Fiel ao seu estilo, o Presidente da República percorreu vários temas acerca da literatura e do livro de forma vertiginosa, confessando mesmo perante Clara Capitão que estava a fazê-lo assim para poupar-lhe trabalho e economizar tempo. Ainda assim, apesar desta versão em modo compacto do seu pensamento, Marcelo Rebelo de Sousa deixou algumas luzes (e avisos) quanto ao mercado editorial e o estado da literacia em Portugal.

No entender do chefe de Estado, o cerne da mudança está nos mais novos. São eles que estão a mexer com as vendas, são eles que são receptivos aos ebooks e ao mercado digital, algo que “não entra nos mais velhos, e nós somos uma sociedade envelhecida”. “Eles são o futuro. Que as crianças continuem a ler, que os jovens continuem a ler e que puxem pelos menos jovens. Que se puxe por aqueles menos jovens que não têm condições para ler”, apontou.

Já que o tema é literatura, peça-se emprestada uma frase de um dos maiores vultos de sempre das letras: “as notícias da morte dos livros foram um exagero”, como diria Mark Twain. Os dados apresentados durante o primeiro dia do evento Book 2.0 — cimeira organizada Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) — mostram que o mercado editorial português registou um crescimento de cerca de 7% em 2023 face a 2022. Mais importante ainda, são os mais novos que estão a comprar mais cada vez mais. Pode ler tudo aqui, em detalhe.

É perante este panorama mais otimista que o Presidente da República encerrou o primeiro dia do Book 2.0 na sessão “Os desafios do livro e da leitura em Portugal no século XXI”, afirmando em conversa à Diretora Geral da Penguin Random House Portugal, Clara Capitão, que “estamos neste momento a ganhar modestamente esta guerra”.

Falando-se de desafios, há vários que impedem a leitura, e não são apenas a velhice ou a incapacidade de abraçar um mundo digital. Marcelo assume-se como um privilegiado que cresceu rodeado de livros e familiares leitores, mas, como recordou, Portugal tem “uma sociedade muito desigual”. “Nós temos dois milhões constantes de pobres, que sobem em tempo de crise. Quem, aos 2, 3, 4 anos de idade, tem uma discriminação económica e social à partida, fica marcado, substancialmente, para uma parte muito significativa do percurso escolar e educativo, para não dizer para a vida. Uns dão a volta, melhor ou pior, mas essas desigualdades marcam”, alertou.

Além disso, como fez questão de assinalar, a pandemia acentuou estes problemas. “Eu tinha amigos que diziam ‘vai-se ler mais, estão mais tempo em casa, não têm mais nada que fazer, vão ler mais’. Não, leram menos. Porque eles não estão nas casas onde que estão os privilegiados, em que há espaço, uns para ler, outros para ouvirem música. Não, estão em T0s ou T1s, com não sei quantas pessoas, em que não há espaço para nada. Quando se recorreu à televisão com o método de atenuar naqueles dois anos coletivos o que se passava, nós não estávamos num país nórdico, nem num país báltico nem num país do centro da Europa na utilização do digital. Estávamos numa sociedade em que realmente tinha subido o número correspondente à pobreza. E aí onde é que há espaço para ler livros? E onde há que há espaço para o digital? E quem tem acesso ao computador e em que termos?”, apontou.

A desigualdade também passa pelo acesso ou falta dele — com um dos mais óbvios problemas a passar pela falta de livrarias ou superfícies que vendam livros em zonas do interior do país. “Precisamos de livrarias independentes, que estão a morrer que nem tordos. É fundamental. Passamos a vida a falar em descentralização, pois como é que se descentraliza se de facto se pensa apenas na grande Lisboa e na grande Porto? Eu, por exemplo, estive agora em terras e em municípios que têm uma papelaria-livraria. E essa papelaria-livraria não tem condições de sobrevivência e é das únicas naquela zona”, lamentou.

Mas se alguns dos principais desafios do livro em Portugal passam por condições sistémicas de desigualdade económica, geográfica e social, outros podem ser combatidos com medidas simples ou com o desempoeirar de mentalidades. “Precisamos de uma ação global, é uma ação que é fundamental e que tem de ter humildade para admitir novos tipos de leitura”, atirou. Como por exemplo? “Eu dizia a alunos meus na Faculdade de Direito de Lisboa que pode ser um jornal desportivo, pode ler-se a partir de um podcast, ou ler a partir de um programa, ou de um testemunho, ou de um debate numa rede social. É diferente do que era ler em outros tempos? Não sei, não interessa. Há ler e ler — o ler de uma maneira é um caminho para ler de outra. Nós temos de ganhar leitores”, frisou. 

