Coberto pela cordilheira Cantábrica, a norte e a serra da Demanda, a sul, delimitado pela fronteira natural do Rio Ebro, um mar de prémios de diferentes áreas navega ao sabor da vista num planalto no norte de Espanha.
Num mundo em que tudo parece exigir um rótulo, arquitetura, gastronomia e enologia merecem distintivos dísticos neste predestinado território da zona sul da província de Alava, País Basco, Espanha.
É ali que se situa a Rioja Alavesa, um plateau que junta vencedores de prémios Pritzker, restaurantes estrela Michelin e, talvez o mais importante, é ali que assenta o berço da famosa região e a mais antiga denominação de origem vitivinícola espanhola DOCa Rioja que produz alguns dos mais afamados vinhos mundialmente conhecidos.
O enclave climático entre as influências atlânticas e mediterrâneas confere-lhe a natural distinção do palato extraído, a maioria, da casta Tempranillo (equivalente à Tinta Roriz, no Douro).
Os vinhedos medem forças em popularidade com as obras de arte dos grandes nomes da arquitetura mundial, Norman Foster (Bogedas Faustino), Frank Gerry (Marqués de Riscal), Santiago Calatavra (Ysios) e Iñaki Aspiazu (Baigorri).
Os novos edifícios, contudo, não ofuscam a arte que os precede. Coabita com monumentos megalíticos da idade do bronze, dólmens pré-históricos e registos dos medievais, como a igreja de Santa María de los Reyes e respetivo pórtico, joia do renascentismo e um dos tesouros arquitetónicos de Espanha, situado em Laguardi
Dos esboços feitos por estas nobres e prestigiadas mãos nasceram novos conceitos de bodegas (adegas) tão vanguardistas quanto sustentáveis.
Enquanto o vinho envelhece soterrado, em cima, o espaço disponível a olho tem como destino a plantação de vinha. A opção arquitetónica tira partido da gravidade enquanto parte do processo produtivo ao retirar o uso de bombas, logo, abrindo espaço às melhores práticas ambientais e de sustentabilidade.
Mão portuguesa entre os reis da arquitetura mundial
A Rioja Alavesa parece um quadro de tons impressionistas desenhado a regra e esquadro. Deslizando na A-2124, vindo de Vitoria, capital do País Basco, no “Balcon de la Rioja” sentamo-nos. Se a tradicional nuvem que costuma estar por aqui sentada não aparecer, permite que a vista se cola à moderna arquitetura entrelaçada em vinhedos centenários propriedade de gerações e gerações de produtores.
Este magistral cenário contará, doravante, com mão portuguesa. Em julho, após concurso internacional organizado pelo Basque Culinary Center, o atelier Carvalho Araújo foi selecionado para a conceção e construção das sedes de EDA Drinks & Wine Campus em Vitoria-Gasteiz e Laguardia, em plena região Rioja Alavesa.
Os dois edifícios serão um centro de interdisciplinar que senta à mesa as indústrias do vinho e da gastronomia, criação de um ecossistema que é inclusivo e abre a porta a outros produtos do mundo das bebidas, seja a cerveja, kombusca, chá, bebidas destiladas ou não alcoólicas e outras.
O “Mugarik Gab”, nome dado pelo arquiteto português, será a cena dos próximos capítulos. Ficaremos a aguardar.
No presente, na apelidada estrada do vinho que bordeja Labastida, Elciego, Samaniego, Oyón ou Laguardia, cidade murada construída no século X, num percurso de 25 minutos pelo asfalto até às portas de Logronho, já fora do País Basco, é ingrata a tarefa de decidir em qual das mais de mais de 200 bodegas parar, entre pequenos e singulares projetos familiares aos grandes grupos económicos.
Um mini-Guggenheim colocou a região no mapa
O Marqués de Riscal, um mini-Guggenheim em forma de château do século XXI desenhado pelo canadiano Frank Gerry, colocou esta sub-região de La Rioja no mapa mundo das visitas obrigatória de quem faz do enoturismo a justificação para sair de casa.
Operada a transformação no território, foi o início do estilo Disneyworld. É assim que se começou a olhar e visitar estes parques temáticos que vão muito além do gesto simples de beber um copo de vinho. É um verdadeiro palco de experimentalismo onde cabe o bom gosto à mesa do restaurante Michelin e o descanso num hotel de 5 estrelas. Tudo, regado a vinho, seja em copo ou num spa.
