De gastronomia rica e diversa, Portugal continental e Ilhas não têm dentro do património gastronómico “um” prato que possa ser elevado a porta-estandarte para apresentar à mesa do mundo.
Existe a cozinha tradicional e regional. Receituário a partir de usos e sabores ancestrais enraizados nas diversas e diversificadas regiões. “Em Portugal não há província, distrito, terra, que não registe entre os monumentos locais, a especialidade de um petisco raro, sábio, fino, verdadeira sinfonia de sabores sempre sublime”, conforme descreveu Fialho de Almeida, em o “Gato”. Uma descrição consensual entre os comensais.
No entanto, apesar da inigualável riqueza e variedade “falta-nos um prato a nível nacional”, desabafou Noélia, chef do restaurante Noélia & Jerónimo, em Cabanas de Tavira, Algarve. “Devia haver um prato bandeira”, lançou. "É o bacalhau?”, questionou ainda. “Mas o bacalhau são várias formas de cozinhar”, respondeu a mulher aos comandos do restaurante familiar mergulhado na Ria Formosa durante a 4.ª edição do “Mulheres Com Tomates”, evento que decorreu na adega do Palácio Marquês de Pombal, em Oeiras, sob o signo “As Chefs e a Cidade”.
Quanto à questão identitária, recuperamos Fialho de Almeida: “O prato nacional é como o romanceiro nacional, um produto do génio colectivo: ninguém o inventou e inventaram-no todos: vem-se ao mundo ido por ele, e quando se deixa a pátria, antes de pai e mãe, é a primeira coisa que se lembra”, imortalizou o escritor e jornalista.
A conversa moderada por Patrícia Conde (NUTS) juntou Ana Moura, responsável pela cozinha do restaurante Lamelas (Porto Covo), Angélica Salvador, do In Diferente (Porto), Maria Solivellas, Ca na Toneta (Maiorca), Marlene Vieira, do Marlene (Lisboa) e Noélia, do Noélia & Jerónimo (Tavira). Cinco mulheres, cinco chefs de cinco cidades e uma união na defesa da promoção de produtos locais e identidade culinária.
Por mais que se tente o bacalhau não deixa de estar presente
Entre uma degustação “Vinho Carcavelos Villa Oeiras na Pastelaria”, com a chef pasteleira Sara Soares e o Vino Verita, viagem sensorial ancorada no citado vinho, por Patrícia Gabriel, na capela do Palácio, regressemos à questão levantada pela chef algarvia.
Se os marroquinos têm a Tajine e a Paella é símbolo de Espanha, só para falar dos vizinhos marítimo a sul e terrestre a Leste, o canto mais ocidental da Europa não apresenta uma iguaria identificativa com a portugalidade.
Associamos o país à música (fado), ao futebol (Cristiano Ronaldo) mas à mesa, onde sentamos família, amigos, cumplicidades e negócios, a variedade dificulta e, em muito, a escolha.
Poderemos apresentar o tradicional bife com batatas fritas e ovo, polvo, pataniscas, cozido à portuguesa, peixe grelhado, tripas, o caleidoscópio de receitas do bacalhau, e tudo o que possa puxar à memória do palato, a realidade parece ser incontornável: escolher o “tal” prato é mais complexo do que se possa imaginar, embora o consenso sobre a sua existência não esteja tão longe quanto imaginamos.
Noélia Jerónimo lançou a pergunta, o SAPO 24 aproveitou e trouxe à colação as restantes chefs.
Maria Solivella, uma voz soprada de Espanha, caracteriza a gastronomia portuguesa através da existência dos “vários pratos”. Não tem resposta exata na ponta da língua. “É uma cozinha aberta”, descreve. “Diria o Bacalhau...mas o bacalhau não é um prato. É um peixe”, recua em consonância com que Noélia havia dito. “Os vinhos ou os queijos explicam mais do que um prato”, sustenta a responsável, em conjunto com a irmã, Teresa, do restaurante Ca na Toneta (Caimari, Maiorca).
Marlene Vieira, uma mulher do norte como se autobiografa, tem “o” prato no céu-da-boca. Tropeça na primeira escolha. “As tripas, diria...não...porque é mais no Porto e há quem faça noutros lados”, admitiu. Tenta outra. “Talvez o arroz. Somos o segundo maior consumidor do mundo de arroz”. Retira. “A açorda. Sim, a açorda”, rematou a ex- Marsterchef. Qual? “Com aquilo que nós quisermos. Temos o caldo, o azeite e as ervas aromáticas”, respondeu ao pulverizar temperos na discussão.
Do Brasil veio um elogio. “Tem tantos e tão bons”, exaltou Angélica Salvador, a mão do in Diferente, no Porto. A residir há 17 anos em Portugal, hesitou ao apontar “o” prato. “Arroz de peixe, bacalhau, arroz tomate, um arrozinho a acompanhar peixe ou carne”, referiu. Abandona o recital. Socorre-se de uma reminiscência de tons familiares. “Carne de porco à portuguesa. Foi o primeiro prato que fiz à minha família quando regressei ao Brasil”, sentenciou. “Isso mesmo. Carne de porco, sem dúvida”, finalizou.
Ana Moura, regressada ao chão alentejano onde nasceram os avós maternos, foi a mais rápida na resposta. “Bacalhau à Brás”, identifica sem pestanejar a alfacinha que plantou vivência durante cinco anos em Espanha e abriu o “Lamelas” há precisamente um ano (18 de maio de 2021) numa terra encravada entre Sines e Vila Nova de Mil Fontes a necessitar de agitação promocional.
Por fim, Noélia, a cozinheira dos chefs nascida na serra algarvia: “A cataplana”, disse, ou não fosse “natural do Algarve”.