Uma forma de isso acontecer passa também pelo papel dos “novos meios de comunicação social”, que “têm influencers que influem nos livros”. “Têm, de facto, dado algum relevo aos livros, mas é um domínio para explorar, porque têm uma penetração enorme nos jovens. Tem um impacto brutal”, atirou. Já em relação a meios mais tradicionais, o Presidente da República lamenta que a televisão — ainda hoje o grande meio de massas para uma parte significativa (e envelhecida) da população — não faça o suficiente pela promoção do livro.

Noutras medidas concretas, Marcelo pediu que se reveja a lei do preço fixo para melhor auxiliar as editoras, assim como o Plano Nacional de Leitura, que “tem vindo a ser melhorado no tempo, mas está datado. Eu tenho a sensação que é preciso repensá-lo”. Em relação ao cheque livro, o chefe de Estado sugeriu que é preciso avançar com essa ideia. “Nenhum de nós sabe se dará resultado ou não. Gosto da ideia e gostava de vê-la aplicada. Tem de se fazer uma experiência para ver se vale a pena ou não, se estimula ou não estimula [a leitura], mas é uma de várias práticas possíveis. É preciso encontrar outras fórmulas imaginativas para realmente apelar à leitura. Qualquer que seja a leitura".

Da sua parte, Marcelo tem vindo a promover a literatura e o setor editorial sempre que pode, sendo a maior expressão disso a Festa do Livro de Belém, que organiza desde 2016, assim como a doação de 300 mil volumes que fez da sua coleção privada à Biblioteca de Celorico de Bastos. Mais do que isso, porém, já não vai fazer, recordando os seus tempos de editor. “Eu adoro livros, passo a vida a discutir livros, a minha vida é livros, eu sei dos problemas. Eu fui editor! Perdi fortunas como editor, deu-me um gozo imenso editar livros que ninguém lia, sobretudo de direito, mas fui felicíssimo. Depois parei, porque era muito dinheiro”.

A interseção entre a cultura e a educação — uma oportunidade perdida

“Não há dúvida que a leitura é um caminho de educação. A educação é um caminho de qualificação —  é a qualificação que faz a diferença”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa na sua sessão. Antes, Clara Capitão tinha recorrido a uma frase de Frederick Douglass, ex-escravo que se fez homem livre e intelectual maior nos EUA do século XIX: "a partir do momento em que aprendes a ler, serás para sempre livre".

Dada a importância que a leitura tem para emancipação e a ferramenta que representa para a formação de cada um, não é de estranhar que, antes de Marcelo encerrar este primeiro dia do Book 2.0, tenha ocorrido uma conversa subordinada ao tema “A Intersecção entre a Cultura e a Educação”, contando com dois membros do Governo encarregues dessas duas pastas. A Educação foi representada pelo Secretário de Estado Adjunto Alexandre Homem Cristo, ao passo que a Cultura era suposto ter a ministra que a tutela, Dalila Rodrigues, presente, mas por uma questão de conflito de agenda, foi a sua Secretária de Estado, Maria de Lurdes Craveiro, em seu lugar.

A conversa foi moderada pela jornalista da RTP Daniela Santiago, que se apresentou não só na condição acrescida de autora e leitora, como também de “professora universitária” que nos últimos anos tem ficado “constrangida com os alunos que aparecem nas aulas”. “Eles querem ser jornalistas, mas dão erros terríveis, chegam a dizer com regozijo que nunca leram um livro na vida e isto para mim é absolutamente tremendo e acho que nos deve preocupar a todos”, afirmou no preâmbulo.

Estava dado o tónico de uma conversa que acabou por focar-se mais no tipo de medidas no imediato que o Governo poderá implementar no campo da educação do que a relação desta área com a da cultura na formação para a cidadania. Houve um lampejo disso quando Maria de Lurdes Craveiro lembrou que menores hábitos de leitura não se repercutem necessariamente numa falta de interesse pela cultura. “Na realidade, poderá constatar-se algum alheamento pela leitura, pelo livro, mas o interesse pela cultura nunca se esgota. Somos praticantes da cultura em cada um dos momentos da nossa vida, talvez haja é alguma falta de interesse pelas ferramentas culturais que estão à nossa disposição”, apontou.