Em resumo e numa palavra: enoturismo. Não é só vinho. Não é só uma vistoria numa adega, mais ou menos moderna. Nem é só uma prova ou uma dormida no meio das vinhas. É a soma destas diferentes camadas que resultam num todo.
O SAPO24 visitou três adegas. Uma, mais familiar, as outras duas inseridas num grupo cujos tentáculos estão espalhados por Espanha. Duas foram distinguidas nos Prémios Best Wine Tourism, a outra plantou mais uma obra de arte de autor: Uma inovadora casa para experienciar vinhos made by Norman Foster, vencedor do Prémio Pritzker.
12 vinhos, 12 meses, 12 causas
Comecemos pela mais familiar. A bodega Eguren Ugarte junta túneis, hotel e produção artesanal de vinho. Recebe cerca de 70 mil pessoas por ano, colocando-a no patamar das bodegas familiares mais visitadas em Espanha.
Tudo gira ao redor de uma propriedade de 130 hectares de vinho e dois quilómetros de túneis (as famosas cuevas) onde nascem algumas raízes das vinhas, longos pés que parecem sustentar o hotel erguido em 2010.
Num labirinto com fim e saída à vista, 520 “gaiolas” guardam vinho e 12 “txocos”, palavra basca que define confrarias e mini-bodegas privadas, preciosos metros quadrados que zelam, por contrato, anualmente, por vinhos especiais.
À quinta geração, Victorino Eguren deu o passo de gigante no qual hoje caminha a presente geração, a sexta na árvore genológica.
A singularidade do homem, cuja estátua em sua memória recebe o visitante, por detrás da obra permanece e merece ser contada.
Vitorino guardou três mil garrafas para a “última viagem” (número 19), permanecendo (as garrafas) a 14 metros abaixo do solo. A seu lado, como não poderia deixar de ser, a herança não levantada de Martin Cendoya, seu braço direito, cujo nome perpetua na rotulagem entre os 25 diferentes rótulos elaborados pela bodega, um dos quais tem um só destinatário final. O museu Thyssen-Bornemisza, de Madrid.
Para a posteridade, fica o livro saído de uma redação crua e sem floreados. Um diário escrito aos 72 anos de idade e cujos capítulos estão em cada um dos 25 quartos da unidade hoteleira e restantes espaços. E, para registo ainda, um quadro de 50 metros ao estilo Ópera Carmen, um gigantesco retrato de família.
Falecido no ano passado, Vitorino norteou-se sempre por um lema: não bebia água, não gostava de advogados e não pedia empréstimo aos bancos, preferindo fazer investimentos passo a passo.
Em paralelo, era um homem de causas desde os tempos que fazia a distribuição com a sua mulher, Mercedes, num Citroen 2CV.
O projeto solidário, 12 meses, 12 vinhos e 12 causas, que destina 20% das vendas de um vinho por mês a uma causa e associação, granjeou-lhe um prémio no Best Of Wine Tourism --, 22.ª edição dos galardões da Great Wine Capitals (Rede Mundial de Grandes Capitais do Vinho).
A causa de novembro, como não poderia deixar de ser, reverte para as vítimas do DANA, em Valência.
Quadros para ver, vinho para provar
Outra das Bodegas galardoadas nos prémios Best of Wines Tourism foi a Campillo. Pertence à família Martinez Zabala e tem no grupo um vinho mundialmente procurado: Faustino 1, sobre a qual escrevemos a seguir.
A dúzia de degraus da escadaria que acede o pórtico de entrada desenhado em sete arcos esconde a grande paixão combinada de Julio Faustino Martínez, 4.ª geração e impulsionador do império Faustino: o vinho é uma arte.
Aqui deram-se os primeiros passos no arrojo singular do projeto arquitetónico – obra do arquiteto Aurelio Ibarrondo - que viria a abrir caminho à imponência que se seguiu em Ysos, em Laguardia e o hotel de Frank Gehry, autor do Museu Guggenheim, para Riscal.
Por coincidência, o Guggenheim, museu que colocou Bilbao na rota da primeira linha da arte e cultura mundial, em outubro de 1997, nasceu num acordo assinado numa mesa octogonal nos “escritórios” de Campillo.
A geometria da peça de madeira viria a inspirar o arquiteto que materializou o desejo de Dom Julio em erguer a singular bodega, o primeiro château estilo Bordéus em La Rioja.
O Campillo foi um rasgo na construção e edificação até então entregue a engenheiros mais preocupados na produção do vinho, deixando para segundo plano o conceito artístico ou a finalidade turística da obra, na altura não equacionada.
