Steve Lacy teve um problema muito grande. Em 2022, 'Bad Habit', segundo single do seu segundo álbum, “Gemini Rights”, tornou-se viral no TikTok, principalmente após os fãs terem acelerado digitalmente a canção (o que levou a editora RCA a lançar a sua própria versão acelerada, algo que Lacy considerou "nojento"). Resultado: nos seus concertos ao vivo, os pagantes iam para ver apenas esse tema em específico, e apenas os 20 segundos que se tornaram virais, erguendo bem alto os seus telemóveis para acrescentar mais inanidades às suas contas pessoais nas redes. No final de outubro, em Nova Orleães, Lacy viu-se obrigado a parar o espetáculo para pedir aos fãs que não atirassem objetos para o palco, antes de partir a máquina descartável de um fã e abandonar em protesto. “Podia ter reagido melhor? Sim, mas não creio que tenha de pedir desculpa”, disse mais tarde.
O problema de Lacy é um problema, convenhamos, transversal aos concertos de grandes artistas pop e rock. E já é um problema com largos anos. Lembramo-nos, por exemplo, dos Nirvana, que chegaram mesmo a cortar 'Smells Like Teen Spirit' dos seus alinhamentos, para afastar a ralé dos verdadeiros fãs. Os Radiohead fizeram o mesmo com 'Creep'. Lacy ainda não chegou a esse estatuto, mas tem todo o direito de se sentir chateado: nenhum artista gosta de ser um meme. A não ser que se faça desse meme uma carreira, existindo também exemplos vários disso (como Chico da Tina, que atuou à mesma hora que o norte-americano, no Palco Somersby).
O problema de Lacy não se fez sentir assim tanto nesta última noite de Super Bock Super Rock. Sim, o público filmou a performance de 'Bad Habits', coisa que pouco havia feito ao longo do demais concerto. Mas, e ao contrário dos norte-americanos, também se dignou a cantá-la, algo que terá agradado a Lacy, homem a caminho de se tornar numa grande estrela da pop, já depois de se ter dado a conhecer ao mundo através dos The Internet, projeto parte do coletivo Odd Future, de Tyler, the Creator ou Earl Sweatshirt.
Com duas torres em palco onde a sua imagem era projetada, com Chico da Tina a soar no horizonte, Steve Lacy entrou com dez minutos de atraso para, óculos escuros, guitarra a tiracolo e a maior das fixezas, começar com 'Helmet', um dos temas de “Gemini Rights”. O público gritava, viu-se uma rapariga contorcendo-se toda no chão, cedendo as suas faculdades físicas e mentais ao som daquele R&B romântico. Que o ficou ainda mais com a slow jam de 'Buttons', imediatamente a seguir.
“É a primeira vez que toco em Portugal, é fixe...”, disse, com uma atitude a roçar a estafa característica da Geração X. Portugal é fixe e Lacy quer também ser fixe, o supra-sumo dessa coisa que tem imensos significados para imensa gente. Tão fixe que, à semelhança de Nile Rodgers, no dia anterior, fez questão de puxar dos seus próprios galões: “faz hoje um ano que lancei um álbum que ganhou um Grammy”, referindo-se a “Gemini Rights”. Fomos confirmar à Wikipedia e, sim, “Gemini Rights” foi lançado há precisamente um ano, e mais tarde os presentes haveriam de lhe cantar os parabéns. “Isso deve ser uma cena portuguesa...”, chutou.
'Lay Me Down' termina com um daqueles solos de guitarra capazes de fazer a terra estremecer, antes de Lacy voltar à languidez do seu funk com toques psicadélicos. Em cima, a voz - uma voz que, para todos os padrões possíveis e imaginários, não é uma grande voz mas que, bem mais importante que isso, é uma voz que resulta, espécie de crooning anasalado que confere o grau certo de sensualidade a esta música, navegando entre a entoação melódica e uma palavra quase falada. 'N Side' teve um público maioritariamente feminino, o mesmo que gritava com cada simples dedilhar da guitarra, a acompanhá-la.
