Por mais que o tempo passe, há sempre artistas cuja teimosia os impede de serem esquecidos. Bem: “teimosia” é capaz de não ser a palavra certa. Experimentemos “perseverança”, “talento” ou “atitude”. Embora “teimosia” também possa ser aplicada a Roger Waters, baixista que durante anos foi a alma e os versos dos Pink Floyd – pese embora o fantástico contributo dos seus antigos colegas – e que a solo conseguiu construir um corpus de trabalho que, mesmo não sendo icónico, é notável: The Pros and Cons of Hitch Hiking (1984), Radio K.A.O.S. (1987), Amused to Death (1992), a ópera Ça Ira (2005) e, mais recentemente, Is This the Life We Really Want? (2017), álbum que pôs fim a uma longa espera de 25 anos sem ouvirmos canções novas do músico britânico.
Não que tal fosse estritamente necessário. O próprio Roger Waters sabe-lo; a grande maioria do alinhamento desta digressão consiste em canções dos Pink Floyd (e o próprio nome da digressão, Us + Them, vai buscar esse título à ex-banda), e são dos Pink Floyd muitas das t-shirts que o público que enche a Altice Arena, em noite de primavera, enverga orgulhosamente e sem qualquer espécie de pudor. Essa banda, enquanto entidade, pode já não existir, nem nunca mais voltar a existir, rejeitando a ideia de “reunião” tão em voga nos últimos anos e seguida por outros “dinossauros” do rock. Mas existirão, enquanto houver humanidade, as suas canções, da mesma maneira que as obras de Bach, Beethoven, Mozart ou Vivaldi ou as composições de Louis Armstrong e George Gershwin resistirão aos séculos.
E o que também existe, infelizmente, é a guerra – a mesma guerra que continua a fazer com que os Pink Floyd, ou qualquer outra banda anti-sistema e pró-coração, continuem a soar-nos tão relevantes hoje como há cinquenta anos. Waters conhece certamente os seus horrores, tendo o seu pai falecido em combate durante a II Grande Guerra. Conhece-os ao ponto de não se manter calado, e ainda bem, em relação às atrocidades que todos os dias captamos na televisão, na rádio ou na internet, sendo que a violência du jour chega-nos do Médio Oriente, região envolvida numa das mais brutais guerras de que há memória há já demasiadas décadas.
Essa sua voz tem-lhe valido vários dissabores, tanto por parte dos senhores da guerra como dos que a justificam. E até de outros músicos: a sua ligação à campanha BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), que apoia um boicote total ao estado de Israel, já lhe valeu vários bate-bocas com artistas que, mais ou menos indiferentes ao que se passa em Gaza, insistem em atuar naquele país. Cabe a cada qual decidir, por si só, se Waters está errado ou não na sua luta; mas não há como não elogiar um homem que se mantém fiel aos seus princípios e que os defende com garras afiadas, as mesmas que usa para fazer tremer as cordas do seu baixo e, com ele, multidões de todo o mundo.
Foi preciso, no entanto, esperar vinte minutos para que o pudéssemos ouvir, a Roger Waters e ao seu instrumento. Antes disso, o público foi brindado com uma curta-metragem em que uma jovem de lenço na cabeça, sentada nas dunas e pensativa como se estivesse num divã, mirava o mar entre o som das gaivotas e das ondas, até que se começa a escutar um cântico de tons árabes, em crescendo. De repente, o céu do filme envermelhece, à semelhança da sala; a banda entra em palco; ouve-se uma explosão e uma cacofonia de sons diversos; e por fim é-nos permitido respirar. Com “Breathe”, claro está. Respiramos como tantos outros o fizeram ao escutar The Dark Side of the Moon pela primeira vez. Não é à toa que é um dos álbuns mais vendidos da história da música gravada.
Há, no entanto, uma particularidade: não é Waters quem começa por cantar, mas sim Jonathan Wilson, espécie de herói indie que encontrou um mentor no músico britânico (e que editou o belíssimo Rare Birds há coisa de meses). É ele quem tem feito de David Gilmour ao longo desta digressão e, mesmo que não os possamos nunca comparar, é certo que o norte-americano faz um trabalho notável como seu substituto. Os olhos do público virar-se-ão para ele imensas vezes, ao longo do concerto, mas é de Waters o holofote: gesticula, passeia-se pelo palco, pede ao público por alguma efusividade. Isto é um espetáculo rock, mas é também ativismo, é também comunhão, é também uma prova que somos mais parecidos com “os outros” do que aquilo que pensamos.