Já Alexandre Homem Cristo negou previsões catastrofistas quanto aos hábitos de leitura dos jovens, apontando que, na verdade, os índices apontam para uma melhoria — sobretudo relativamente aos anos da pandemia. Nesse domínio, o governante não deixou de frisar que “a leitura é, no fundo, a chave mestra do sistema educativo e da aprendizagem”. “Um aluno, nos primeiros anos de escolaridade — em particular nos primeiros dois anos de escolaridade — está no momento em que adquire as suas capacidades leitoras, de ler e escrever. Se esse momento não for bem sucedido, muito dificilmente teremos um aluno com potencial sucesso escolar em várias disciplinas. Um aluno que não percebe um problema enunciado em matemática não consegue responder às outras perguntas”, declarou.

No entanto, o tónico dado pela moderação foi sobretudo quanto às estratégias para a educação de um Governo que tomou posse na reta final do ano letivo anterior e esteve a preparar o início do seguinte, valendo respostas vagas sobre trabalho em curso e medidas a serem gizadas. Por exemplo, previsivelmente, houve pouco a dizer quando a pergunta foi sobre as colocações dos professores: “Quanto ao número oficial, as escolas não abriram, portanto, ainda não há alunos sem aulas”, disse Alexandre Homem Cristo, arrancando gargalhadas da audiência.

O que o secretário de Estado pôde de facto avançar é que está a olhar para o tema da digitalização na sala de aula — que tanto pode ser encarado como benéfico como problemático. Um desses temas prende-se com a questão da potencial proibição dos telemóveis em contexto escolar. “Estamos, neste momento, a preparar orientações para as escolas. Serão partilhadas no arranque do ano letivo. Sabemos que é um assunto importante, não só porque tem havido tendência internacional de avanços e recuos, mas também porque é um tema para os quais nós sentimos que há, da parte das escolas, necessidade de perceber qual é a evidência e, com base nessa evidência, poder tomar decisões informadas”, explicou o governante.

No fim de contas, afirma, “o foco é nós sabermos que, em vez de entrarmos em lógicas de sim ou não, devemos entrar em lógicas de perceber que o uso do digital na educação tem potencial, mas se estamos a falar de smartphones no recreio, a questão é completamente diferente. É preciso fazer esta diferenciação e dar orientações às escolas para que possam tomar as suas decisões nesse sentido”, atira.

O mesmo se aplica à “questão do projeto-piloto dos manuais digitais”, que vai no seu quinto ano de existência. “Nós achamos que, para definirmos o futuro deste projeto, é preciso termos uma avaliação de impacto sobre a aprendizagem. Essa avaliação de impacto ainda não existe e, portanto, o que nós decidimos foi, com base na evidência internacional e também de alguns inquéritos que nós tínhamos sobre este projeto, reduzir o âmbito dele nas escolas. Neste momento, tirámos das novas turmas do primeiro ciclo e no secundário, concentrámo-lo no segundo e terceiro ciclo e vamos agora fazer, ao longo deste ano letivo, uma avaliação de impacto para sabermos”, afirmou Alexandre Homem  Cristo.

No entender do governante, “o digital pode ou não ser positivo — depende de muitas formas como ele pode ser usado”. Nesse departamento, o entendimento da sua colega de Governo é idêntico. Questionada se “o digital mata o livro ou ressuscita a leitura”, Maria de Lurdes Craveiro foi perentória em desabar esse binómio. “De facto, o digital e o livro são duas estruturas completamente compatíveis. Recordamo-nos todos de que, quando o mundo digital começou a invadir as nossas vidas, todos tivemos receio dos eventuais malefícios que esse processo viesse a trazer à nossa própria formação. Afinal, decorridos anos, e já porventura algumas décadas, todos percebemos que são dois mundos compatíveis”, afirmou.

O mesmo acontecerá, diz, com a inteligência artificial e os seus riscos. No seu entender, o antídoto à desumanização acética que o digital pode trazer é uma “uma formação adequada, honrada, com princípios, com valores, que nos permitem verdadeiramente conciliar os dois mundos”. “Não creio que devemos estar, enfim, apreensivos quanto a essa matéria. Uma coisa não aniquila a outra, não é? Portanto, podemos continuar a conviver tranquilamente com os dois mundos, que seremos seres humanos capazes de enfrentar todos esses desafios”, concluiu.