“Não interessa se queremos ou não ter filhos. À partida, todos nós assumimos que os podemos ter, há a ideia de que está tudo bem connosco”.
Em média, um em cada dez casais depois de ler a frase acima acrescentaria: “mas não estava”. Esses casais depararam-se com um problema de infertilidade num momento das suas vidas cheio de expectativa, o de começar a formar uma família.
As causas para a infertilidade podem estar relacionadas com múltiplos fatores que vão desde os nossos hábitos de vida - o que inclui consumo de tabaco, álcool, drogas ou até mesmo a exposição a poluição ou sinais eletrónicos a que estamos sujeitos no nosso dia-a-dia -, à nossa genética ou, o cenário mais assustador, a causa desconhecida.
A medicina tem vindo a escrutinar ao longo dos anos muitas dessas causas, mas ainda há muito por descobrir, e isso é um grande problema visto que “o ser humano lida muito mal com a ausência de explicações e com a ambiguidade”, conta-nos Ana Pereira, psicóloga da AVA Clinic, um centro de fertilidade em Lisboa.
“As pessoas sentem que ser infértil é quase o equivalente a ser impotente”, diz a especialista. E é isso que a pessoa enfrenta: um enorme sentimento de impotência. Faça a pessoa o que fizer, não há nada que, sozinha e por si própria, possa fazer para engravidar. “Uma pessoa sente-se de mãos atadas”, diz a psicóloga. “Na clínica onde trabalho recebo várias pessoas que me dizem que tudo o que ambicionavam na vida o conseguiram com esforço”, mas ter filhos, contornar a infertilidade… Isto não depende deles.
Um casal nesta situação, com a ambição de formar uma família e que se depara com estas barreiras biológicas, tem duas soluções: avançar para os tratamentos de fertilidade ou entrar em processo de adoção.
Transversal a tudo isto, qualquer que seja a opção, é o apoio psicológico. Ajudar os casais a lidar com notícia, a iniciar os tratamentos ou mesmo ajudar a ‘normalizar' as suas vidas. O momento mais difícil, confessa Ana Pereira, é o momento de dizer ‘stop’.
O momento em que a notícia chega
Quando um casal se depara com um problema de infertilidade, normalmente, diz Ana Pereira, decide avançar para os tratamentos de fertilidade, relegando a adoção para última solução. “O desejo de ter um filho que seja geneticamente, pelo menos, de um dos membros do casal vence”, conta. E aí chega uma nova fase. Existe uma panóplia de exames, novas rotinas, novas dinâmicas e tratamentos pela frente.
De homem para mulher a reação costuma ser muito diferente, revela-nos. “O homem, por norma, tende a ter uma visão mais pragmática na hora de iniciar os tratamentos. Já a mulher deambula na possibilidade e no horror de poder não cumprir o desejo de uma vida: ter um filho”.
Os homens, em particular quando são eles o elemento do casal que é infértil, “associam a baixa fertilidade ou a infertilidade a questões de virilidade”. E isso pode ter consequências: “em algumas situações podem acontecer casos de disfunção sexual no homem, nomeadamente episódios de impotência ou menor desejo sexual”. “A pessoa até aí não pensava no assunto e depois sente que a sua virilidade diminuiu”, explica Ana Pereira.
A situação da mulher é um pouco diferente. Enfrenta um obstáculo sobretudo psicológico associado à possibilidade de nunca vir a ser mãe. Neste caso, a superação e a capacidade de lidar com a infertilidade passa muito pela partilha. “Há pessoas que não falam com ninguém e é preciso porque quando se desabafa com alguém de confiança a situação torna-se mais fácil suportar. Se não a pessoa rebenta”, diz a psicóloga.
É nesses momentos que a mulher costuma procurar o companheiro, mas, diz a especialista, “os homens calam-se muito e têm alguma dificuldade em expressar as suas emoções”. O homem tende a canalizar mais o desconforto para abusar em alguns comportamentos, revela, contando que já se deparou com casos que vão desde o consumo de álcool constante a um aumento abusivo do exercício físico como estratégias de alienação.
