Pergunta para quizz ao leitor. Quem não tem presente na consciência de ter entrado no Tokyo ou no Jamaica, mas não se recorda como e quando é que saiu daqueles dois míticos espaços noturnos da noite de Lisboa, sitos então na rua cor-de-rosa, ao Cais do Sodré? Por vezes, até, nem de lá ter estado. Que deixe cair no chão a primeira garrafa ou copo quem nunca passou por essa experiência.
As (boas) memórias dessas incursões eram sempre avivadas horas depois com o odor, diríamos, pestilento emprenhado na roupa, calças, camisas, t-shirts, casacos, saias e também no cabelo.
O cheiro a tabaco e álcool não enganavam. As pernas doridas, o corpo moído de tanto dançar e a cabeça pesada ainda a abanar em câmara lenta ajudavam à lembrança. E, se dúvidas houvesse, a prova dos nove vinha confirmada numa cola de derivados líquidos colada à sola dos sapatos, ténis ou sandálias.
“Os clientes diziam que se lembravam perfeitamente de ter ido, mas não se lembravam de pormenores”, conta ao SAPO24 Luís Miguel (Gonçalves), antigo “portas” do Jamaica, hoje “diretor segurança dos dois espaços”.
Para o homem que filtrava a anterior entrada naquele espaço exíguo, “o melhor feedback era quando acabava a noite e as luzes ligavam". "Ficava tudo muito branco e claro, olhavam para a casa e perguntavam 'onde é que eu estou e como é que cabemos tantos aqui?'. Parecia muito maior, diziam”, acrescenta à descrição.
Mudar para 500 metros mais à frente em linha reta
Fechados em março de 2020, devido à pandemia, os históricos clubes noturnos lisboetas Tokyo e Jamaica reabriram esta quinta-feira. Não no sítio do costume onde estavam há 50 anos (Jamaica celebrou meio século de vida em 2021), mas sim num novo espaço criado e pensado de raiz por Fernando Pereira, arquiteto e sócio das duas “casas”.
Dando seguimento da denúncia do contrato de arrendamento, cinco anos antes, deixaram para trás o quarteirão na Rua Nova do Carvalho que albergava as duas pistas dançantes (mais o Europa, cujas obras ainda não estão finalizadas), e, quase em linha reta, a cerca de 500 metros, plantaram-se no Cais do Gás, à frente da estação de comboios do Cais do Sodré, ao lado da estação fluvial.
Saíram do local (onde nascerá um hostel de 80 quartos distribuídos pelos seis pisos do edifício) que lhes deu fama, mas a alma criada e alimentada ali acompanhou-os na viagem para os novos metros quadrados onde prometem continuar a animar as noites da capital portuguesa.
Hoje, a sustentabilidade dos materiais e da construção em nada se assemelha com as paredes decrépitas do anterior carrossel noturno que animou gerações e gerações de noctívagos.
Uma nova entrada única no Tokyo e Jamaica
A entrada é única. As duas casas, assinaladas com o nome ao alto, estão interligadas entre si. À esquerda, viramos para o Tokyo, à direita, para o Jamaica. O fecho de braços é feito no interior, explicado em português e inglês – empurre (push) e puxe (pull). Para sair, não há que enganar. É sempre em frente.
23h00 era a hora marcada para reabertura. Instantes antes, à porta, Luís Miguel levanta um pouco o véu daquilo que nos esperava. E ao leitor também.
Começa pelo Jamaica, onde trabalhou “entre 12 e 14 anos”. Deixa uma garantia ao referir-se ao pé direito baixo e ao espaço que parecia quase sempre ser maior. “Vão continuar a ter essa sensação porque temos uma parede amovível que encurta conforme o público presente. Para que se sintam confortáveis, mas também para conferir aquele aconchego que estavam habituados”, descreve o, também, nesta fase inicial, “técnico de relações públicas”, a quem é atribuída a tarefa de receber quem lá quer entrar. “Conheço os clientes de um lado e de outro, conheço os putos e os cotas. Mais cotas...”, reconhece.
