“Respeitosa Mente”, faz questão de deixar claro, não é um disco de fados. É um disco de canções e de poesia, de uma outra linguagem, que fica da responsabilidade de cada um dizer qual é. Mas, quem sabe, se um dia não se resume apenas como sendo uma linguagem "Ricardo Ribeiro". É um disco de poesia, de António Ramos Rosa a Giacomo Leopardi, tal como é um disco de um trio. À voz de Ricardo Ribeiro, que deambula entre histórias do real e da imaginação, e que neste disco também toca guitarra e baixo, soma-se a percussão de Jarrod Cagwin, músico que faz parte do grupo do compositor libanês Rabih Abou-Khali, com quem o fadista colabora regularmente, e o piano de João Paulo Esteves da Silva, que também tem responsabilidade em alguns dos poemas do alinhamento.
Foi à janela da biblioteca da Casa do Alentejo, sala que hoje apenas conserva o título, mas não a função, que falámos com o fadista. “Estou na Casa do Alentejo e já estou falando à alentejano”, apercebe-se, a meio da conversa, quando a musicalidade das palavras já é outra. Àquela zona do país nenhuma relação familiar diz ter, uma vez que nasceu em Lisboa, na Ajuda, há 38 anos. Mas, brinca, “devo ter sido alentejano numa outra vida”.
Que leituras podem fazer-se deste título, "Respeitosa Mente"?
O título "Respeitosa Mente" vem de um poema do João Paulo [Esteves da Silva], que é o segundo tema do álbum ["Envoi"]. Mas antes dele já tinha como ideia o "Respeitosa Mente". Resolvi brincar um bocadinho com este advérbio de modo, ou seja, lê-lo de três maneiras diferentes. A mente respeitosa, a pessoa respeitosa mente e, ainda, para alívio das descargas nervosas, respeitosamente deixai-me em paz.
O título do último disco tem uma pausa na leitura através da vírgula, "Hoje é assim, amanhã não sei". Neste, pelas duas palavras que o compõem, também. É intencional?
É, exatamente. O advérbio é respeitoso mais mente, não é? São duas palavras juntas, unidas. Foi essa a minha intenção. Respeitosamente qualquer coisa. Gosto muito de etimologia, e a palavra respeito vem de uma palavra latina que é 'respicere'. Na sua essência quer dizer aquele que sabe ver.
E andamos a respeitar-nos uns aos outros?
De certa maneira. Às vezes não, outras vezes sim. Mas é próprio no ser humano. Tudo na vida é dual. Nós só conhecemos o mal porque conhecemos o resistente, só conhecemos o calor porque conhecemos o frio, e assim sucessivamente.
Eu não o ponho num compartimento, a única coisa que digo é que "Respeitosa Mente" não é um disco de fados.
Sobre dualidades, este disco também tem uma: vive entre o que é real e o que é ficcionado.
Este disco funciona com duas histórias quase em paralelo. Uma vivida no concreto, no que é profundamente real, sentido e vivido; outra no campo das ideias, da imaginação.
Tens dito que este não é um disco de fado, mas sim um disco de canções. Mas não são todos de canções? Porquê vincar que não é um disco de fado?
Sabes, eu tenho alguma história. Comecei de pequeno e convivi com pessoas... Criei uma certa distinção entre as expressões musicais, nomeadamente esta expressão que é o fado. Então prefiro pôr logo as pessoas à vontade. Nem é sequer uma tentativa de ser fado, ou não ser. Quero é que as pessoas me expliquem o que é que ouvem. Eu não o ponho num compartimento, a única coisa que digo é que não é um disco de fados. Porque não o é efetivamente. É evidente que um fado é uma canção, mas mais do que uma canção é uma expressão, que engloba outras coisas. Numa outra entrevista podemos falar só sobre isso. Agora, eu prefiro marcar este ponto porque efetivamente não é um disco de fados segundo o meu conceito e segundo a minha visão daquilo que é o fado. Posso provar porque é que não é um disco de fado, mas serão os outros que vão ter de descobrir. O fado é uma expressão idiomática, e esta linguagem não é uma linguagem fadista.
