Introdução
Samuel
Se estivéssemos a gravar um episódio do Assim ou Assado, eu agora diria “Olá, pessoal!” ou ainda “Como é que é?”. Mas aqui estou preso nas páginas de um livro, não sei bem o que dizer...
Enfim, digo na mesma: “Olá, pessoal!”. Estou aqui, dentro de um livro, com o nosso Prof. Marco Neves, que vem falar comigo sobre a língua portuguesa, uma das minhas paixões — e a paixão também do Marco (vou deixar cair o “Prof.” agora, que isto não é uma aula).
No meu caso, é a minha paixão porque é o material que uso para a minha música. Estou sempre a pensar nas palavras da nossa língua, às vezes passo mesmo semanas a reflectir sobre um só verso, a tentar perceber qual é a melhor palavra para aquele sítio em particular.
Pois agora aceitei esta ideia de escrever prosa e precisamente sobre este material. Não é fácil, mas o tema é tão importante que não hesitei. Vamos escrever sobre os temas do nosso podcast, que eu criei para o meu projecto TV Chelas. O livro, no entanto, não é uma mera transcrição — gostava que fosse útil e nos levasse a pensar sobre a língua.
Conversámos muito sobre o formato deste livro e acabámos por decidir escrevê-lo em forma de perguntas e respostas, porque é disso que é feito o podcast: eu tenho perguntas e procuro respostas. Foi por isso que fui procurar quem me pudesse ajudar a esclarecê-las.
Marco
Todos nós temos muitas perguntas sobre o português. Há quem pense que a língua é o reduto dos gramáticos e dos linguistas, mas a língua é de todos. O problema é que nem sempre a sabemos analisar, não percebemos bem como olhar e como encarar este bicho selvagem.
Ou melhor, alguns de nós sabem-no fazer muito bem, como o Samuel, que está sempre a tentar pôr este tigre que é a língua a cantar, mas o que não sabemos é explicá-lo. Foi para mim um desafio muito interessante conversar durante tantos episódios com alguém que usa a língua como material artístico; do meu lado, olho para a língua como os biólogos olham para o corpo humano: tenho curiosidade em saber como funciona. Agora, confesso: também gosto muito de aproveitar a língua como material artístico. Não tenho talento como o Samuel, mas gosto de ler e gosto de ouvir.
Quando falamos da língua, a maior parte das pessoas quer saber o que pode ou não fazer. Espero que este nosso livro seja útil. A resposta é, muitas vezes, um pouco mais complicada do que parece. Em muitos casos, podemos fazer assim — mas também podemos fazer assado. Muitas vezes, é precisamente quando temos dúvidas que a língua, lá atrás, nos sussurra: ora, se não sabes se podes dizer desta maneira ou doutra é porque talvez possas dizer das duas. Muitos têm medo. Preferem a clareza dos limites, o que compreendo, mas às vezes a língua permite arriscar — mas para isso, temos de ouvir com atenção, ler muito, aproveitar tudo o que existe nesta língua, para depois arriscarmos.
É com estas várias opções que a língua nos dá espaço para a arte, para a brincadeira, para o inesperado. E, nisso, o Samuel é mestre.
I. O prefixo de Camões
Samuel
O tema para o primeiro episódio do nosso podcast apareceu-me à frente há uns anos, quando estava a criar uma música com o Silva o Sentinela, um grande poeta. O título era Vale do Silêncio. Ele chegou-se ao pé de mim e apontou para esta parte da letra:
Eu nunca fui um postal, mas vou-me pôr a compor e se um dia eu for, eu serei ancestral. De um chavalo que dá valor ao que escreve no caderno e ele vai querer amostrá-lo
E disse-me: “Samuel, a letra está muito boa, mas... Mas ‘amostrar’ não existe!”.
Pois seria mesmo assim? Fartei-me de investigar e, na altura, fiquei convencido de que “amostrar” existe sim senhora. Mas, claro, quis conversar com quem estuda estas questões e acabei por começar o nosso programa precisamente por esta pergunta.
Acabámos por falar de Camões, que é quase o santo padroeiro da língua — só que não era santo, claro está. Tinha mesmo de estar no título deste primeiro capítulo porque o tema do nosso livro e do nosso podcast são as opções que a língua nos dá para podermos usá-la como material artístico.