De 'C U Girl' passou para 'Sunshine', canção que conta com a colaboração de Foushée, e Lacy diz imediatamente “quem me dera que ela estivesse aqui”. Num concerto que ficou também marcado por algumas conversas estranhas com o seu roadie, Steve Lacy mostrou algum talento, mas pouco concerto, na aceção extraordinária que tendemos a dar à palavra. Foi, no fundo, independentemente de 'Bad Habits' ou não, uma coisa marca branca: consumimos porque é barato e nem sabe mal, mas sabemos que há produtos bem melhores.
Do mesmo problema sofre Pinkpantheress. Ao contrário de Steve Lacy, a jovem britânica não é conhecida por causa do TikTok; a sua música nasceu no TikTok, e é tão curta quanto os vídeos da plataforma – canções de um ou dois minutos, drum n' bass despolitizado e lavado para uma geração demasiado nova para ouvir Goldie no apogeu mas sempre pronta a curtir uma batida ligeiramente mais agressiva que o 4/4 costumeiro. Logo no início de um espetáculo de 40 escassos minutos (“vou tentar dar 1h de concerto mas não tenho assim tantas canções...”, desculpou-se mais à frente), Pinkpantheress fez aquilo que hoje em dia se quer de um artista num concerto ao vivo: pegar num telemóvel alheio para tirar umas quantas selfies. E não se esquecer do “êxito”, que no seu caso é 'Boy's A Liar', que levou imediatamente várias pessoas a correr para as grades apenas para a escutar.
A sua voz cor-de-rosa, auxiliada por backtracks tão óbvias quanto o pó do Meco, confere ao instrumental eletrónico uma tonalidade meio infantil, qual Barbie a cantar no conforto do seu quarto. Não, não soa nada mal, mas que ninguém se diga junglist por gostar disto. Ishkur, nome pelo qual é conhecido um cibernauta canadiano que, na viragem do milénio, construiu uma das páginas mais conhecidas dos melómanos (“Ishkur's Guide to Electronic Music”, a história da música eletrónica contada com imensa acidez, amor pelo som e samples vários), descreve-o melhor: “a música pop não é um género, mas um processo. O objetivo da pop é aguar e alisar a música, tornando-a ao gosto de avós e crianças […] todos os géneros de música atraiçoam o seu caráter quando se tornam pop, e assim que se tornam pop, é muito difícil que a sua essência underground persista”. Pinkpantheress não será nem a salvação nem a bandeira do revivalismo drum n' bass mas, ao adotar a sua estética sonora para construir canções que tão depressa se apreciam como se esquecem, é bem capaz de vir a ser a sua morte.
Kaytranada e Parov Stelar deviam ter consultado um mapa: pediram a Lisboa para se erguer e dançar ao som do seu house (o primeiro) e do seu electro-swing (o segundo), não se apercebendo que estavam no distrito errado. Centralismos à parte, fizeram o que lhes competia, que era no caso de Kaytranada aquecer o público de Steve Lacy e no caso de Parov Stelar levar esse mesmo público a despedir-se em grande do festival. Por falar em festival, foi triste ver uma artista como Surma a atuar no quarto palco do Super Bock Super Rock, a uma hora (16h20) em que o recinto ainda se encontrava escasso de pessoas.
Mas já se sabe como funciona este tipo de eventos em Portugal: os nossos são muitas vezes relegados para segundo plano. Não que isso tenha impedido a leiriense de assinar um belíssimo concerto, tornado ainda mais estratosférico pela presença de Pedro Melo Alves na bateria (porque tudo soa melhor quando entra o free jazz). Apesar de um erro técnico ao início, Surma deambulou pela dança e pela folk bucólica, não esquecendo a imprescindível 'Maasai'. Já os Ezra Collective contaram com um contingente considerável de seguidores, mexendo os corpos ao som do afrobeat debitado pelo grupo britânico, que teve em palco o Leão da Tribo de Judá rastafari e a mensagem: Super Bock is where I'm meant to be. Numa impressionante demonstração de músculo, tornaram o forte sol mais agradável de se sentir, e terminaram no meio do público. Como deve ser.
O Super Bock Super Rock regressa à Herdade do Cabeço da Flauta em 2024 e já há datas: de 18 a 20 de julho.
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