Livro: "Correções"
Autor: Jonathan Franzen
Convidada: Luísa Lopes, neurocientista, membro da Sociedade Americana de Neurociência e professora na Faculdade de Lisboa
Jornalista: Isabel Tavares, jornalista do SAPO 24
Moderadora: Elisa Baltazar, anfitriã do "É Desta Que Leio Isto"
Data: 29 de outubro de 2020
Ouça aqui a conversa sobre o livro "Correções".
Sobre a autor - Jonathan Franzen:
- Nasceu em 1959 em Western Springs, no estado de Illinois, nos Estados Unidos, mas tem ascendência sueca.
- Cresceu em Webster Groves, no Missouri.
- Estudou alemão no Swarthmore College, em 1981.
- Mudou-se para Boston, em 1987 e depois para Nova Iorque.
- Já escreveu quase uma dezena de livros, entre ficção e não-ficção.
- Já venceu inúmeros prémios literários e foi finalista de outros tantos, incluindo do Prémio Pulitzer.
Sobre o livro "Correções":
- Conta a história de uma família de classe média disfuncional do centro-norte dos Estados Unidos.
- A sua narrativa gira em torno dos problemas de cada personagem, que acabam por se refletir na forma como todos os membros da família se relacionam entre si.
- Foca temas relacionados com as características de cada membro da família: o materialismo, a sexualidade, o egocentrismo, a competitividade, a teimosia.
- Fala da passagem para um novo milénio (do século XX para o XXI) e das mudanças associadas a isso: a passagem de uma economia centrada no setor da indústria para uma economia centrada em mercados financeiros e na tecnologia.
- Venceu os prémios National Book Award, em 2001, e James Tait Black Memorial, em 2002.
- Foi publicado dez dias antes do 11 de setembro de 2001 (atentando terrorista às Torres Gémeas, em Nova Iorque) mas é considerado por muitos um retrato das preocupações dos americanos no pós-11 de setembro.
- Foi considerado para adaptação para uma série da HBO.
"Esta é a caricatura de uma família disfuncional"
- É assim que a Luísa Lopes descreve a família do livro "Correções". Afirma que "todas as famílias são disfuncionais", mas que "esta não é propriamente fácil".
- A neurocientista destaca a conversão das "perturbações patológicas e emocionais" de todos os membros da família (cujo pai sofre de doença de Parkinson), que acabam por culminar nessa tal "caricatura".
"Tão insignificante quanto alguém comer uma sanduíche de fiambre"
- A neurocientista da Faculdade de Ciências falou sobre a forma como "a memória é influenciada por muitas coisas", porque "nós [os seres humanos] não somos robôs".
- Luísa Lopes refere que "todos os sentidos influenciam a memória" e dá o exemplo de memórias simples que todos podemos ter, associadas, por exemplo "ao cheiro do bolo da avó", que pode tornar uma memória mais agradável.
- A académica frisa também o peso das emoções. "Na memória temos dois canais a convergir para o mesmo sítio: zonas de factos e zonas de emoções. Quando as duas se juntam e sincronizam no mesmo evento, esse evento fica reforçado na nossa memória", diz.
- É neste contexto de ênfase emocional que a neurocientista justifica o facto de "memórias traumáticas ficarem mais marcadas" (uma experiência de guerra, uma violação sexual, a perda de um ente querido). "As memórias associadas a esse evento ficam muito mais marcadas, mesmo que seja uma coisa tão insignificante quanto alguém comer uma sanduiche de fiambre nesse dia", remata.
- Luísa Lopes afirma ainda que "a memória é muito boa quando não tem mais nada à volta", referindo-se à "carga emotiva" que ela comporta. Para isto, usa o exemplo de "quando as pessoas vão fazer um exame e têm uma branca", onde é clara a "dissociação entre saber os factos e saber evocá-los".
"Apesar de sermos do mesmo pai e da mesma mãe, não somos iguais"
- Questionada sobre quais eram os fatores que influenciavam a formação da personalidade, a neurocientista destaca três: a genética, o desenvolvimento e os fatores ambientais e externos.
- Luísa Lopes afirma que a genética tem que ver com a ascendência, "por isso é que muitas vezes dizemos 'sais mesmo ao teu pai ou à tua mãe'".
- O desenvolvimento, diz a professora universitária, está relacionado com "os primeiros anos de vida". Luísa Lopes considera esta fase da vida "crucial" para o desenvolvimento, por exemplo, da autoestima.
- Os fatores ambientais e externos estão diretamente relacionados com a forma como vivemos, "coisas que mudam a nossa personalidade".
- Segundo a neurocientista, o ser humano é a junção de tudo isto, "por isso é que duas pessoas que vivem a mesma coisa vão percecioná-la e reagir de forma diferente".
- É deste modo que Luísa Lopes relembra que no livro "Correções" havia "três filhos e todos tinham queixas diferentes" porque "as emoções vão condicionar o tipo de memória que temos". Deste modo, esclarece o facto de não poucas vezes os filhos se sentirem melindrados por situações que aconteceram há bastante tempo e das quais os pais pura e simplesmente não se lembram.