Não tens medo de que quem está habituado a um certo registo teu não o perceba ou tenha dificuldade em entrar à primeira neste disco?
Não, não tenho medo absolutamente nenhum. Faço as coisas com todo o amor e com toda a dedicação. Quem aceitar, aceita; quem não aceitar, não aceita. Quem gostar, gosta; quem não gostar, não gosta. Eu não posso mexer na cabeça dos outros nem posso obrigar as pessoas a gostar. Fi-lo com todo o amor e dedicação. E porque a mim me era necessário fazer este disco. O julgamento dos outros... O ser humano é tão contraditório que não vale a pena dar muita importância a determinado tipo de julgamentos. Porque as pessoas confundem valor com gosto. Então, não vou entrar por aí. Prefiro que cada um julgue, critique, goste muito, não goste nada. Porque é isso que é a vida. Não é?
Essa é uma mensagem para quem te ouve ou é uma mensagem para os puristas do fado?
Nem para uns nem para outros. É uma mensagem para quem a quiser receber. Não tenho desses problemas. A maioria das pessoas que ouviu os meus discos, se calhar, só ouviu três ou quatro fados; e eles têm catorze e dezasseis fados. Portanto, podem continuar a consumir. E quando quiserem vão ao "O Faia" [no Bairro Alto, em Lisboa], a casa de fados onde canto regularmente, e lá vão-me ouvir cantar fados. Ou em concertos de fados, que não vou deixar de os fazer, atenção.
Mas este não é um disco para ser cantado nas casas de fado, ou até é?
Não, não. Claro que não é. É um disco para auditórios e salas de espetáculos. É evidente que podemos fazer algo especial num sítio onde haja um piano. Acusticamente ele pode ser tocado em qualquer parte. Agora, não é uma coisa que se vá fazer porque sim.
Referiste que este era um disco que te era necessário fazer, porquê?
Uma necessidade [que vinha] de uma determinada vida interior poética, musical e artística. Que a mim, e faço questão que se frise isto, que a mim, repito, não me é permitido cantar numa linguagem fadista. Então canto nesta linguagem. Que linguagem é? Não sei. Cabe-te a ti e a cada ouvinte dizer o que é.
Faço as coisas com todo o amor e com toda a dedicação. Quem aceitar, aceita.
Dizias outro dia que talvez daqui a uns anos se reconheça que é uma linguagem tua, uma linguagem "Ricardo Ribeiro".
Talvez, talvez. Porque eu não sou só uno, eu caminharei para o uno — não querendo utilizar um conceito divino. Portanto, são muitas coisas ao mesmo tempo. Qualquer homem, qualquer mulher, é muitas coisas ao mesmo tempo. Não é só uma coisa, desdobra-se em muitas. E interiormente vou-me desdobrando em muitas coisas, porque tenho muitos gostos e tenho muita necessidade do profundo e do belo.
Essa necessidade reflete-se nos poemas escolhidos para estas canções? Porquê estes, então?
Porque eram os que tinham a ver com a história real e com a história da imaginação. E cada um vinha vindo com a sua mensagem, com a sua intenção. Cada um tinha uma intenção e uma carga própria que se enquadrava com o tipo de história, ou do real ou da imaginação.
No disco, apenas dois temas não são inéditos ["Canto Franciscano" e "As Montadeiras"] e apenas um não tem poema ["Náná"]. Esse tema, um instrumental, que encerra o disco, dedicas à tua mãe. É por isso que foi mais fácil fazê-lo pela música do que pelas palavras?
Fui incentivado pelo Jarrod Cagwin, o percussionista do disco, e pelo João Paulo [pianista]. Como queria homenagear a minha mãe, eles encorajaram-me. Porque eu não sou um guitarrista, não me apresento a tocar viola nem baixo... Queria esta peça, mas tenho muitos complexos, fico muito nervoso, tremo... Porque não estou habituado a tocar em público, muito menos a gravar. Mas eles incentivaram-me, e está gravado, e está muito bem. Bendita a hora em que eles o fizeram e muito lhes agradeço pela força.