O paradigma e o olhar foram nesta bodega alterados. Da bancada de entrada é possível contemplar os cinco níveis da bodega, ligados por uma escada de caracol. Chama particular atenção a sala das barricas, cujo teto remete-nos visualmente para um casco de um barco invertido e que pretende ser uma homenagem ao processo como foi descoberto o método de envelhecimento do vinho.
Campillo foi o primeiro enoturismo da história de Rioja, em 1990. Carrega esse rótulo. Hoje desdobra-se num espaço, Campillo Creativo, sala de exposições de arte que viria a cativar o júri ao atribuir o prémio Arte e Cultura no Best of Wines Tourism.
São vários os artistas expostos neste espaço singular que combina o mundo das artes e do vinho. E que eleva a marca icónica da Rioja, Faustino à mesa de 140 países no mundo.
Entre as obras e autores, um sobressai. Willy Ramos, pintor e escultor de origem colombiana de cujo traço saem os novos rótulos estilizados que reinterpretaram o famoso retrato de Rembrant, a cara à frente de um vinho.
A mão de Norman Foster no 1.0 do enoturismo
E é de caras que continuamos a falar de vinho. Não um qualquer, mas um cujo conteúdo e forma não dá espaço a desconhecimento.
Na dicotomia interpretativa das suas notas, a pastelaria nos toques de baunilha, marmelada, frutas em compota, ou especiarias no travo a canela, tabaco e cacau, fica na língua de cada um, quanto mais não seja para impressionar quem connosco partilha o cerimonial da prova.
Falamos do Faustino 1. O Gran Reserva Rioja cujo popular e icónico retrato de Rembrandt (1641), cola-se ao rótulo do vinho. O primeiro vintage saiu para o mercado em 1964 (colheita vintage de 1958) e cumpre o 60.º aniversário.
Lançado por Don Julio, 3.ª geração da família, em homenagem ao seu pai, Faustino, é responsável por 10 milhões de garrafas vendidas dentro do grupo Familia Martínez Zabala, 4.ª geração, dona de mais duas marcas em La Rioja (Campillo e Marqués de Vitoria), além de Ribera del Duero (Portia), Navarra (Bodegas Valcarlos) e Castilla-La Mancha (Bodegas Leganza).
Assente num legado de mais de 160 anos e do rasgo de marketing introduzido por D. Julio, a atual geração navega nas mesmas águas de empreendedorismo e inovação onde o grupo sempre se construiu.
Para mudar a cara da bodega Faustino e começar a escrever um futuro mais verde, atrás da cortina surgiu Norman Foster, prémio Pritzker (1999) cujo traço já desenhara o Portia, em Gumiel de Izán, Ribera del Duero. A Foster + Partners foi convidada para a reorganizar o coração dos 600 hectares de vinha, onde repousam mais 60 mil barricas.
Num casamento entre tanques antigos para fermentação e o aço inoxidável, o visitante respira ao ponto de ficar de nariz inebriado pelos odores perpetuados de inúmeros vendimas cujo registo teima em permanecer a cada recanto do espaço.
O desafio não ficou por aqui, havia que ir mais longe, um mais além que não foi mais cedo devido a fatores exógenos, a Pandemia COVID-19, a crise inflacionária e guerra da Ucrânia, esta última responsável pelo aumento do preço da madeira vinda dos Cárpatos, usada na edificação do novo edifício inaugurado no dia 31 de outubro.
Numa espécie de iglô mais achatado e retangular, no novo braço da bodega, o edifício Planeta 1.0, pretende oferecer experiência à volta do vinho, da vinha, da natureza, arquitetura e sustentabilidade, ao oferecer uma ligação mais profunda à terra e ao processo de vinificação.
A nova forma de viver o enoturismo não parte de uma maravilha arquitetónica, mas uma criação totalmente sustentável, ideia defendida pelo próprio Foster na apresentação do seu novo filho.
Tal como Frank Gerry inovou na bodega e hotel Marqués de Riscal, em Elciego, a pouco mais de 20 quilómetros, Norman Foster dá no Faustino, em Oyón, às portas da fronteira do País Basco com Navarra mais um passo no caminho trilhado em Rioja Alavesa. Vinho e arquitetura rumo à sustentabilidade e inovação através do recurso a painéis fotovoltaicos (+ 70 % de energia produzido do que consomida) e absorção de emissões de carbono.
O SAPO24 viajou a convite do Turismo Vitoria-Gasteiz.
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