O gosto pelos crepúsculos
Durante muito tempo, o outro nome que dei ao Sexo foi Amor. Mas o nome que devia ter dado ao Sexo era Apetite. Um muito forte apetite. Um monumental distúrbio alimentar. Uma bulimia com fases de voracidade, de nojo, de vómitos, e seguia para bingo. Ingere-se, ingere-se e, como não se digere, deita-se fora e depois é o vazio, vem a fome, tem-se fome da fome e voltamos a encher a pança.
Trambolhão garantido. Um dia, acabou-se. O nojo. O distanciamento. A irritação. A vendeta. A despedida. O homem passa a ser apenas aquele que quer enterrar as garras. Tem raiva. Merece ser morto. Corto-lhe a cabeça.
Para mim, o sexo não era a consumação do amor ou uma das suas expressões, era sempre um ritual de mortificação. Tinha um prazer clínico em sentir-me suja. E era preciso que o ultraje fosse acompanhado de palavras. As palavras atacavam-me em pleno coração. E depois as palavras já não bastavam. E os gestos eram sempre os mesmos. Tão sujos com este como com aquele. Foi assim, sem alento, sem inspiração, que me pus a desejar a velhice. Só a velhice poderia atentar à minha integridade física. Como uma segunda pele que lacerasse a minha. A minha juventude conspurcava-se de um modo totalmente irreversível.
Aos vinte anos vivi histórias com um homem que tinha oitenta, promessa de uma derrocada inesquecível. Este homem tinha sobre mim um ascendente. Trabalhava para ele. E ele tinha de me ensinar um ofício. Pensava absorver o seu talento como uma esponja, sugar a substancial medula do génio criador. Aprender a fazer rir, aprender a viver. Só aprendi a morrer um pouco mais. Na realidade, ele é que absorvia a vida em mim. Estávamos os dois em transfusão. Eu, de morte; ele, de vida. E cada qual vivia uma experiência contranatura. Havia naquilo qualquer coisa de monstruoso. Aliás, ele não compreendeu quando me fui embora. Chamava amor ao que eu entendia ser uma doença. Já não era uma questão de palavras. Eu oscilava. Pensamentos de sexo ou de morte. Depois o sexo e a morte sobrepuseram-se para formarem uma única e mesma imagem.
Deixei-o.
Os anos foram passando.
E eu nunca deixei de repisar este momento da minha vida que ainda me rói como um desgosto. Quando penso nesse homem, sangro. Mas não é a ponta acerada de uma agressão na carne o que sinto, é uma vaga de fundo que me arrasta para o abismo.
E, no entanto, que tenho eu a censurar-lhe?
Dei comigo em casa dele para aprender. Mas a lição que recebi foi diferente da que eu esperava. Uma rapariga de vinte anos não tem nada a fazer sexualmente com um velho de oitenta. Por mais inteligente, divertido, brilhante que ele seja. Nada. Já que há uma proibição do incesto, devia haver uma proibição da velhice. O incesto tem a carga da congenitalidade, da consanguinidade, da deterioração genética sobre o grupo. A velhice, quando se atravessa na vida, traz a carga de uma capa de morte sobre o grupo, a velhice deveria transmitir antes de se extinguir e não extinguir antes de morrer. Risco? A não-reprodução. A extinção da espécie.
Entretanto vou dizendo a mim própria que seria primordial descobrir a verdade do sentimento que encontrei nessa altura. Senti-o porque o disse. Amo-te. E se não for capaz de reencontrar essa verdade, a do passado, se tiver de me mostrar desleal em relação àquela que pronunciou essas palavras, então a minha identidade sairá ainda mais abalada, ficarei ainda mais disforme. Por isso me esforço por tentar reencontrar a verdade desse instante e por me agarrar a ele.
Esta deslealdade de uma pessoa para consigo chega, porém, muito cedo. Os nossos gostos mudam. Durante muito tempo pensei que bastava fazer amor uma vez com uma pessoa para saber que tínhamos um cartão digital com todas as nossas preferências inscritas em nós. E a seguir ficava resolvido. Tínhamos dado a volta e bastava desempenhar de novo sob outra forma o papel que os deuses nos tivessem atribuído. Nas minhas abluções quotidianas prestava sempre homenagem aos gostos que me tinham sido confiados e dos quais era depositária. No entanto, gostava de uma coisa, e depois de outra, deixava de gostar dessa para depois a domar de novo, não explorava determinado gosto, estava sempre a descobrir novos antes de os renegar, de os esconder, tanto e tão bem que percebi que não era um único selo que me ficava marcado a ferro em brasa, mas uma sucessão de desejos que esculpiam a geografia da minha sexualidade. Os nossos gostos sobrepõem-se, sedimentam-se, contradizem-se por vezes.
Os homens a quem se diz Aquele momento que partilhámos há uns anos, não o queria, eles não podem compreender. Pensam que desnaturamos a sua história. Veem aí a influência do puritanismo contemporâneo. Supõem-se os únicos detentores da verdade da história que viveram, uma história singular. Ela viveu a história como ele a viveu, e se hoje tem dela uma versão diferente, é por ter sido influenciada. Não há ser que não se agarre desesperadamente ao instante em que lhe foi dita uma palavra de amor. O amor, inexpugnável asilo. Mesmo que o assaltemos, nunca se dará por vencido. Uma vez pronunciadas as palavras, já não se faz marcha-atrás. Amamos. Amámos. E não nos teremos enganado. Amámos. Só as palavras de amor importam.
Se, vinte anos depois, o homem ouve dizerem-lhe Disse-o sem pensar, era mais cómodo para mim, foi a maneira de fingir reciprocidade, não é capaz de acreditar nisso.
— Ora, como podes tu dizer semelhante coisa?
Se começamos a dizer Nunca gostei disso, se lermos o passado com as lentes do presente, se substituirmos ontem por hoje, adulteramos a experiência, subvertemo-la, transformamos uma recordação num acontecimento. A verdade é o momento tal como o vivemos quando o vivemos.
Triste revelação para as mulheres que percebem que todo o prazer veio do desejo de morte.
Comentários