Já o concerto havia acabado há uns dez, quinze minutos, e há um coro que continua a entoar bem alto e sem vergonha a melodia de “Wake Up”, a canção que mudou não só a vida dos Arcade Fire como a de todos aqueles que tiveram a graça de os escutar pela primeira vez, em 2004. Foi esse o ano em que a banda canadiana editou "Funeral", um álbum sobre a morte que era, também e paradoxalmente, a melhor elegia à vida que alguém poderia fazer em contexto de guerra e em início de crise financeira. Naquelas canções, naquelas melodias, naqueles versos cantados sobre um instrumental indie rock de estádio estava a banda-sonora de milhares de pessoas, de milhares de eleitos, que querem algo mais (e que lutam por algo mais) desta vida que não a anomia que nasce da repetição: casa-trabalho-casa, casa-trabalho-casa. De milhares de mentes sem medo de ser utópicas.
O medo ficou à porta, no mesmo dia em que Toronto se viu banhada em sangue e em lágrimas. Um concerto rock ou pop pode ter passado a ser um alvo bastante apetecível para os senhores do medo, para quem vive na obscuridade e para aí quer arrastar o resto do mundo. Um qualquer outro artista pensaria duas vezes antes de se atirar para o meio do público e sentir os abraços, os carinhos, os gestos que fazem de nós humanos. Os Arcade Fire não pensaram; limitaram-se a agir, ensinaram que o amor é mais forte que qualquer discurso sujo de ódio, andaram e marcharam e tocaram pela plateia não uma, duas, mas várias vezes. E secaram o sangue, não só o que se derramou sobre Toronto como também aquele que, por diversas vezes, manchou esta mesma Praça do Campo Pequeno. Win Butler a isso aludiu, quando disse que o momento que ali se estava a viver era melhor que a morte de qualquer touro.
Mesmo sem morte, houve funeral, ou "Funeral". Os alinhamentos de concertos anteriores deixavam antever algumas incursões por esse álbum mágico da carreira dos Arcade Fire – e um dos mais icónicos da primeira década do milénio –, mas nem os mais otimistas esperariam ouvir tanto do passado de uma banda que parece querer entrar à força no futuro. “Rebellion (Lies)”, logo a seguir ao single que dá nome ao novo disco da banda, “Everything Now”, mandou a casa abaixo e nem sequer era preciso; o público já se encontrava há muito rendido aos encantos de um grupo que aparenta ser mais que isso. Talvez os Arcade Fire não sejam um grupo mais do que são uma comuna de e para gente que sonha, que valoriza a liberdade e a compaixão acima de tudo, que se ajuda e ajuda o outro. Sim, há as canções – mas até elas parecem menores que a ideia que os Arcade Fire querem fazer passar.
Poderia ter sido um simples espetáculo, montado para esse efeito: palco a 360º situado bem no centro da Praça de Touros, com a aparência de um ringue de boxe (e houve um anúncio a condizer, no PA, antes do início do concerto, que dava conta de que os Arcade Fire pesam, em conjunto, 952 kg, são campeões mundiais de pesos-pesados, nunca foram derrotados e alcançaram nocautes infinitos), duas bolas de espelhos estrategicamente colocadas lá no alto, jogos de cor e luzes várias, nove elementos irrequietos que pareciam estar a ter a melhor noite das suas vidas. Não foi; foi uma história de superação, semelhante à da flor de Carlos Drummond de Andrade que fura o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. A deles – a das mortes que marcaram os seus primeiros anos de existência – e a nossa – a da apatia generalizada e falta de fé.
Porque não dá para não acreditar nos Arcade Fire quando “Here Comes The Night Time” acelera ali pelo meio, propulsionada por um ritmo muito próximo do kuduro electrónico que tem marcado a Lisboa musical dos últimos anos, desaguando imediatamente na chamada e resposta entre francês e inglês de “Haïti”; ou quando “No Cars Go”, que na sua ambiguidade não pode ser senão uma canção sobre a morte, é recebida com aplausos de todos os sectores da sala (que não se sentou por um único segundo ao longo de duas horas e pouco); quando milhares de luzes de telemóvel se acendem porque as da sala o não fizeram; quando “Electric Blue” enche todo o espaço de um azul tão vivo quanto os Aliados em dia de festa; quando três dos quatro “Neighborhood”s que marcaram "Funeral" são tocados de seguida; quando “Ready To Start” parte a sala ao meio como se isto fora um concerto de rock pesado... E, especialmente, quando Win Butler nos pede algo que não devia ser preciso pedir: dizer aos nossos amigos que os amamos. De braços no ar, dissemo-lo, saudámos a liberdade que vem e ainda a que há de vir, na mesma semana em que celebramos Abril. Os Arcade Fire ergueram uma comuna no Campo Pequeno e nós queremos morar nela para sempre.
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