Dissemo-lo com os New Order, depois do concerto em Paredes de Coura, e poderemos voltar a repeti-lo com os Manic Street Preachers: não é fácil, para nenhuma banda, perder a figura que dava a alma necessária a qualquer banda. Tanto uns como outros foram obrigados a reinventar-se após a tragédia; os primeiros, com o suicídio de Ian Curtis, e os segundos com o desaparecimento de Richey Edwards, guitarrista e compositor, em 1995.
Esse mesmo desaparecimento acabou por criar um mito sebastiânico em torno da banda galesa. Ainda hoje há quem jure, a pés juntos, ter visto Edwards a passear-se em Goa, em Lanzarote ou noutros locais. Há quem imagine que este voltará, numa manhã de nevoeiro ou ensolarada, a tomar novamente as rédeas dos Manic Street Preachers. E há quem escreva livros onde se teoriza o que possa ter acontecido a Edwards: o último, “Withdrawn Traces”, foi editado este ano e contou com a aprovação da irmã do músico, Rachel.
Saber o que aconteceu de facto permanece um mistério, envolto no campo da especulação. O seu carro foi encontrado abandonado junto da Ponte do Camaleão, perto de Bristol, Inglaterra, conhecida por ser um local “apetecível” para suicidas. Amigos próximos de Edwards garantem que este nunca poria fim à própria vida, e o próprio disse em entrevista, um ano antes do desaparecimento, que “a palavra começada por 's'” não entrava no seu dicionário.
Independentemente disso, os Manic Street Preachers continuaram. Superaram o desaparecimento, as muitas dúvidas que ficaram por esclarecer, o facto de Richey Edwards estar hoje, legalmente falando, morto. Ultrapassaram a morte recorrendo à vida. Nomeadamente, com 'A Design For Life', o primeiro single a ser composto e lançado pela banda no período pós-Edwards. Ao longo de pouco mais de uma hora, essa mesma canção pôde ser escutada em Vilar de Mouros, num concerto que, mais que revivalismo, foi prova de que uma tragédia não tem que definir um futuro.
Sorridentes, coesos e francamente extáticos, os galeses regressaram a Portugal (o país que, tão bem lembrou o vocalista James Bradfield, ganhou o Campeonato Europeu) quase uma década anos após a sua última presença por cá, no (então) Optimus! Alive, em 2010 (mesmo que ele se tenha enganado e dado o ano de 2007 como data da sua última aparição). Na bagagem, um disco novo, “Resistance Is Futile”, e alguns dos êxitos que marcaram uma geração que, após a explosão grunge do início dos anos 90, foi forçada a procurar algo que fizesse esquecer uma outra tragédia, a de Kurt Cobain.
Celebração. É esta a palavra a reter. Da música, do renascimento, do futuro, da vida. Soube-se que o concerto seria especial quando, logo a abrir, os Manic Street Preachers se atiram a 'Motorcyle Emptiness', uma das suas canções mais celebradas, e que funciona também como (mais) um ataque ao capitalismo por parte de uma banda que nunca teve vergonha de se assumir de esquerda. Ouve-se um «vocês são incríveis» da praxe antes de 'International Blue', tema pop/rock onde são os teclados a conduzir a ação, até se chegar a 'The Everlasting', tema que faz parte de "This is My Truth Tell Me Yours" (1998). Em palco, poucos apetrechos, salvo um par de bandeiras galesas. Na fivela do baixista Nicky Wire, uma frase simples age como mantra: «Esta é a minha verdade». O que os Manic Street Preachers pregam, passe a expressão, é aquilo que cumprem.
Até final, os Manic Street Preachers dedicariam 'You Love Us' a todos os que estiveram com o grupo desde o início, antes de passarem por versões de 'Suicide Is Painless', tema-título da icónica série de televisão “M*A*S*H”, e de 'Sweet Child O' Mine', dos Guns N' Roses, para gáudio geral. A despedida do palco deu-se ao som de um dos seus maiores hinos, uma das grandes canções ativistas da década de 90: 'If You Tolerate This Your Children Will Be Next' que, na mesma semana em que a Amazónia arde, soou a aviso solene. Que a morte não nos tolde, como não o fez com eles, a capacidade de continuar a amar.