Sorri quando “acusado” de ser o “mauzão que estava à porta” que, algumas vezes, dizia secamente: “é muito homem junto”, uma frase repetida em muitas outras portas, reconheça-se. “Tinha que dizer, fazia parte. Tentava que houvesse uma flexibilidade que não destruísse o que estava a ser construído lá dentro”, confidencia. “Mas não era, nem sou o mauzão”, retificou, sossegando as almas. “Devemos receber as pessoas como gostávamos de ser recebidos e devemos tratar os outros como gostamos que nos tratem a nós”, atira.
Muda o disco do teaser. No Tokyo, o palco antes era ao nível do chão, agora subiu um bocadinho e tem camarim e backstage”, elenca. “Hoje vem cá uma pessoa, o Calu, baterista dos Xutos&Pontapés. Fazia questão de dizer muitas vezes que os primeiros concertos que deram foi no Tokyo”, revela.
O chão de ambos já não é o mesmo. “Não, não é... aquele em que ficavam colados e era difícil arrastar os pés”, relembra, sorrindo, com nostalgia.
“Vamos abrir”. Sem guest list, com a senha de sempre e a app do presente
A conversa é interrompida. “Vamos abrir”, alertou Fernando Pereira, o dono daquilo tudo. Manda quem pode, obedece quem deve.
Há filas, mas não há guest list que o momento poderia pressupor impor. Tínhamos sido alertados para uma novidade. “Criámos uma app, carrega a aplicação, passa o QR code e entra”, informou Fernando Pereira numa conversa telefónica prévia. O futuro chegou, tudo parece estar de cara lavada, no entanto, o passado persiste e não é apagado. “A famosa senha quadrada para o consumo vai continuar”, garantiu.
Tudo confirmado in loco. O picotado encarnado numerado que vale bebidas e diversas vezes esquecido nos bolsos é entregue à entrada a quem não descarregou, antecipadamente, a aplicação do Google Play ou App Store.
Ontem, valia uma bebida de borla em cada um dos locais. Um Ballantine’s, Wyborowa, Beefeater ou imperial, no Jamaica, um Jameson, Absolut, Beefeater ou imperial, no Tokyo.
“Enjoy The Silence”, o “dá cá dois beijos” e as conversa ao postigo
Chega de conversa. Entrámos. Viramos à direita. Jamaica. O som é de Depeche Mode, “Enjoy The Silence”.
O ombro direito acompanha o passo do mesmo pé. Movimento repetido, agora do lado esquerdo. Uma iniciação à dança interrompida com um grito. “Olha quem aqui está”, exclamou uma voz grossa. Não éramos o alvo. Era Maria de Lurdes, a mão e o rosto por detrás do bengaleiro, o tal cubículo onde entregámos os casacos (ali amontoados) antes de voarmos até à pista onde, debaixo da escuridão, colávamos o corpo, sem saber a quem. E onde nos entornavam cerveja, vinda não sabemos de quem.
“Dá cá dois beijos”, soltou. Deram e abraçaram-se, cliente habitual e a responsável pelo guarda-roupa nos oito anos anteriores ao fecho e que, tal como outros que sobreviveram ao lay-off, está de regresso ao sítio onde foi e quer continuar a ser feliz.
O SAPO24 apresentou-se, sem direito a osculação. “Conheci muita gente”, justifica o efusivo cumprimento prévio. “Durante a semana, por vezes, era confidente. Fiz alguns amigos” assume do lado de lá do postigo por onde via passar uma clientela “transversal a todas as profissões e idades”, recorda.
Sobre o novo poiso que lhe é destinado, adianta. “Tem mais ou menos o mesmo tamanho. Vamos começar hoje [ontem] e vamos ver se cabe tudo aqui”, desejando uma casa cheia.
