Alguém tem de avisar os proprietários do Teatro Politeama que ter sempre o mesmo reclame a passar indefinidamente em loop não é a melhor coisa para quem quer, antes de um concerto no Coliseu dos Recreios, fumar um cigarro e beber uma cerveja em paz – Laura Alves pode ser uma grande atriz mas não deve ser uma earworm das piores nem a musiqueta deve induzir ao pesadelo posterior, de tão martelado que foi. Da mesma forma, alguém deve dizer a Tim Bernardes que as t-shirts que tinha à venda na bancada de merchandising mais se assemelhavam ao logótipo da BP, mesmo que alguns tenham aproveitado para, logo depois de adquirir um exemplar, as vestir para assistir ao espetáculo com propriedade.
E que propriedade! Tim Bernardes é já um homem da casa, um paulistano com um carinho muito grande por Portugal, que sabe retribuir na mesma moeda. De outra forma não teria sido possível fazer uma digressão pelo país, culminando com dois espetáculos preenchidíssimos nos Coliseus: primeiro Porto, depois Lisboa. Olhamos para aquela figura, gigante desengonçado de óculos e barba e cabelo vasto, e nunca pensaríamos que algum dia se poderia tornar numa estrela. Mas depois ouvimo-lo, ouvimos as canções, a forma como a palavra portuguesa se enche de poesia.
Bernardes é um anacronismo, um brasileiro dos anos 60 e 70 que aterrou no mundo meio século depois para dar a conhecer ao grande público o quão bela é esta língua, o quão doce é o tilintar de um violão. A sala encheu-se de fãs, desde raparigas de cabelo duplo que o enjeitavam com recurso à câmara do telemóvel, até rapazes de perna traçada que iam lendo e ouvindo qualquer coisa nos headphones. E se estes já sabiam o que aí vinha, quem não conhecia e foi à descoberta acabou por se juntar a eles nessa enorme bola de romance com sabor a café e brisa de mar. Mesmo sem conseguir esconder o cinismo por ver o português ser português: faltavam cinco minutos para o concerto começar e metade das cadeiras da sala ainda não tinham sido preenchidas.
Acabaria por ser ele a preencher tudo aquilo com falsete, com murmúrios, com uma voz onde está tudo tão certo que nem importa que os estudiosos digam que está tudo errado (mas é lindo, disseram a Cartola). Ele puxa por si sem aviso prévio e parece que os Recreios levantam voo: andou a ouvir tudo o que é clássico, mas também bebe da modernidade quiet-loud do rock pós-Pixies, transformando o que em situações normais seria um simples concerto em algo próximo do sublime. Bernardes, como se diz de Artur Jorge, campeão europeu pelo FC Porto e apreciador das artes, não tem medo da palavra “bonito”. Também não há que ter esse medo ao falar de um concerto dele.
Vestido de castanho, entrando para o aplauso generalizado, o músico abriu com 'Nascer, Viver, Morrer', platitude transformada numa quase escuridão, só uma luz que ia desfigurando a silhueta. Agudos intercalados com gritos sinalizando a existência. 'Fases', que enterra Deus no quintal, seguiu-se-lhe, para dar às platitudes o tipo de verso que remói na cabeça, para que pensemos caramba, este gajo é mesmo bom, seja a cantar sobre a náusea ou sobre amor – e canta muito sobre amor, mesmo muito, com “BB” a merecer gritinhos de entusiasmo e um sussurro feminino a acompanhá-lo – e percebemos, com esse sussurro, o porquê de um dos assistentes de sala nos ter questionado se não estávamos acompanhados.
Ele sorri, ele faz coraçãozinho com as mãos, ele diz muito obrigado e desenvolve, por fim, o raciocínio: “Sempre fui muito bem recebido em Portugal, vocês são um público incrível”, o género de coisa que cai sempre bem dizer, e que neste caso até é capaz de ser bem verdade. Descreveu “Mil Coisas Invisíveis”, disco de 2022 que veio apresentar, como um álbum “metafísico”, comparando-o ao “Livro do Desassossego” de Pessoa - “o 'notas' do iPhone dele”, como troçou, o género de piada literária que noutro contexto não faria sentido algum. O absurdo é o divino e isso aplica-se também ao humor. Mas era isto incursão pela intelectualidade? Ná: 'Mesmo Se Você Não Vê' bate forte na alma e até nos faz sentir algo semelhante a carinho, a nós, tão habituados à misantropia.
Pelo meio, homenageou os antigos – como Gal Costa, para quem escreveu 'Realmente Lindo' em 2018, e Maria Bethânia, que recebeu em mãos e voz 'Prudência' –, sentou-se a um piano que tocava de forma tão poderosa como por vezes tocava a guitarra, e aceitou (muitos) discos pedidos: 'Ela' foi o primeiro, mesmo que a sua aura tenha sido, como 'Falta' pouco antes, quebrada pelo disparar de vários flashes, porque o português médio pode também ser uma besta. Entre elogios à sala, que “dá vontade de tocar umas quatro horas” (quem quiser repetir pode sempre ir esta sexta-feira), tocou 'It's All Over Now, Baby Blue', de Bob Dylan, na versão traduzida por Caetano Veloso, anunciou nova digressão d'O Terno, a sua banda, mais para o final do ano, deixou elogios a... José Cid, de quem é fã confesso (até arranhou uns trechos), ficou sem jeito quando alguém grita és tão fofo! e interpretou um colosso chamado 'Última Vez', uma daquelas canções que, se não ficarem para a história, mais vale destruir o mundo inteiro.
O obrigatório encore também foi em regime jukebox: 'Bielzinho', outra d'O Terno, 'Culpa', idem, a lendária 'Baby', numa versão quase tão boa como a d'Os Mutantes que tanto aprecia, e 'Eu Vou', com uma mensagem que parece mais que indicada a quem tem o prazer de o ter visto a cantar: Não vou mais aturar baixo astral na minha vida. Tim Bernardes é alto, é alto astral, é alto artista, e engrandece-nos com ele. E se Pessoa invejava a todas as pessoas o não serem eu, uma mera canção leva-nos a invejar não ser Tim Bernardes. Foi tão bonito, não foi?
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