O terreno que pariu um caso judicial. Rui Moreira respira de alívio, mas só por enquanto

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

Tudo começou com um terreno, situado na Calçada da Arrábida, perto de onde o Porto acaba e o Douro começa.

Em 2001, a empresa imobiliária Selminho comprou esse mesmo terreno a um casal que o registou por usucapião com o intuito de construir um edifício de apartamentos. Houve, contudo, um entrave. A Câmara Municipal do Porto reclamava para si essa mesma parcela, considerando-a propriedade municipal.

Foi o início de um diferendo judicial apenas resolvido em 2014, quando a autarquia fez um acordo extrajudicial, comprometendo-se a devolver o terreno à Selminho no âmbito da revisão do Plano Diretor Municipal — se não o fizesse, teria de indemnizar a empresa. Até aqui, tudo bem. Onde entra Rui Moreira nesta equação?

Eleito enquanto candidato independente ao município em 2013, foi durante o primeiro mandato de Rui Moreira que esta questão se resolveu. O problema é que Rui Moreira era sócio da Selminho, empresa da sua família.

Foi nesta premissa que se instalou um clima de suspeição quanto à possibilidade do autarca de ter beneficiado propositadamente a empresa em detrimento, o que consta num crime de prevaricação — a isso ajudou o facto do problema se arrastar judicialmente desde 2001 até 2014, ou seja, 14 anos, mas apenas um depois de Moreira subir ao poder local.

O primeiro ensaio surgiu em julho de 2016, quando o Departamento de Investigação e Ação Pena (DIAP) do Porto deu conta da instauração de um inquérito, na sequência de uma denúncia anónima sobre a Selminho. De seguida, a CDU apresentou uma queixa no Ministério Público (MP), mas esta acabou arquivada em julho de 2017, tendo o MP entendido não existir “qualquer sinal de proveito pessoal do autarca ou de terceiros ou de prejuízos patrimoniais para a autarquia".

Moreira, todavia, não saiu incólume do processo, já que os procuradores reconheceram à época que o presidente da Câmara do Porto teve "uma intervenção menos avisada ou desatenta" ao fazer-se representar por um advogado com procuração forense numa audiência prévia em tribunal com a Selminho.

Três anos depois, o tema volta “à baila”, e desta vez com contornos bem mais gravosos. O Tribunal de Instrução Criminal (TIC) do Porto decidiu em dezembro de 2020 levar Moreira a julgamento, que arrancou em 16 de novembro de 2021.

Durante o processo, que teve quatro sessões e 20 testemunhas arroladas, Moreira justificou que só passou a procuração ao advogado Pedro Neves de Sousa, externo ao município, em dezembro de 2013, cerca de dois meses após tomar posse como presidente da câmara, porque o seu então chefe de gabinete, o ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes, lhe disse que devia assinar o documento, pois, só assim, estariam salvaguardados os interesses do município no litígio judicial.

A premissa do MP foi de que, entre outras acusações, o autarca prevaricou ao assinar, em nome do município, uma procuração forense ao advogado Pedro Neves de Sousa, mandatário do município numa ação judicial que corria termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, em que a Selminho, "empresa da família do autarca e dele próprio, demandava a Câmara Municipal do Porto”, violando, assim, os deveres de legalidade e de imparcialidade.

Mais tarde, durante as alegações finais, o procurador do MP, Luís Carvalho, defendeu que a Selminho “conseguiu em 11 meses” – após a tomada de posse de Rui Moreira - o que não tinha conseguido durante oito anos, quer em sede de urbanismo, através da eventual alteração ou da revisão do Plano Diretor Municipal, quer nas ações judiciais que interpôs contra a autarquia. “Os factos relacionados entre si” permitem concluir que a intervenção de Rui Moreira levou a um “acordo totalmente favorável às pretensões da Selminho”, alegou Carvalho.

Da parte da defesa, apesar da já conhecida admissão de uma atuação “menos avisada ou desatenta”, alegou-se que o processo do MP estava assente “num processo de intenções, teorias e fabulações”. O advogado Tiago Rodrigues Bastos de Moreira, inclusive, acusou o procurador do MP de fazer “um ataque indescritível à honra” do presidente da Câmara do Porto, considerando que, em julgamento, ficou provado que o autarca “não teve qualquer intervenção” no processo Selminho.

Volvidos cinco anos desde as acusações iniciais — 21 desde a compra do terreno —, a juíza presidente do Tribunal de São João Novo, Ângela Reguengo, proferiu o veredito: a absolvição de Rui Moreira, considerando o coletivo de juízes que não ficou provado que o autarca tenha dado instruções ou agido com o propósito de beneficiar a Selminho.

Segundo a juíza, houve “manifesta falta de prova” quanto aos factos ilícitos que constavam da acusação do MP, declarando que não ficou provada a “intervenção direta [de Rui Moreira], ou por interposta pessoa”.

Previsivelmente, Moreira saiu do tribunal "aliviado", como constatou aos jornalistas à porta do tribunal, dizendo não ter “dúvidas de que um dia este desfecho viria”.

A onda de reações chegou após o tremor da decisão: se à direita houve felicitações da parte dos partidos que o apoiaram nas autárquicas de 2021 — Iniciativa Liberal e CDS-PP —, à esquerda houve cautela, com PS, CDU e BE deixando críticas à atuação de Moreira, mas sublinhando que não iriam contestar a decisão judicial.

No meio disto tudo fica o PSD, o partido que mais visou o autarca quanto a este caso. Foi aos sociais-democratas que Rui Moreira apontou baterias já mais tarde, na sua declaração oficial.

“Houve quem se abespinhasse por a campanha eleitoral não se ter concentrado, apenas, nesta suspeita. Houve partidos políticos, e um líder político em particular, que não respeitaram a presunção da inocência”, afirmou, com indiretas a Rui Rio. Isto, porque em maio de 2021, o presidente do PSD afirmou que se estivesse na situação de Rui Moreira não se recandidataria à Câmara Municipal do Porto, alertando para o "risco" que este corria de ter de "sair pela porta de trás" da autarquia.

“Este processo foi sempre um processo político. Não estou a dizer que na sua origem fosse um processo político, aquilo que afirmo é que o processo se transformou sempre num processo político (…) Já não tenho idade nem para acreditar no Pai Natal, nem para acreditar em acasos”, atirou o autarca.

Moreira, porém, frisou, que a atuação do MP não foi diretamente inspirada pelas implicações políticas do caso, mas é inegável que elas se manifestaram: não sendo linear que o processo judicial tenha afetado diretamente os resultados das eleições autárquicas de setembro de 2021, é de crer que as suspeitas sobre o autarca tenham sido uma das razões da perda de maioria na Câmara Municipal.

O que se segue? Bem, o caso não fica por aí. Apesar das acusações de “show-off” por parte do advogado de Rui Moreira, o Ministério Público já anunciou que vai recorrer.

O presidente da Câmara do Porto, porém, não está preocupado. “O Ministério Público é livre de interpor recurso. Faz parte das regras do jogo. Segue-se o segundo “round”.

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