A identidade local e a defesa do território gastronómico
Durante a conversa, Maria Solivellas assumiu ter uma missão: “manter a identidade maiorquina” no restaurante descrito pelo Financial Times como “rústico chic”. Ali adotou o conceito “zero quilómetros”. Usa os fornecedores e produtos locais, insulares, adota receitas maiorquinas, de inspiração popular e confeciona tudo baseado na cozinha tradicional. “O tradicional é dar valor à economia local que estava a desaparecer. A paisagem desenhada pelos agricultores estava a desaparecer. Esta atividade está vinculada ao social e à ecologia e comecei a trabalhar o local e o ecológico”, recordou na mesa-redonda.
Falou de turismo: “(O turismo) mal orientado, feroz, pode destruir a identidade”, chamou a atenção. Mostrou, contudo o outro lado da (boa) moeda. “Quem entendeu primeiro (a identidade local) foram os turistas. Valoram a diferença e procuram a cultura”, elogiou.
A neta do “Lamelas”, alentejana de sangue e lisboeta de solo, Ana Moura, descentralizou a cozinha em Lisboa e aportou em Porto Covo, no litoral alentejano. “Se existe outro local onde sempre pensei estar para além de Lisboa, é Porto Covo”, confessou ao SAPO24 à margem do evento.
Acrescenta dados sobre a essência local. “Quero recuperar sabores do Alentejo e ajudar a economia local”, assumiu. “Compro o pão, a carne e o peixe local. Quem vende já sabe o que quero. É uma relação mais próxima”, descreveu. “Dá mais trabalho”, admite, mas compensa.
Marlene Vieira agarra no pão. “Vem do norte da Europa e é igual em todo o lado. Procuro manter o pão a partir da receita da minha avó e dei o meu cunho”, assegurou. Nascida na Maia, educada em Santa Maria da Feira, aprendiz em Vila do Conde, crescida profissionalmente em Manhattan, Nova Iorque, EUA, atingiu a maioridade em Lisboa, onde abriu este ano um restaurante de fine dining ao qual empresta o nome.
“Custa-me ver outros restaurantes, de outras cozinhas, mais cheios que a portuguesa”, lamentou. Admite que Lisboa está a “perder a identidade” e falou do local onde assentou praça. “Estou numa zona fronteira (Avenida D. Infante Henrique, junto ao terminal de Cruzeiros, porta de entrada na turística Alfama) e gostava de mostrar mais a cozinha portuguesa e não ser só conhecido pelo peixe grelhado e tacho”, atirou.
Noélia reconheceu a “sorte viver na ria Formosa”. Navega pela paisagem protegida. “Eu dependo da ria Formosa, sou da ria Formosa e conto com o que me dá. Temos de aproveitar o que a natureza nos dá”, reforçou.
Angélica Salvador, brasileira de berço, nascida no Paraná, portuguesa de acolhimento, agarra-se à árvore genológica. “É importante não estragar os produtos portugueses, mas vou buscar à origem, ao Brasil, à minha mãe e avó”, disse. “O sabor está lá e vai buscar a origem portuguesa”, desvendou a chef cujo primeiro prato cozinhado foi “xerém”.
A mão asiática na cozinha e a conta
Angélica Salvador aproveita para recordar o seu trajeto e tempos recentes. Suspirou de alívio num momento em que muitos fecharam portas. Beneficiou com a pandemia. Instalada na Foz, Porto, nas vésperas do duplo confinamento, viu-se perante a necessidade de introduzir serviços de takeaway e delivery. “Reinventei o projeto e os meus vizinhos tornaram-se clientes. A covid apresentou-me à Foz”, assumiu.
Chamadas a falar da defesa do território gastronómico nas respetivas cidades, o SAPO24 entrou cozinha adentro, cada vez mais ocupada por cozinheiros e ajudantes vindos do Nepal, Bangladesh e Índia, e questionou sobre se a presença asiática pode, eventualmente, fazer-se sentir, no receituário tradicional. Marlene Vieira deixou claro: “Não influencia porque somos defensores da nossa pátria”. Assegura que “aprendem rápido, mas muitos não provam por causa da religião”, confidencia. Ana Moura reconhece que a “gastronomia indiana está muito enraizada em Portugal” e acrescenta. “A chamuça é portuguesa, já o cheesecake ...”, sorriu.
A conversa caminhou para o fim. Tempo de politizar a restauração. “Já passámos o abre e fecha. Agora voltámos ao mesmo problema: falta de mão-de-obra. Acontece a nível mundial”, alertou Marlene. “A serra algarvia tem hoje estevas, quando antes era trigo. Ninguém quer trabalhar. Eu comecei aos 14 anos, cresci e aprendi a trabalhar”, recordou Noélia. Marlene Vieira aprofunda: “Falta um plano de ação para revitalizar o setor. Na Exposição do Dubai, no pavilhão Portugal, não tivemos um chef português”, encolheu os ombros.
Dado o sinal para a conta vir para a mesa. “Não digam que é pouca comida pelo preço. Há um trabalho por detrás. É impossível pagar 5 euros por um prato cheio e ter bons ordenados (na cozinha)”, contrabalançou Marlene Vieira. “Aumento preços porque tudo aumentou. Há coisas de que não podemos fugir e tem de haver um equilíbrio”, alinhou Angélica Salvador.
Noélia Jerónimo abriu e fechou a conversa. Deixou de lado preços e divergiu. Concluiu sobre o que fazem e a atualidade. “Fazer pessoas felizes nem sempre é fácil”, reconheceu. Relembrou o cenário de guerra. “As coisas más faz-nos mais fortes. Temos de agarrar a janela. Em contexto de guerra o país pode fazer a diferença no turismo e sair mais forte”, apontou o caminho.
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