Também conhecido como Secção Palestina ou apenas Sucursal 235, o complexo prisional foi parcialmente destruído pelo fogo quando, no dia 8 de dezembro, as forças de oposição entraram em Damasco e expulsaram o regime de cinco décadas de Bashar al-Assad e do seu pai, Hafez. Das suas celas sombrias saíram em liberdade centenas de prisioneiros, alguns dos quais desde há longa data e Jamal Toumeh era um deles.
O homem de 40 anos foi preso com outras 12 pessoas quando circulava no bairro palestiniano de Yarmouk, na periferia da capital síria, entretanto arrasado na brutal repressão das forças de segurança aos protestos populares desde 2011 no seguimento da Primavera Árabe. Este ambiente de enorme confrontação, que continuou durante mais de uma década no país em guerra civil, acabou por enquadrar uma acusação de angariação de armas para os grupos de oposição, o que diz ser, às portas da cadeia, “uma completa mentira”.
Assim começou o calvário de Jamal Toumeh, atirado durante várias semanas para uma cela com mais 85 pessoas sem espaço para todos se deitarem, de onde raramente saíam e onde eram mal alimentados. Do período em que esteve preso nos calabouços dos serviços de informações sírios, instalados num prédio deslavado de nove pisos, relata torturas frequentes, em que era despido da cintura para baixo, pendurado pelas mãos e espancado com uma mangueira, mostrando as marcas das cicatrizes nas pernas, algumas bastante recentes, que lhe provocam dores e irritação constantes.
Foi por causa destes ferimentos que regressou à Secção Palestina uma semana e meia depois de ter inesperadamente de lá saído, em busca de um remédio que sabe existir no interior e que era dado à multidão inteira da sua cela, sujeita ao mesmo tratamento de tortura, ainda que um pequeno frasco tivesse de chegar para todos.
Um grupo de mulheres escuta, com reações de inquietação, esta descrição. Afinal, elas estão à procura dos seus filhos ausentes e que pertencem a uma lista de mais de cem mil pessoas que organizações de direitos humanos internacionais estimam terem desaparecido nas cadeias do país na última década.
É na mesma porta da Secção Palestina que está Halima Ahmad Ibrami, 60 anos, que viajou mais de 500 quilómetros da cidade de al-Hasakah, no extremo noroeste da Síria, para a prisão na capital, onde pesquisa demoradamente, em grandes pilhas de ficheiros encontrados nos escritórios, um sinal do filho Ahmed, desaparecido em 2012. Souheir al-Ahmad, 65, faz o mesmo, questionando “a lógica do critério de Assad, que prendeu sem razão um filho e deixou outro solto e vivo”.
Ao longo dos pátios exteriores da cadeia e do seu interior, vigiados por militares rebeldes do Organização para a Libertação do Levante (Hayat Tahrir al-Sham, HTS), que estão agora no novo poder de Damasco, repetem-se as imagens de Bashar e Hafez al-Assad vandalizadas e deitadas ao chão para quem as queira pisar ou ainda desprezar sem receios um lema inscrito na parede: “As palavras de firmeza e generosidade triunfarão”.
Na Sucursal 235, toda a gente procura alguma coisa e, no caso de Mourad Mohamed, é o bilhete de identidade, confiscado no momento em que foi capturado há seis meses sob a acusação de “financiamento ao terrorismo e a Israel”, ou como prefere dizer, à revolução.
Também este curdo, de 45 anos e proveniente de Alepo, foi libertado no passado 8 de dezembro, após um cativeiro de seis meses na cela subterrânea 11-1, húmida, fétida e em escuridão quase total, juntamente com 82 outros prisioneiros.
Entretanto, regressou à cadeia para visitar uma secção administrativa no fundo do corredor gradeado onde esteve preso, para procurar o bilhete de identidade numa pilha de papéis de uma sala totalmente revolvida e onde se amontoa toda a espécie de objetos, desde livros, roupas, sapatos, eletrodomésticos até próteses anatómicas. De caminho, vai separando os documentos de outros prisioneiros que vai descobrindo e a caixa já está quase cheia.
Na prisão Palestina, todo o cenário é muito semelhante ao que os militares rebeldes encontraram em Sednaya, a norte de capital, quando libertaram o principal complexo prisional da repressão síria.
As masmorras subterrâneas foram abandonadas e estão agora desertas, ficando para trás roupas, restos de comida e mantas. A de Morad Mohamed ainda está no mesmo lugar. Nas minúsculas celas solitárias, há paredes decoradas com versículos corânicos e um calendário improvisado, em que é possível contabilizar mais de 300 dias assinalados pelo seu criador.
Nas partes não devoradas pelo fogo no dia em que os efetivos da secreta saíram apressadamente do edifício, encontram-se ainda mais arquivos e ficheiros e uma bancada com centenas de fotografias tipo passe, que estão a ser passadas a pente fino por Mohamed Ali Houbaybati, 62 anos, e pelo seu irmão Khaled, 50. Ambos sabem que uma delas é do seu sobrinho Qusay, porque a viram num golpe de sorte numa reportagem recente de um canal libanês
Qusay Oulwan tinha 17 anos quando foi preso em 2014 em Damasco, supostamente por guardar canções proibidas no âmbito do seu ativismo anti-Assad, e agora está morto, segundo uma carta recebida pela família: “Mas nunca veio o corpo”, segundo os dois tios, que o procuraram em toda a parte, incluindo em Sednaya.
“Pode ter morrido lá ou cá”, comenta Khaled Houbaybati, que também esteve preso na Secção Palestina, tal como o seu irmão, este por duas vezes, a última das quais até há dois meses, quando subornou um general por 400 dólares para sair do mesmo local onde agora pesquisam qualquer vestígio do sobrinho, que teria hoje 27 anos, e encerrar as buscas e as expectativas da mãe, refugiada na Alemanha, que “nunca perdeu a esperança de o encontrar”.
*Henrique Botequilha (texto) e António Pedro Santos (fotos), enviados da agência Lusa*
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