O terreno que pariu um caso judicial. Rui Moreira respira de alívio, mas só por enquanto
Tudo começou com um terreno, situado na Calçada da Arrábida, perto de onde o Porto acaba e o Douro começa.
Em 2001, a empresa imobiliária Selminho comprou esse mesmo terreno a um casal que o registou por usucapião com o intuito de construir um edifício de apartamentos. Houve, contudo, um entrave. A Câmara Municipal do Porto reclamava para si essa mesma parcela, considerando-a propriedade municipal.
Foi o início de um diferendo judicial apenas resolvido em 2014, quando a autarquia fez um acordo extrajudicial, comprometendo-se a devolver o terreno à Selminho no âmbito da revisão do Plano Diretor Municipal — se não o fizesse, teria de indemnizar a empresa. Até aqui, tudo bem. Onde entra Rui Moreira nesta equação?
Eleito enquanto candidato independente ao município em 2013, foi durante o primeiro mandato de Rui Moreira que esta questão se resolveu. O problema é que Rui Moreira era sócio da Selminho, empresa da sua família.
Foi nesta premissa que se instalou um clima de suspeição quanto à possibilidade do autarca de ter beneficiado propositadamente a empresa em detrimento, o que consta num crime de prevaricação — a isso ajudou o facto do problema se arrastar judicialmente desde 2001 até 2014, ou seja, 14 anos, mas apenas um depois de Moreira subir ao poder local.
O primeiro ensaio surgiu em julho de 2016, quando o Departamento de Investigação e Ação Pena (DIAP) do Porto deu conta da instauração de um inquérito, na sequência de uma denúncia anónima sobre a Selminho. De seguida, a CDU apresentou uma queixa no Ministério Público (MP), mas esta acabou arquivada em julho de 2017, tendo o MP entendido não existir “qualquer sinal de proveito pessoal do autarca ou de terceiros ou de prejuízos patrimoniais para a autarquia".
Moreira, todavia, não saiu incólume do processo, já que os procuradores reconheceram à época que o presidente da Câmara do Porto teve "uma intervenção menos avisada ou desatenta" ao fazer-se representar por um advogado com procuração forense numa audiência prévia em tribunal com a Selminho.
Três anos depois, o tema volta “à baila”, e desta vez com contornos bem mais gravosos. O Tribunal de Instrução Criminal (TIC) do Porto decidiu em dezembro de 2020 levar Moreira a julgamento, que arrancou em 16 de novembro de 2021.
Durante o processo, que teve quatro sessões e 20 testemunhas arroladas, Moreira justificou que só passou a procuração ao advogado Pedro Neves de Sousa, externo ao município, em dezembro de 2013, cerca de dois meses após tomar posse como presidente da câmara, porque o seu então chefe de gabinete, o ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes, lhe disse que devia assinar o documento, pois, só assim, estariam salvaguardados os interesses do município no litígio judicial.
A premissa do MP foi de que, entre outras acusações, o autarca prevaricou ao assinar, em nome do município, uma procuração forense ao advogado Pedro Neves de Sousa, mandatário do município numa ação judicial que corria termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, em que a Selminho, "empresa da família do autarca e dele próprio, demandava a Câmara Municipal do Porto”, violando, assim, os deveres de legalidade e de imparcialidade.
Mais tarde, durante as alegações finais, o procurador do MP, Luís Carvalho, defendeu que a Selminho “conseguiu em 11 meses” – após a tomada de posse de Rui Moreira - o que não tinha conseguido durante oito anos, quer em sede de urbanismo, através da eventual alteração ou da revisão do Plano Diretor Municipal, quer nas ações judiciais que interpôs contra a autarquia. “Os factos relacionados entre si” permitem concluir que a intervenção de Rui Moreira levou a um “acordo totalmente favorável às pretensões da Selminho”, alegou Carvalho.
Da parte da defesa, apesar da já conhecida admissão de uma atuação “menos avisada ou desatenta”, alegou-se que o processo do MP estava assente “num processo de intenções, teorias e fabulações”. O advogado Tiago Rodrigues Bastos de Moreira, inclusive, acusou o procurador do MP de fazer “um ataque indescritível à honra” do presidente da Câmara do Porto, considerando que, em julgamento, ficou provado que o autarca “não teve qualquer intervenção” no processo Selminho.
Volvidos cinco anos desde as acusações iniciais — 21 desde a compra do terreno —, a juíza presidente do Tribunal de São João Novo, Ângela Reguengo, proferiu o veredito: a absolvição de Rui Moreira, considerando o coletivo de juízes que não ficou provado que o autarca tenha dado instruções ou agido com o propósito de beneficiar a Selminho.
Segundo a juíza, houve “manifesta falta de prova” quanto aos factos ilícitos que constavam da acusação do MP, declarando que não ficou provada a “intervenção direta [de Rui Moreira], ou por interposta pessoa”.
Previsivelmente, Moreira saiu do tribunal "aliviado", como constatou aos jornalistas à porta do tribunal, dizendo não ter “dúvidas de que um dia este desfecho viria”.
A onda de reações chegou após o tremor da decisão: se à direita houve felicitações da parte dos partidos que o apoiaram nas autárquicas de 2021 — Iniciativa Liberal e CDS-PP —, à esquerda houve cautela, com PS, CDU e BE deixando críticas à atuação de Moreira, mas sublinhando que não iriam contestar a decisão judicial.
No meio disto tudo fica o PSD, o partido que mais visou o autarca quanto a este caso. Foi aos sociais-democratas que Rui Moreira apontou baterias já mais tarde, na sua declaração oficial.
“Houve quem se abespinhasse por a campanha eleitoral não se ter concentrado, apenas, nesta suspeita. Houve partidos políticos, e um líder político em particular, que não respeitaram a presunção da inocência”, afirmou, com indiretas a Rui Rio. Isto, porque em maio de 2021, o presidente do PSD afirmou que se estivesse na situação de Rui Moreira não se recandidataria à Câmara Municipal do Porto, alertando para o "risco" que este corria de ter de "sair pela porta de trás" da autarquia.
“Este processo foi sempre um processo político. Não estou a dizer que na sua origem fosse um processo político, aquilo que afirmo é que o processo se transformou sempre num processo político (…) Já não tenho idade nem para acreditar no Pai Natal, nem para acreditar em acasos”, atirou o autarca.
Moreira, porém, frisou, que a atuação do MP não foi diretamente inspirada pelas implicações políticas do caso, mas é inegável que elas se manifestaram: não sendo linear que o processo judicial tenha afetado diretamente os resultados das eleições autárquicas de setembro de 2021, é de crer que as suspeitas sobre o autarca tenham sido uma das razões da perda de maioria na Câmara Municipal.
O que se segue? Bem, o caso não fica por aí. Apesar das acusações de “show-off” por parte do advogado de Rui Moreira, o Ministério Público já anunciou que vai recorrer.
O presidente da Câmara do Porto, porém, não está preocupado. “O Ministério Público é livre de interpor recurso. Faz parte das regras do jogo. Segue-se o segundo “round”.
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