1. “Mostrar” ou “amostrar”?
O verbo “amostrar” sem dúvida que existe. Significa várias coisas, entre elas “criar uma amostra”. Não é muito usado com esse sentido, mas está nos dicionários e é, nesse caso, bastante formal. É um termo técnico, aliás.
O problema existe com o verbo “amostrar” com o mesmo sentido de “mostrar”, como quando dizemos “amostra-me lá isso!” (enfim, entre cientistas, se calhar, até é possível imaginar um diálogo em que esta frase é dita com o sentido de “criar amostra”, mas vamos pensar no uso mais popular). Neste caso, muitas pessoas torcem o nariz. Acontece o mesmo com palavras como “assentar”, “amandar”, entre outras.
Estes verbos usam uma partícula inicial denominada “prótese” pelos linguistas. É uma sílaba acrescentada no início da palavra sem lhe alterar o significado. Em português, é uma tendência muito antiga, que encontramos em diversas palavras. Algumas dessas palavras fazem parte do chamado padrão da língua. Outras são consideradas palavras populares.
Por exemplo, a palavra “atum” tem origem numa palavra latina que não começava por “a”. Esta primeira sílaba acrescentou-se à língua a certa altura e hoje já não usamos a versão sem prótese. É apenas um exemplo: há muitas palavras assim.
Portanto, “amostrar” segue as tendências de formação de palavras do português — o único problema é ser uma palavra considerada popular. Não é a prótese em si que a torna mais ou menos adequada, mais ou menos correcta.
Há outras palavras assim, como “alevantar”...
2. “Alevantar” não é erro?
Curiosamente, mesmo palavras que hoje são consideradas muito informais, como “alevantar”, estão presentes em textos de grandes escritores. Camões escreveu: “outro valor mais alto se alevanta”, n’Os Lusíadas. Se Camões usa, quem somos nós para proibi-la?
São verbos, no entanto, que ficaram circunscritos ao registo informal (já veremos o que é isso). São usados em contextos mais informais e não tanto na escrita ou num discurso. A palavra não mudou, mas os contextos de uso mudaram.
Em suma: erro não é — mas pode ser inadequado em situações formais.
3. A sílaba inicial de “alevantar” não é redundante?
Há quem olhe para estas sílabas e pense: mas não são necessárias! São redundantes! Ora, a redundância faz parte da língua. Há muitos pontos da nossa gramática e léxico em que a mesma informação se repete. No caso da gramática, a concordância em género e número é um tipo de redundância obrigatória. No caso do léxico, não só a língua tem mais recursos do que aqueles de que necessita para transmitir a informação (temos sinónimos, palavras que se sobrepõem...), como as peças de que o léxico se compõe também se repetem ou são usadas para lá do que a lógica estrita implicaria. A prótese é um desses casos. Quer dizer que é inútil? Nem por isso: serve para dar mais corpo à palavra, serve para garantir que a palavra é bem entendida, serve para que a palavra encaixe num verso, por exemplo. E mesmo que seja estritamente desnecessária, a prótese foi concebida por quem cria a língua. As línguas são diferentes precisamente porque não seguem uma lógica estrita.
A língua não é planeada antes de ser usada. A língua surge do próprio uso e esse uso não se rege apenas por questões de eficiência. A eficiência é um dos factores, mas há outros, como a capacidade típica dos sistemas criados espontaneamente de transmitir informação mesmo numa situação de ruído. As redundâncias são essenciais para qualquer sistema linguístico natural.
4. O que é um prefixo?
No episódio, usámos a palavra “prefixo” de forma genérica. Mas, de forma rigorosa, uma prótese não é um prefixo: um prefixo altera o significado da palavra; a prótese é um fenómeno fonético que não altera o significado da palavra.
Um prefixo é uma peça para construir palavras com um ou mais significados. É um tipo de morfema. Se adicionarmos “in” a “feliz”, ficamos com “infeliz”. Aquele prefixo costuma ter um significado de negação da raiz da palavra.
Muitos morfemas têm vários significados, tal como acontece com as palavras — é algo naturalíssimo.
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