A Feira do Livro é um saco de sentimentos contraditórios. Por um lado, que bom tantos livros, que bom tanta gente a querer saber dos livros. Por outro, o que faço eu aqui? Como é que se fica sentado à espera que chegue um leitor, alguém que deseje um autógrafo? Eu, confesso, para responder à pergunta, terei de dizer: com dificuldade. E sou uma privilegiada, porque os amigos animam-se para me visitar, a família faz o mesmo. E aquela hora lá vai, a passo de caracol, com a surpresa de chegarem leitores que pretendem ter aquele momento de conversa, a tal dedicatória e, por estes dias, uma selfie ou outra. Gostaria de dizer que me sinto muito confortável, afinal, ando a fazer isto há já uns anos, mas é mentira, a exposição sempre me foi difícil e tenho muita admiração por quem consegue vivê-la com facilidade. Mantenho o sorriso, porque gosto de sorrir, e faço por não parecer nervosa. Na feira revejo algumas pessoas com quem simpatizo, outras de quem gosto realmente. Também vejo as outras – as quais, até há uns tempos, tenderia a cumprimentar com zelo e respeito. Hoje, se me ignoram, opto pela mesma moeda: bem vistas as coisas, é sempre mais fácil para quem não quer dar troco.
Desço a feira, saio da Praça Leya, caminho até à Praça da Porto Editora, para ouvir a Catarina Carvalho e o Itamar Vieira Júnior, eles que apresentaram o livro da Ana Bárbara Pedrosa (já agora, leiam que é mesmo bom, chama-se Amor Estragado, e leiam o novo livro do Itamar, Salvar o Fogo, que é também altamente recomendável). Estava à espera de ver a minha Maria Manuel Viana, ela que detestava conviver, mas que ia à Feira do Livro com a animação e um entusiasmo de nível juvenil. Que bom, a feira, dizia ela.
Ficava a ver as pessoas passar, era gentilíssima com quem a abordava, cumprimentava os seus pares, sorria e fumava cigarros atrás de cigarros, que isto dos nervos não calha só a mim. Pensei que a veria, de repente a sua morte seria uma falácia e ela estaria ali, uma peça de roupa da Adolfo Domingues, as unhas pintadas de azul, a franja assimétrica. Foi um outro tempo e nunca se repetirá.
Podemos recuperar a grande maioria das coisas na vida, a saúde, o amor, a vontade, até o emprego, mas o tempo que se foi não tem volta a dar, não o viveremos outra vez. Podia atirar-vos com a ideia de que a mesma água debaixo da ponte não passa duas vezes, filosofar um pouco, porém não me parece necessário porque o tempo não precisa de poesia, precisa de ser vivido. E o que eu queria era saber que a Maria Manuel estava ali à minha espera, ao lado dela a Inês, depois o Carlos a cirandar na feira e a trazer novas. Isto era o que eu queria.
A Maria Manuel morreu no dia dos meus anos, em Dezembro passado. Dei por mim a ligar-lhe com a displicência de quem não entende sequer o gesto, queria simplesmente falar-lhe. Tenho coisas para lhe contar.
Dias antes da feira, eliminei, por fim, o seu contacto do meu telemóvel. Além do dela, eliminei mais uns de pessoas que me morreram, e que justa me parece esta formulação tão portuguesa da pessoa que nos morre, algo que nos acontece e que vivemos como sendo só nosso. Não gostaria de eliminar mais ninguém e, adepta do pensamento mágico, preferia congelar este momento em que me sobram uma mão-cheia de pessoas que são as minhas pessoas. Quero partilhar com elas os livros, as histórias e as farturas que só se comem na Feira do Livro e que este ano nem vi.
Quero muito que a vida se faça com um sentido lúcido, saber o que estamos a viver. Fui à Feira do Livro um único dia. Sentei-me perto da minha Lídia Jorge, conversei com alguns escritores, cumprimentei editores. O que me soube mesmo bem foi ver a minha família, os meus amigos, a minha maravilhosa afilhada Inês, tão apaixonada pelo seu galante namorado. E soube-me bem ouvir de um jovem muito jovem: “Tenho uma lista de 600 livros, são as recomendações da Inês Pedrosa, da Rita Ferro e suas, no programa de rádio A Páginas Tantas. Foi por vossa causa que descobri a Agustina”. Bem-haja! Fizemos um programa de rádio durante sete anos que rendeu uma lista de recomendações de 600 livros? A Maria Manuel iria festejar com alegria o momento. Assim, por muito desconfortável que seja a montra improvisada em cima de um palanque, por muito penoso que seja o nervosismo, por mais falta que me faça a Maria Manuel, tenho de admitir que foi uma boa tarde.
Comentários