Amor é, também, o adjetivo que mais se poderá colar a Anna Calvi. A cantautora britânica foi dona e Senhora, com “s” maiúsculo, do palco principal do EDP Vilar de Mouros com os temas de “Hunter”, o seu último disco (2018), sem descurar trabalhos anteriores. A batida começa por nos chegar eletrónica, mas depressa é a guitarra elétrica que toma conta do éter: uma guitarra suja, crua, distorcida. Uma guitarra rock n' roll, de fazer corar muitos homens do rock n' roll.
Junte-se-lhe a voz operática de Calvi e a sua apetência extrema para criar momentos de alta tensão, como em 'Wish' ou 'I'll Be Your Man' (esta última em modo sedutoramente dançável), e eis-nos perante um dos pontos altos deste primeiro dia de festival. A fasquia subiria com 'Alpha', com Calvi a ajoelhar-se em tributo ao Grande Deus Rock enquanto debita feedback, e com uma versão de 'Ghost Rider', dos Suicide, onde o verso antigo também nos soou estranhamente atual: America is killing its youth...
Os Therapy? ocupariam pouco depois o recém-criado palco secundário com uma viagem aos bons velhos tempos da década de 90, num concerto onde se destaca, mais que a música, a enorme boa disposição do trio e sobretudo do vocalista Andy Cairnes. De todas as tiradas humoradas, sobrou esta: «Desculpem falar inglês, mas o meu português é horrível. Sou irlandês, pelo que o meu inglês também é horrível»...
A música brota ligeiramente semelhante a heavy metal de tons industriais, a espaços lembrando o melhor dos Nine Inch Nails, noutros aproximando-se do punk rock, mas sempre em modo enérgico. Começam com 'Wreck It Like Beckett', tema que abre o seu último disco, “Cleave” (2018), mas a literatura não pararia aí; mais tarde, interpretariam 'Potato Junkie', canção com um dos versos mais extraordinários do rock, e que fala sobre James Joyce fazer coisas pornográficas às nossas irmãs. Junto às grades, iam-se vislumbrando vários fãs da velha guarda, que não deixaram de cantar cada sílaba, ou de aplaudir as invetivas de Cairnes contra Donald Trump, Boris Johnson e o Brexit. E nem esqueceram os colegas de profissão e de festival: dois temas são dedicados aos Manic Street Preachers e aos Sisters of Mercy, e houve ainda tempo para uma versão de 'Isolation', dos Joy Division.
Com menos “velha guarda” mas não com menos história encontrámos os «semi-lendários» (palavras deles) Wedding Present, ao início da noite, a recuperar temas do seminal “George Best”, álbum editado em 1987 e que é um marco da chamada indie pop. Entrando à vez em palco, David Gedge (vocalista e guitarrista) por último, os Wedding Present passearam-se por 'Everyone Thinks He Looks Daft', 'You Should Always Keep In Touch With Your Friends' e 'Kennedy' com a mestria de quem sabe que aqueles tempos não voltam e que, por isso, há que celebrá-los.
Um pouco à semelhança dos The Cult, que fecharam a noite a uma hora talvez imprópria, especialmente para quem ainda tem que entrar ao serviço no dia seguinte. Mesmo assim, foi possível escutar clássicos do hard rock como 'Sun King', 'New York City', 'Automatic Blues' e 'Sweet Soul Sister', todos eles do mesmo álbum (também ele um clássico): “Sonic Temple”, que cumpre este ano 30 de existência, e o qual têm vindo a tocar pela Europa. Ian Astbury, de óculos escuros, cabedal e pose JimMorrisoniana, foi a personificação do rock num festival onde este se irá ouvir bem alto. Ou assim se espera.
O EDP Vilar de Mouros prossegue esta sexta-feira, com concertos de Sisters of Mercy, Nitzer Ebb, Clan of Xymox, House of Love e Offspring, entre outros. Os bilhetes diários estão à venda em todos os locais habituais, pelo preço de 35 euros.
[Artigo corrigido às 10:43. Richey Edwards era guitarrista e compositor dos Manic Street Preachers e não vocalista como anteriormente referido]
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