Este é um disco de um trio.
Um trio, a que depois se junta um técnico de som e um técnico de luzes. É um disco de três pessoas, cada uma com a sua personalidade artística e sensibilidade. Cada um deu a sua opinião, cada um disse 'isto é bom' ou não. Não fui só eu que disse isto é para ser assim ou para ser assado. Apesar de praticamente ser um disco meu em termos de imagem ou divulgação, é dos três. É dos três!
Dizias que havia aí alguns complexos para tocar alguns instrumentos. Como é que será quando levares este disco para os palcos?
Vou ter de os tocar. E vou ter de vencer esses medos.
Também escreves, mas já uma vez disseste que nunca te iríamos ler. A tónica no nunca ainda se mantém?
Não, já por duas vezes falhei com o nunca. Nunca digas nunca... Já por duas vezes publiquei nas redes sociais poemas.
E quando é que te ouvimos cantá-los?
Um dia destes, mas não com o meu nome. Através de um pseudónimo. Ou não. Talvez nunca vá cantar algo meu. Talvez outra pessoa cante, eu nunca. Mesmo já tendo falhado com o 'eu nunca'.
Mas esses dois poemas que já partilhaste foram identificados com um pseudónimo?
Não, com o meu nome. Foram partilhados na minha conta de Instagram e numa conta que acho muito interessante e que se chama "O poema ensina a cair".
De onde vem, ou começa, este gosto pela literatura e pela poesia?
Eu tenho é um gosto pela sabedoria e pela vida, e os livros estão cheios de vida. Cheios de uma vida que nós lhes damos. Mas eu sou um tipo que gosta muito de ler e de entrar num mundo ou de criar outro mundo. O Colégio [Diocesano Andrade Corvo, em Torres Novas, que frequentou] ajudou muito, mas como passo muito tempo sozinho e às vezes não me apetece tocar, então prefiro ler. Ler ajuda também à concentração e ao foco.
Quando disse à minha mãe que te ia entrevistar, ela disse-me: 'tu vai preparada, olha que é uma pessoa cheia de referências'...
[risos] Sou apenas um homem como outro qualquer, tenho é apenas gostos, interesses e paixões.
Já recebeste várias distinções e ganhaste um vasto leque de prémios. O que é que eles acrescentam?
É evidente que se dissesse que não ficava orgulhoso e que não ficava vaidoso, estava a ser mentiroso e hipócrita. Isso não vou fazer, nunca. É evidente que me deixam muito alegre e com alguma vaidade. Depois disso, dão-me outra coisa, dão-me responsabilidade. Responsabilidade e vontade para fazer mais coisas, para me respeitar mais a mim e aos outros.
Algum prémio em particular foi uma viragem de página?
Não, não... Sou Comendador [recebeu em 2015 a Ordem do Infante D. Henrique], mas são as pessoas que mo lembram. Juro! Não o estou a frisar para te recordar disso. Os prémios estão em casa da minha família, não estão comigo. Eles têm uma importância no momento e dizem-me que estou no caminho certo, que tenho de continuar a fazer mais e melhor. Com responsabilidade.
Então quer isso dizer que não há um que almejes?
Não tenho assim um prémio que dissesse que gostava muito... Adorava ganhar o Prémio Camões. Só pelo nome: Camões. Isto é uma fantasia. Ou um Prémio Pessoa... Mas eu não sou escritor, nem escrevo nada que jeito tenha. Então não posso ganhar, fica como um sonho, como tenho outros. Fico muito feliz quando outros ganham. Quando ganham, sinto que sou eu que estou ganhando.
Disseste há uns tempos, também, que a tua vida sempre foi espontânea, que vivias um dia de cada vez. Alguma coisa mudou?