O fantasma da separação
Diferentes formas de reagir podem, inclusivamente, colocar o futuro do casal em risco. É que “as mulheres, por vezes, tornam-se um bocado obsessivas, sempre a falar no mesmo. Já os homens são direcionados para ação. O que por vezes leva a mulher a pensar que o companheiro já não gosta dela. Sente falta de preocupação”.
Conta a especialista que os problemas tendem a afetar também a vida sexual do casal, o que, segundo a psicóloga, é absolutamente normal. “É necessário explicar também que é habitual que exista algum grau de disfuncionamento sexual, ou alteração na vida conjugal e sexual, como a diminuição do desejo, perturbação do orgasmo. O que acontece é que a pessoa antes tinha sexo por prazer, e depois começou a ter sexo para tentar engravidar. Finalmente, depara-se com um momento em que sabe que não vai engravidar com sexo”.
Neste contexto, o medo da separação surge naturalmente. E é uma constante durante o período inicial. Para Ana Pereira, a situação é considerada uma crise. “É tão intenso, às vezes, durante vários anos, as pessoas andam afetadas. É como se a vida estivesse em suspenso”.
A vida de um casal para. Todas as decisões ficam paralisadas: mudo de casa ou não mudo de casa? Vou de férias ou não? Vou para o ginásio ou não vou? Vou pagar a inscrição de um ano? Mas e se engravido?
O apoio psicológico passa também por aí, por dar segurança e tranquilidade ao casal, porque, na realidade, “raramente as pessoas se divorciam por isto”, revela a psicóloga. “Se se divorciam por isso iam-se divorciar por outra coisa. Até porque quando os casais conseguem ultrapassar a infertilidade e conseguem finalmente ter filhos ou definem que não vão ter filhos sentem-se muito unidos, depois de terem passado uma situação muito difícil para os dois."
O sentimento de culpa
Há uma tendência inicial da pessoa infértil se sentir culpada e, por outro lado, da outra pessoa não querer sentir culpa por culpabilizar o outro. O processo também não é simples. “Os tratamentos de fertilidade das mulheres implicam uma estimulação, para além de terem de fazer imensas ecografias vaginais, vir ao médico e expor a sua intimidade. Depois, ao fazer os tratamentos, desde os mais simples, como é a indução da ovulação, até à fertilização in vitro. No fundo, é a ela que passa por isto tudo do ponto de vista físico”, explica Ana Pereira.
“Imaginemos a situação em que a mulher tem de passar por isto tudo, mas a causa de infertilidade é masculina. Por um lado, ela gosta do companheiro e não o quer culpabilizar, quer protegê-lo, mas ao mesmo tempo ela é que vive aquilo tudo. E muitas vezes o que acontece é haver algum ressentimento que não é expresso, porque é muito difícil admitir diante de uma pessoa que 'estou a passar isto por tua causa'. Ou o próprio marido sentir que a sua companheira está a passar isto por sua causa. E isso cria alguma tensão na relação entre as pessoas”, revela a psicóloga.
O mal da internet
Um casal fica muitas vezes desamparado com a notícia da infertilidade. De um momento para o outro passam da felicidade e do sonho de virem a ser pais para caírem num mundo complexo de variadas opções, tratamentos e “estranhas terminologias”. Assim, "a internet ajuda numa primeira fase a recolher informação para que a pessoa se sinta mais segura, perceba as palavras, as terminologias e seja mais ativa na tomada de decisão”. Mas a pesquisa acaba por se tornar num paradoxo, conta a psicóloga. “Tanto posso aconselhar a pesquisa de informação, como posso ajudar a pessoa a deixar de pesquisar numa determinada fase, quando começa a ser demais”.
O grande problema da web e dos fóruns é que dissemina “informação errada e ainda tem um efeito depressivo. Porquê? Porque quando uma pessoa consegue engravidar, quase naturalmente, segue a sua vida. Quem fica nos fóruns são os casos mais complicados de pessoas que estão há muitos anos a tentar. A pessoa pode ficar com a sensação de que nunca mais vai conseguir”. Daí tornar-se necessário saber dizer 'stop' quando se chega ao momento em que dali não sairá nada de novo, a não ser informação que deixa a pessoa mais e mais ansiosa.