Lá dentro tudo parece voltar atrás no tempo. O DJ Bruno Dias gere a pista de dança de geometria variável, com o som eterno que nos habituou e que quer continuar a levar a sala a pular. Lá dentro estão ainda os quadros do Bob Marley, o boneco do célebre jamaicano atrás do balcão e a garrafa alusiva aos 40 anos do Jamaica. Há ainda caras novas nas paredes (Michael Jackson, por exemplo).
A pista estava aberta, começava a compor-se e algumas balzaquianas e senhores com idade do Jamaica desgarravam na pista. As memórias alimentam a alma. E o ADN do espaço lá. A cada milímetro.
Entre passagens pelas casas de banho assinaladas a encarnado e identificadas com quadros e fotografias alusivas ao género que pode entrar, mudámos de discoteca. Uma mudança feita pelo interior num abrir e fechar olhos que a escuridão permite.
“Onde é que está o pai”
Fomos ao Toyko com a sensação que ainda não tínhamos saído do Jamaica. Um sentimento possível de fazer “all night long” do Jamaica para o Toyko e do Toyko para o Jamaica. Por dentro, abraçando as pistas, ou por fora, respirando “cá fora” sem sair lá de dentro, no “jardim exterior” onde se poderá pausar para um cigarro e mais uma cerveja.
Deparamo-nos com os saudosistas da casa a tirar fotos ao novo local. E mergulhamos no passado através das letras das músicas escritas no balcão só, e só observadas quando a casa fechava ou acabava de abrir.
“É o melhor som de Lisboa", recordou Fernando Pereira. “Tem um equipamento direcional. Permite que no palco, ao lado dos músicos, o som não seja projetado e não aconteça o pum-pum nas colunas e não tenha reflexo atrás”. No Jamaica “as colunas nas paredes entram em funcionamento à medida que ela se mexe”, pormenorizou.
Pedimos uma Coca-Cola (sacrilégio). “São 3,50€, em lata, mas é zero”, informa a barwoman. Pagámos para assim guardar as senhas para recordação. Ao lado, o barman começa a dar os primeiros passos de um cocktail, uma das novidades do novo Tokyo.
A banda perfilha-se para tocar. Deo, brasileiro a viver em Portugal há quatro anos, é o músico residente. “Os músicos não se conhecem. A ideia é criar juntos, ter várias artes e criar coisas, fazer jam sessions, jam e mais jam”, antecipa.
A música “Living in America” entra em fade out e a banda sobe ao palco. O responsável do som, de prezada idade, não vive em Lisboa e, por isso, e só por isso, não coleccionou noites na antiga rua cor-de-rosa. “Estive no Tokyo umas duas vezes”, contabilizou antes de dar voz e som aos artistas. “Com sinceridade não sei quem vai atuar”.
Entra o som. Começa a sala a cambar. Permanecemos. Dançamos o ritmo que parece desconexo. Saímos com efeito de mareagem.
“Onde é que está o pai”, ouvimos a pergunta no espaço exterior. Detivemo-nos para ver quem perguntava. Uma mãe e uma filha trocavam palavras. “Levei-a ao Tokyo com 17 anos”, explica Luísa Neves. “Vinha, às vezes com ela, com o meu marido ou amigas, nas noites de 5.ª feira, que era quando tinha folga”, recorda. “E adoro [atente-se no tempo verbal] o Jamaica, não consigo explicar”, reforça.
Sílvia, a filha, nunca se importou de partilhar espaços de diversão com os progenitores. “Nunca tive problemas”, assegura.
Para completar o tridente familiar faltava o pai. Estava a ouvir a banda. “Não me recordo há quantos anos venho cá. Muitos. Tantos”, frisa José Lobo.
O ambiente familiar não causa surpresa a Fernando Pereira. O Tokyo tem público mais jovem, o Jamaica tem a old school toda. Hoje são o Tokyo e o Jamaica 4.0. Os dois espaços são para pais e filhos. Cada qual no seu sítio, e, no final da noite, trocam mensagens, marcam encontro na esplanada, bebem o último copo e apanham o Uber.
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