E é a partir dos “outros” que se constrói grande parte da ideologia inerente a esta digressão, que apesar de se intitular Us + Them poderia perfeitamente ser Us v. Them; nós, os de bem, os de amor, os de paz, contra a máquina que se alastra e devora tudo à sua passagem, transformando desertos em mares de sangue (como visto em “Welcome to the Machine”). Nós, de punho erguido, em protesto constante contra a corrupção generalizada, o avanço das armas sobre os povos, a fome e a miséria. Nós, estudados e empáticos, contra os líderes with no fucking brains que Waters descreve em “Picture That”, uma das poucas canções de Is This the Life We Really Want? que encontra espaço no alinhamento. E nós, os pais das gerações que hão-de vir, dos Émiles Zolas que nos apontarão o dedo pelo mundo que lhes deixámos.
A essas gerações pertencerão os jovens que Waters “contratou” ao Bairro da Flamenga, em Marvila, para dançarem em palco ao som de “Another Brick in the Wall, Part 2” que, a julgar pelo coro de vozes que se escutou e pelas reações nos rostos dos presentes, era o momento mais esperado de todo o concerto. Justifica-se; a canção que alguns ainda teimam em dizer intitular-se “We Don't Need No Education”, baseando-se esse erro comum num dos seus versos mais célebres, é o mais próximo que os Pink Floyd alguma vez tiveram de um êxito. Porque comparar uma escola a uma prisão ideológica não poderia senão ser um êxito. Tanto os ouvintes como os leitores deste texto já foram crianças, e sabem-no.
Não é habitual existir, em concertos rock, uma pausa tão prolongada como a que aqui se verificou – vinte minutos para desentorpecer as pernas, fumar um cigarro ou aproveitar para beber uma cerveja ao triplo do preço normal. Mas também não é habitual encontrarmos um som tão fabuloso e nítido na Altice Arena como aconteceu esta noite, pelo que rapidamente o público se esqueceu desse refrear nos ânimos e agradeceu a todos os santinhos, voluntária ou involuntariamente, ter havido Eurovisão em Lisboa. Durante essa pausa, uma série de mensagens políticas vão tomando conta do ecrã, com destinatários diversos: Mark Zuckerberg, criador do Facebook, Gina Haspel, nova diretora da CIA, todos aqueles que pedem intervenções no Irão ou na Coreia do Norte e até mesmo pobres cães e porcos – que «não são animais piores que os outros», parafraseando uma dessas mensagens.
São, isso sim, as figuras principais de “Dogs” e “Pigs (Three Different Ones)”, temas que levam ao erigir de uma enorme fábrica a meio da Altice Arena e que têm um alvo principal: Donald Trump. Se durante a sua interpretação em território norte-americano “Pigs”, e as montagens de Trump que a acompanham, levou a que apoiantes do atual presidente dos EUA abandonassem as salas onde Waters atuava, em Portugal o registo é bem diferente: aplausos, gritos de desprezo dirigidos a essa personagem, e sorrisos muitos estampados na cara dos presentes – particularmente quando, em bom português, uma mensagem surge no final da canção (já depois de um gigantesco porco insuflável ter passeado pela sala, e já depois de uma pobre ovelha ter servido champanhe a uma banda vestida de suíno – não será necessário ter de explicar a analogia): «Trump é um porco».
O solo de “Money” ainda é capaz, tantos anos depois, de nos paralisar – e não arrepiar – a espinha, e “Us and Them” explica a quem ainda não tinha percebido aquilo de que se falou esta noite. Mas é no final de “Eclipse”, e abençoado por uma pirâmide de luz, que se dá aquele momento que transforma todo um espetáculo: Waters de braços cruzados sobre o peito, visivelmente emocionado, largando um curto “obrigado” antes de apresentar a banda que o acompanha. A prova de que por mais fama que se tenha, ela não é nada comparada com o amor que se recebe.
Antes de um encore com “Wait For Her” / “Oceans Apart” / “Part of Me Died”, trilogia que encerra Is This the Life We Really Want?, Roger Waters ainda teve tempo para saudar quem, nas filas da frente, levou uma bandeira da Palestina para a Altice Arena – e deixar uma mensagem bem clara aos seus apoiantes e aos seus críticos: «não preciso de discursar sobre a BDS quando a IDF [Israeli Defense Forces, as forças armadas de Israel] está em todas as TVs, a matar protestantes pacíficos em Gaza». Uma Gaza para a qual será preciso acordar ou, pelo menos, perante a qual não ficar “Comfortably Numb”, o tema com que Waters encerra um espetáculo de três horas, entre confettis onde se lê “RESIST” e um novo agradecimento sentido ao público. Teimoso? Talvez. Mas perante o mundo em que vivemos – e o qual não queremos –, como permanecer imóvel em vez de marchar a seu lado?
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