Vivo um dia de cada vez, com as minhas rotinas. Apesar de ser um pouco avesso à rotina e de quebrá-la muitas vezes. Levanto-me, faço as minhas coisas, treino, vou à casa de fados, leio, toco, namoro, converso, estou com a minha filha ou com o meu cão. Gasto pouco aos cem. Não tenho ambições, tenho sonhos. Gostava de ter uma casa um pouco maior para um dia ter um moço ou ter mais um canito. Ou um dia ter um bocadinho de terreno para ter umas galinhas... Mas não tenho grande aptidão para ter grandes carros, nem tenho nada contra quem tem. Há quem goste de carros, eu gosto de música, de filosofia, dos amigos. Gosto de às vezes estar calado, quieto e sossegado. Ou triste. Também é bom, às vezes, curtir a tristeza.
Gasto pouco aos cem. Não tenho ambições, tenho sonhos.
E tens um coração maior do que o teu rim?
[risos] Não sei.
Perguntava num sentido figurado, claro.
O coração é sempre maior.
Como é que foi isso de descobrir aos 25 que só tinhas um rim?
Por uma dor, eu 'na' sabia de nada... Estou na Casa do Alentejo e já estou falando à alentejano. Eu amo o Alentejo, é uma paixão, é qualquer coisa que não sei explicar. Devo ter sido alentejano numa outra vida.
Não há nenhuma relação familiar, nada? Sei que és lisboeta, da Ajuda...
Nada.
De onde vem esse acento então?
Tenho lá muitos amigos e vou lá muitas vezes. Se estou a falar com um alentejano, num minuto também já estou eu falando.
E essa preferência pelo gerúndio, que também já reparei...
É porque é mais musical. Cantando é muito melhor que cantar. Chorando, bailando, amando... Tem mais música.
Eu amo o Alentejo, é uma paixão, é qualquer coisa que não sei explicar. Devo ter sido alentejano numa outra vida.
Falaste na tua filha. Ela já canta?
Toca piano e saxofone.
Que conselho é que lhe dás que este meio te tenha ensinado?
Vive os teus sonhos e não os sonhos dos outros.
Como é que é a vossa relação?
É boa. Como ela não vive comigo, sou um bocadinho mais tirano. O que a põe mais na linha [pausa], aquele que está sempre de armas apontadas.
O que tiras da relação que tiveste com o teu pai para a relação que tens com a tua filha?
Diferente... Não tem nada a ver. São outros tempos, é outra vida. É outra coisa. De sentimentos não falo porque tenho a certeza que o meu pai tinha os mesmos sentimentos por mim que eu tenho pela minha filha. Ele se calhar não os sabia mostrar, não sabia geri-los... Não sei, não me interessa, nem vou entrar nesse campo. O que te digo é que são tempos diferentes e somos pessoas diferentes. Temos todos a mesma carne e o mesmo sangue, mas somos todos pessoas diferentes.
O tema da relação com o teu pai foi um dos que ficámos a conhecer depois da tua entrevista ao "Alta Definição", do Daniel Oliveira, no ano passado. Foi um dos capítulos da tua vida que foi ali aberto, mas não foi o único [como uma tentativa de suicídio em criança e uma depressão entre 2012 e 2015]. Como é que foi o dia seguinte a essa exposição?
Tive muita gente a manifestar-se nas redes sociais. Passei quatro ou cinco horas, durante três dias, cada vez que tinha um intervalo, a responder a pessoas. E ainda há pessoas que hoje mandam mensagens a pedir ajuda, a perguntar como é que se ultrapassa isto ou aquilo. Se as pessoas têm terapeutas, eu digo: confiem nos terapeutas. Tento dar às pessoas aquilo que adquiri ou que os livros ou os amigos me deram. Agora, não vi a maioria das coisas que se escreveu [na imprensa].
Se podemos acreditar nessa coisa dos signos, eu sou um nativo de Leão. Portanto a altivez e a vaidade é própria deste tipo de criaturas solares. Para que isso não me tolde a razão, que não faça de mim uma coisa que não quero ser e que na minha essência não sou, prefiro muitas vezes não dar atenção. Para não ser tentado — "o mal não está em ser tentado, está em ser vencido".
"Respeitosa Mente" será apresentado na Casa da Música, no Porto, a 22 maio, e no CCB, em Lisboa, a 1 de junho.
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