“Não tenho planos. Soube disto há duas ou três semanas, embora o pudesse antecipar, não tendo notícias. Se não sabemos de alguém que está na guerra... Não tenho planos, porque estava aqui de alma e coração”, acrescentou.
No horizonte, terá, em dezembro, a última encenação enquanto diretor artístico, de “Uma Noite no Futuro”, no Teatro Carlos Alberto, parte do projeto TNSJ, que combina “Auto da Fé”, de Gil Vicente, com “Velha Toada” e “A Última Gravação de Krapp”, de Samuel Beckett.
Mais para a frente, há “um concerto dos Drumming, mais para o verão de 2019”, mas também “uma encenação de uma ópera na Casa da Música, em 2020”, e a “certeza” de que vai continuar “a construir coisas”, até porque diz não fazer parte “da dança das cadeiras”.
“Sempre fui ‘freelancer’, portanto provavelmente vou voltar a essa condição. Imagino que ainda tenha alguns anos de sanidade mental e que ainda possa aliar-me a outras estruturas, e outros criadores, para continuar a construir. A notícia é recente, e o meio pensará por si o que quer de mim”, explicou, em entrevista à Lusa, a pouco mais de dois meses da saída de um cargo que ocupa desde 2009.
Em 2019, o cargo será ocupado por Nuno Cardoso, anunciado como novo diretor artístico em 02 de outubro, encenador nascido em 1970, até aqui diretor artístico da Ao Cabo Teatro, e responsável por encenações de alguns dos maiores nomes da dramaturgia mundial, de Ésquilo a Molière, Henrik Ibsen, Federico García Lorca, William Shakespeare, Lars Norén ou Eugene O’Neill, entre muitos outros.
Carinhas admitiu ainda ter “toda a consideração profissional” pelo seu sucessor, mas confessou achar “estranho não ter sido tido nem achado” na escolha do nome que se segue, recusando, por isso, comentar a nomeação.
“Tenho toda a consideração profissional pelo Nuno Cardoso. Acredito que irá fazer um ótimo mandato, porque sei em que barco é que vai ser timoneiro. Acredito que terá equacionado toda a sua vida que um dia viesse a ser diretor artístico no teatro nacional. É uma pessoa profundamente enraizada na cidade, tem o seu núcleo de atores, e o seu público, também”, analisou.
A nova peça, “Uma Noite no Futuro”, resulta de uma colaboração com o presidente do Conselho de Administração, Pedro Sobrado, que “já existia e continuou depois da nomeação”, e liga sob um “chapéu conceptual” três dramatículos, dois de Beckett e outro de Gil Vicente, dois autores marcantes no percurso do encenador, ainda que a peça “já estivesse programada antes” da notícia da sua saída.
A 27 de março do próximo ano, Carinhas encena, com Fernando Mora Ramos, uma produção própria do TNSJ, com um texto do dramaturgo Martin Crimp, “The Rest Will Be Familiar To You From The Cinema”, que o diretor artístico traduziu como “’E o Resto Nós Sabemos do Cinema’”, em que Crimp reescreve “As Fenícias”, de Eurípides.
O britânico, de resto, vai estar no Fórum do Futuro, que decorre no Porto de 04 a 10 de novembro, revelou o encenador lisboeta, “já antecipando essa peça”, uma vez que a obra se relaciona com o tema do evento da Câmara do Porto para este ano, a Antiguidade e o “classicismo no quotidiano”.
O ano de 2019 arranca, no TNSJ, com uma nova peça de Josef Nadj, o sérvio que já passou pelo mesmo palco em 2012, com “Atem le Souffle”, e que, na segunda vinda, tem na instituição portuguesa “um parceiro da produção desde o início”, estreado na Bienal de Dança de Lyon 2018.
“Essa estratégia é uma das que queria poder continuar, a de investir em coproduções de artistas pelos quais tenho admiração, e poder ser coprodutor de espetáculos que sabia que iam correr o mundo com a marca do TNSJ”, comentou.
A vida cultural do Porto
“Há aqui muito bons fazedores, que inclusivamente têm agora extensões internacionais interessantes. Enquanto há uns anos se procurava parceiros nacionais, agora imediatamente se procuram parceiros internacionais, com quem acabam por ter mais relações”, analisou o encenador, em relação à cidade do Porto
Questionado sobre a dinâmica cultural no Porto durante o seu trabalho no TNSJ, e comparando-a com a verificada há dez anos, Carinhas elogiou a “muita vibração” nos campos culturais da cidade, que vivem “um fervilhar de fazer muito grande”.
O nascimento do projeto do TNSJ, em 1992, levou ao aparecimento de várias companhias e estruturas culturais, a juntar-se às que já existiam, e “o teatro independente revigorou-se” a partir daí, também por encontrarem no São João “uma espécie de âncora, até só como um exemplo, e é isso também que um teatro nacional deve fazer”.
