Dos abusos ao casamento de padres. Há um "caminho do meio" para a Igreja?

Alexandra Antunes
Alexandra Antunes

Vezes há em que a atualidade nos leva quase obrigatoriamente à ficção. No episódio 5 da série The New Pope, Sofia Dubois (a diretora de marketing interpretada por Cécile de France), vê-se num diálogo com o Papa João Paulo III (interpretado por John Malkovich) que parece trazer a atualidade noticiosa destes dias.

A propósito de uma entrevista que terá de ser marcada, Sofia pergunta ao Pontífice — que, leia-se, é uma mera personagem e não o retrato de um Papa que já tenha existido — qual será o grande tema a esperar. A resposta é clara e concisa:

“A pedofilia entre o clero e todos os abusos sexuais. Essa é a questão que mais me interessa. Pois, se os perdoarmos, eles fá-lo-ão novamente — e se os castigarmos não estamos a praticar caridade cristã”.

Sofia pergunta se não há “outra maneira” e o Papa garante que “há sempre outra maneira”. Mais à frente na conversa, explica como.

“Durante a entrevista, vou fazer uma abertura extraordinária: pretendo declarar que sou a favor do casamento para os padres, tanto homossexual como heterossexual. Temos de legitimar o ‘possível’ amor, de modo a desviar as pessoas do amor ‘aberrante’ que é uma forma de violência. Não sou tão ingénuo ao ponto de pensar que esta é a solução, mas é uma forma de limitar os danos que pode muito bem funcionar”.

A diretora de marketing, que começa por dizer que tal medida parece "a atualização da Bíblia", tal  "como se fosse um iPhone", acaba por definir este passo como “um salto gigantesco” e “uma bomba genuína”. Mas, para João Paulo III, este é apenas “um pequeno passo e, esperemos, menos lágrimas no grande oceano da história humana”. E “o caminho do meio”.

Mas regressemos à atualidade e vejamos o que aconteceu nas últimas 24 horas no campo da Igreja Católica, em Portugal e não só.

  • Depois da apresentação do relatório e da lista dos alegados abusadores pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica em Portugal, algumas dioceses — uma minoria — começam a tomar medidas. Muitas, como Fátima, Coimbra e Setúbal, ainda estão a reunir dados e prometem decisões em breve;
  • Há ainda dioceses em que os suspeitos já não estão no ativo, seja por morte ou afastamento, e outras que não têm "lista" para investigar, como Bragança-Miranda, Santarém e Forças Armadas e de Segurança;
  • A conta-gotas, a Igreja Católica já suspendeu cinco padres suspeitos de abusos sexuais de menores, mas há bispos que continuam a exigir provas concretas para avançar com medidas suspensivas;
  • Esta situação já mereceu críticas do presidente da República. Ontem, Marcelo Rebelo de Sousa declarou-se desiludido com a resposta da Conferência Episcopal Portuguesa ao relatório sobre abusos sexuais de menores e defendeu uma reparação das vítimas. "Como presidente da República a expectativa que havia era tão simples: era ser rápido, assumir a responsabilidade, tomar medidas preventivas e aceitar a reparação. E de repente é tudo ao contrário, em termos gerais, ou cada um para seu lado", lamentou.
  • No dia de hoje, destacam-se as respostas das dioceses de Lisboa e Porto, que revelaram ter recebido listas com 24 e 12 nomes, respetivamente, dos quais cinco e sete padres se mantêm no ativo. Não tomam, para já, qualquer medida no sentido de os suspender de funções, tendo Lisboa pedido mais elementos à comissão independente que “permitam fundamentar a proibição do exercício público do ministério dos sacerdotes no ativo e assunção das devidas responsabilidades no apoio e respeito pela dignidade das vítimas”. Já o Porto prometeu suspensões preventivas em caso de serem encontrados “indícios fiáveis” de crimes, reiterando a argumentação da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que na conferência de imprensa da semana passada defendeu o afastamento dos clérigos com base em provas concretas;
  • Após todas as comunicações por parte das dioceses, o psiquiatra Daniel Sampaio rebateu críticas à existência de padres mortos na lista de alegados abusadores e garante que "há muita matéria" para a Igreja agir, esperando que as dioceses de Lisboa e Porto afastem os sacerdotes no ativo;
  • Nos Açores, a Diocese de Angra confirmou que recebeu mais uma queixa contra um pároco já depois de ter o relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica. Segundo o bispo, D. Armando Esteves Domingues, a denúncia diz respeito a um padre na ilha de São Miguel;
  • Do Vaticano chegou esta sexta-feira, recorrendo às palavras da série que citamos no início deste texto, uma "bomba genuína" na Igreja: o Papa Francisco manifestou-se disponível para rever o celibato no seio da Igreja Católica. "Não há nenhuma contradição na possibilidade de um sacerdote casar. O celibato na Igreja ocidental é uma prescrição temporária: Não sei se se resolve de uma forma ou de outra, mas é provisório nesse sentido", disse. E para mostrar que esta é de facto uma questão que “poderia ser revista”, o chefe da Igreja Católica lembrou que muitos dos membros da Igreja do oriente, aqueles que o desejem, “são casados”.

Com toda a agitação no seio da Igreja Católica, têm surgido, nos últimos meses, propostas que visam acabar com os escândalos de abusos sexuais, num crescente debate sobre se este problema estará ou não relacionado com a obrigatoriedade de celibato na Igreja Católica. Neste momento, as opiniões dividem-se. Há quem concorde — como o fictício Papa João Paulo III —, mas também há quem pense que o caminho não é esse.

No passado, o Vaticano considerou que "não seria lícito iniciar o fim do celibato nas dioceses antes de um acordo a nível da Igreja universal, de novas estruturas ou doutrinas oficiais, para evitar que representassem uma ferida para a comunhão eclesial e uma ameaça à unidade da Igreja”.

Com esta afirmação do Papa Francisco, a Igreja vai ser obrigada a continuar a olhar para o tema. Que continue então o debate.

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