"O medo faz parte de qualquer sociedade em mudança"
- Sobre as mudanças que a tecnologia pode causas nas sociedades, a neurocientista diz que estas não existem "sem medo". Relembra que "quando surgiu o primeiro filme do comboio em andamento dos irmãos Lumière, as pessoas saíram da sala com medo, e daí começou o cinema
- Na ótica de que "todos somos avessos á mudança enquanto seres humanos", Luísa Lopes diz não ser "nada fatalista de que o que é novo possa ser pior", e diz o mesmo sobre a tecnologia.
- Neste quadro, a académica fala da pandemia COVID-19, e afirma que "tivemos uma capacidade de adaptação extraordinária" no que toca à tecnologia. Mas deixa uma nota, que admite ser mais pessoal ou filosófica: "não podemos perder de vista aquilo que queremos enquanto humanidade".
- A neurocientista destaca ainda as vantagens da tecnologia no que toca às vantagens culturais: "como sou muito a favor do acesso ao conhecimento de forma democratizada, sou muito a favor da tecnologia".
"Nós zoomitamos"
- No que toca à depressão e aos estilos de vida de podem evitar ou incitar a isso, Luísa Lopes esclarece que "não se consegue ter muitos estudos em que comparemos estilos de vida".
- A neurocientista enfatiza, no entanto, que muitas vezes a opção para resolver esta problemática é tomar o rumo mais fácil: preferimos tomar três comprimidos porque é mais fácil do que passar três meses a fazer exercício físico, a meditar, a comer bem (…) é a sociedade do quick fix".
- Num cenário de "sociedades industrializadas e altamente rápidas, em que a economia move tudo", a académica afirma que melhorámos imenso algumas coisas como "os cuidados de saúde", mas questiona-se sobre se as pessoas viverão de facto melhor e fala numa certa necessidade de equilíbrio.
- As palavras de Luísa Lopes introduzem-nos ainda o conceito de Blue Zones – locais onde as pessoas têm maior esperança média de vida. São eles: Okinawa (Japão), Sardenha (Itália), Nicoya (Costa Rica), Icaria (Grécia) e Loma Linda (Califórnia). E qual é o segredo? "As pessoas estão mais na rua, têm um sentido de comunidade maior (em comunidades pequenas em que as pessoas cuidam umas das outras), têm uma boa alimentação, fazem exercido físico (não marcado no ginásio com o personal trainer), são comunidades normais que têm a horta, têm a sua vida. Nós sabemos isto e isto funciona, mas isto tem um custo muito elevado. Se são pessoas que fazem Zoom e que estão na internet o dia todo? Não! Nós zoomitamos!"
"Descambou nesta irracionalidade generalizada de seguir o Trump"
- "Já vimos uma sociedade mudar com o medo". O comentário da neurocientista surge olhando para o contexto em que o livro foi escrito: 10 dias antes do atentando às Torres Gémeas. A obra é vista por muitos como um retrato do sentimento pós-11 de setembro.
- Luísa Lopes esclarece que esta questão é do domínio da sociologia e dá o exemplo da Alemanha nazi que, "nos anos 30 era tranquila. O que se viu foi uma situação cúmplice aos bocadinhos".
- Na ótica da académica houve nitidamente "pessoas que ficaram traumatizadas" com o 11 de setembro que, acrescenta, "mudou a forma como os Estados Unidos e todos nós vemos o mundo".
- A académica descreve "uma ameaça externa e ao mesmo tempo uma sociedade que já estava com graves problemas sociais e económicos, e tudo descambou na, e aqui é uma opinião pessoal, nesta irracionalidade generalizada que é seguir o Trump".
Recomendações dadas durante sessão para perceber melhor a mente humana:
- Filme "O Diário da Nossa Paixão", inspirado no romance de Nicholas Sparks (disponível na Netflix) – Debruça-se sobre a história de um casal de idosos, cujo marido todos os dias relembra à esposa, vítima de Alzheimer, a sua bonita história de amor.
- Série "Os Sopranos", de David Chase (disponível na HBO) – Conta a história de membro da máfia, chefe de família, que recorre várias vezes a uma terapeuta.
- Série "Mindhunter", de Joe Penhall (disponível na Netflix) – Narra o trabalho de agentes do FBI que entrevistam assassinos em série, com o objetivo de entender as suas motivações para matar.
- Série "Uma Família Muito Moderna", de Christopher Lloyd e Steven Leyitan (disponível na Netflix) – Série de humor que retrata as vivências de uma família com personagens... peculiares.
- Documentário "Três Estranhos Idênticos" (disponível na Amazon) - Descreve uma experiência feita com três gémeos idênticos separados à nascença, nos anos 60, época em que a ciência não teria tantos princípios éticos.
Reflexões de Luísa Lopes sobre "Correções", a COVID-19 e as eleições dos Estados Unidos: "O livro podia ser premonitório"
"O livro podia ser premonitório, a caricatura dos extremos. (…) Podia ser um livro do Saramago, ele era muito bom a mostrar a distopia, estas coisas estranhas. (…) Ou seja: de mostrar a fraqueza humana no seu pior. Nós todos somos capazes de matar se ficarmos sem comida, é uma questão de sobrevivência, destes extremos da crueza humana. Olhando o que nós estamos a viver este ano [COVID-19] é surreal, podia ser claramente um filme. Portanto eu acho que é um livro muito premonitório depois das coisas que aconteceram nos Estados Unidos. É o país capaz do melhor do mundo e do pior do mundo."
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