Assim, o edifício na praça da Batalha, bem como o Teatro Carlos Alberto, foi também “uma escola para dezenas de pessoas”, criando um padrão “de qualidade e exigência” que foi transposto para o resto da cidade.
A crise financeira que o país atravessou em anos recentes afetou “os tecidos mais frágeis, os que sofrem mais rapidamente”, o que inclui essas pequenas companhias, e por isso o TNSJ deu a mão a muitas estruturas, com coproduções e parcerias.
“Não podia assistir ao esfarelamento e à diluição dessa massa artística que se tinha gerado, e achei que era dever de quem tinha uma casa maior, e um teto que não deixasse entrar água. (...) O teatro nacional português é feito pelo trabalho dos grupos independentes, isso é um dado histórico incontestável”, justificou o ainda diretor artístico, que destacou o papel, como “parceiro regular e forte”, do tecido independente.
Nesse tempo, há ainda assim várias “perdas difíceis”, como “o desaparecimento de As Boas Raparigas [companhia de teatro]”, mesmo que hoje se viva “um fervilhar e intensidade de fazer na cidade muito grande, não só ao nível do teatro mas no resto das artes performativas”.
O diretor artístico destacou “o bom relacionamento com as instituições fortes da cidade, a Casa da Música e Serralves”, com várias iniciativas partilhadas, e a reabertura do Teatro Rivoli, sob a alçada do Teatro Municipal do Porto, que também originou a reabilitação do Teatro Campo Alegre.
“Foi positivo para todas as instituições, não só para o Rivoli. (...) Foi muito importante, porque criou dinâmica pública. Há uma dinâmica de discussão de espetáculos, de expetativa em relação ao que aí vem, colecionam-se programações”, referiu.
Segundo Nuno Carinhas, que tem atualmente em cena “Otelo”, de William Shakespeare, a cidade tem “muita vibração”, com circulação entre as instituições culturais, o que reflete também uma alteração na própria cidade com a gentrificação.
Pesando “o lado positivo e o negativo”, há “muitas coisas boas que podem advir” de uma cidade diferente e com mais turistas, mas também para estudantes e trabalhadores estrangeiros, e por isso o TNSJ tem todas as suas peças legendadas.
“Tem de haver a possibilidade de alguém que esteja a aprender português venha ouvir Shakespeare ao Teatro Nacional. Essa janela é absolutamente importante”, reforçou, apontando ainda o número “de línguas a vaguear e a cruzar-se na cidade”.
O São João, afirmou, “não se pode fechar e tem de estar atento a esse pulsar coletivo”, olhando para o que aconteceu durante os anos da crise, em que “as pessoas começaram a vir muito ao teatro para falar, ouvir falar e discutir”.
“Foi um momento bonito da manifestação do teatro como um pólo agregador de assuntos e especulações, no fundo um lugar de cidadãos”, reiterou.
A ligação às escolas, que visitam frequentemente as produções e acolhimentos da casa, e são por seu turno visitados por oficinas para alunos e professores por profissionais do teatro, é também um ponto importante do tempo de Nuno Carinhas à frente da instituição, pela formação de novo público, mas também pelo peso que “presenciar um espetáculo como ‘Antígona’” pode deixar nos jovens, que “não podem ficar indiferentes perante aquela personagem”.
“Qualquer bom espetáculo pode ser visto por qualquer geração, desde que depois seja especulado, visto e comparado e interligado com o quotidiano de cada um, do mundo, e isso é um trabalho absolutamente notável que o teatro pode fazer”, apontou.
A crise “desgastou esses grupos” de jovens nas escolas, que passaram a ter menos dinheiro para vir mais vezes ao teatro, um “ótimo aferidor da condição social”, mas a situação tem sido recuperada com o tempo e trabalho, e com coproduções como “Montanha Russa”, de Miguel Fragata e Inês Barahona, dedicada à adolescência.
De saída do cargo de diretor artístico, Carinhas deixou ainda uma palavra às “pessoas que trabalham na casa”, qualificando-as de “absolutamente únicas na motivação e na vontade”, também porque muitos dos que lá trabalham “ainda são os mesmos da sua fundação”.
Para o criador, “é muito importante que estejam aqui pessoas extremamente curiosas de novas experiências, novos materiais, e que não se acomodem a nenhuma maneira de estar funcionária, que não existe, e por enquanto, essa é a 'seiva' da casa”.
“Às vezes penso: ‘agora vai acabar este serviço público, esta missão’. O que é facto é que essa missão nunca acaba. Enquanto artistas estamos sempre no serviço público”, considerou.
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