Normalizar sentimentos
O apoio psicológico passa, no fundo, por algo que na psicologia se chama “normalizar”. Com isto pretende-se ajudar o casal a lidar com os sentimentos que os invadem num momento tão delicado. Uma das coisas que mais incomoda as mulheres é o sentimento de inveja, exemplifica a especialista. Ver mulheres grávidas. “Isto é algo que é difícil de confessar, porque a inveja é considerado um sentimento feio. Mas é uma coisa que é muito comum. As mulheres não desejam mal à outra pessoa, elas apenas desejam aquilo e é como se de repente só vissem grávidas e crianças em seu redor”.
O papel da psicóloga acaba por ser o de dar o primeiro passo. “Sou eu que digo: é normal nesta situação sentir isto e aquilo”, conta-nos Ana Pereira. E isso oferece um grande alívio, porque a pessoa percebe que não se tornou má pessoa, ajuda a normalizar o seu comportamento. Assim como é natural haver algum afastamento social, porque “os casais em determinadas faixas etárias estão todos a ter filhos. É só miúdos, festas de família, batizados, aniversários. E o que é que acontece? Um casal que sofra de problemas de fertilidade vai e sujeita-se a sofrer um bocado, o que acaba por muitas vezes resultar em deixar de conviver tanto com amigos e família como estratégia de defesa”, conta-nos.
Gerir expectativas
Lidar com a notícia, gerir a relação e partir para os tratamentos já não é fácil para o casal. A isso juntam-se dois fatores que desde o início limitam as suas expectativas. Primeiro, o papel da mulher na sociedade alterou-se, e muitas optam por prosseguir os estudos e ter uma carreira, adiando a decisão de ter filhos. O facto é que isto é limitador, já que uma mulher tem maiores hipóteses de engravidar entre os 18 e os 22 anos. Uma idade em que cada vez menos mulheres, na sociedade ocidental, equacionam engravidar. À medida que os anos passam as possibilidades vão-se reduzindo. Além disso, a nossa espécie é muito pouco fértil.
Isto leva a que em casos de baixa fertilidade ou infertilidade seja necessário, geralmente, recorrer a muitos tratamentos. Aqui, o papel da psicóloga consiste também em preparar o casal para o insucesso. Porque, diz-nos a psicóloga, “por muito pequenas que sejam as taxas de sucesso, as pessoas estão sempre à espera de conseguir ter um filho”.
Somar isso à exigência psicológica dos tratamentos não é fácil, confessa Ana Pereira. Os exames são constantes, e a medicação é intensa. A mulher expõe toda a sua intimidade, o que nunca é fácil. Assim como o homem, conta-nos. “Quando o senhor faz a colheita do esperma, também não é fácil. É complicado fazer uma masturbação numa clínica onde toda a gente sabe o que está a fazer, e ao mesmo tempo estão à espera do seu esperma para trabalhar em laboratório. É muita pressão”
Depois dos exames, começam a surgir as notícias e “aí é ajudá-los a lidar com as expectativas. Mas são momentos de muita ansiedade à espera que o casal saiba se já há embriões para transferir e outros para congelar. Ou se há para transferir e não para congelar. Ou pior, quando de todo aquele esforço não resultou nada. Mas mesmo quando resulta, há o sufoco de vários dias à espera para fazer o teste de gravidez”.
Ajudar a desistir
Imagine o que é ter dedicado muito tempo da sua vida a tratamentos e esbarrar no insucesso. Este é o ponto a que muitos casais chegam. De um momento para o outro o casal que estava a pensar em construir uma família vê-se obrigado a perspetivar o futuro a dois, sem filhos.
Aí, o apoio psicológico passa por ajudar o casal a redirecionar esforços para outros objetivos de vida “e ajudar a ultrapassar um possível estado de depressão provocado por muitos anos de infertilidade e de muitos tratamentos sem sucesso”, explica Ana Pereira.
Não é fácil parar e desistir dos tratamentos. Quando a pessoa não tem condições médicas, “é mais fácil de se aceitar”. Agora, se a decisão tiver de partir da pessoa, ou do casal, é muito difícil. Sobretudo para as mulheres, conta a especialista. Porque é, mais uma vez, uma questão de género. Toda a gente está à espera que elas sejam mães, desde cedo que lhes ‘atiram’ bebés para as mãos.
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