muito menos levá-las do Estado de onde são nacionais para um país estrangeiro sem o consentimento escrito, expresso e livre dos pais, dos tutores legais ou das pessoas responsáveis pelos seus cuidados. O Direito Internacional Humanitário proíbe-o. O governo russo ignora-o.
A natureza organizada e sistemática de algumas deportações de crianças ucranianas para território russo é uma violação de direitos humanos, podendo constituir-se como crime de genocídio caso seja provada a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como estabelecido na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. As autoridades russas simplificaram o processo de obtenção da cidadania russa para facilitar a adoção por famílias russas de crianças ucranianas órfãs ou desacompanhadas, o que dificulta, se não impossibilitar mesmo, o seu possível retorno à Ucrânia. A falta de um mecanismo formal para o regresso destas crianças a solo ucraniano e para a reunificação com a sua família ou tutores agrava ainda mais a situação. A 17 de outubro de 2022, o Gabinete Nacional de Informação da Ucrânia alegava que 8.140 crianças tinham sido deportadas ou transferidas à força, presumivelmente para a Rússia e áreas controladas pela Rússia. Destas, até à mesma data, apenas 96 tinham regressado.
Um ano depois do início da guerra, o futuro de uma geração de crianças está em risco. Crianças que testemunharam a violência. Crianças cuja infância lhes foi arrancada. Crianças incapazes de preservar a sua nacionalidade e identidade.
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