Descalço, de calças arregaçadas e uma navalha na mão, herdada do avô, Gil Fernandes avança sobre as rochas, enquanto colhe algas, como cabelo de velha, esparguete do mar, laminária ou bodelha. Umas podem ser comidas cruas, outras são secas e aproveitadas para caldos e molhos. Serra acima, apanha flores e plantas, como o chorão da praia, a erva de caril, malva-rosa, madressilva, chagas, sabugueiro ou jasmim.
A colheita é feita todas as semanas, sempre na maré vazia, e é melhor na lua cheia e lua nova, quando “é possível ir mais ao fundo do mar”, explicou à LUSA. “Isto tem que ser apanhado com cuidado, para não as extinguir, não é?”, diz, enquanto pega numa anémona.
A curiosidade veio da avó, que colhia plantas e algas “para curar maleitas”, um conhecimento que o chef do restaurante com uma estrela Michelin quis aplicar à cozinha.
“Tive de ir à procura, fui ler sobre esses produtos e fui vivenciando a confeção nos restaurantes onde estava e comprovando que era comestível, que era saboroso e que dá para fazer inúmeras receitas”, conta à Lusa, afirmando estar “em constante aprendizagem”.
Hoje, Gil Fernandes sabe de cor a época em que cada produto está disponível na natureza, respeitando a sazonalidade. Os produtos que apanha na zona integram o menu do Fortaleza do Guincho, que se associou, com pratos exclusivos, ao Dia Mundial dos Oceanos, assinalado hoje, uma iniciativa em que a cadeia internacional Relais & Châteaux participa desde 2009 para alertar para a importância da sustentabilidade e da preservação do ambiente.
Na edição deste ano, Gil Fernandes concebeu um menu exclusivo e que se baseia nas suas memórias: da malva-rosa que colhia, sem autorização, do jardim da vizinha, à 'pesca do polvo' – representada por um prato com uma rede feita de batata-doce, que recorda as pescas com o avô -, o ‘conta-gotas’, uma alface com tártaro de carabineiro, “regada” na mesa com molho de couve fermentada, evocando o pai, agricultor, ou um cherne com caldo de cozido à portuguesa, prato servido aos domingos em família.
A sustentabilidade, explicou, “faz parte do ADN” da sua cozinha: "Encontramos a sustentabilidade no que vamos apanhar todos os dias e que poupamos o mundo de produzir mais ainda. Por exemplo, apanhamos chagas, poupamos o mundo de ter que estar a regar essas chagas, porque nós já apanhamos o que há no mundo selvagem”, descreve. A preocupação com o ambiente também é visível na eleição de produtos locais e de época.
“Não estamos a forçar nenhuma época, não estamos a comprar um ananás que vem do Brasil e faz cinco ou dez mil quilómetros para chegar a Cascais. Não, compramos um ananás que é mais de perto, dos Açores, e isso reproduz-se em qualquer produto que nós colocamos no nosso menu”, explica à LUSA.
O mesmo se aplica ao aproveitamento total do produto: “De um peixe-galo, aproveitamos o filete, os ossos e espinhas servem para fazer o molho, as ovas para fazer a guarnição”, exemplifica.
Um trabalho que Gil Fernandes acredita que serve também para “educar o cliente”.
“A ideia é fazer com que ele entenda a nossa filosofia de respeito pelo produto, pelas épocas e pelas pessoas que o produzem. Se calhar, ele também vai repensar um pouco a vida dele, o que comprar para a sua própria casa, naquilo que poderá fazer bem ao mundo e, por consequência, ajudará as próximas gerações a terem um futuro melhor, porque agora já não está fácil”, adianta.
A diretora-geral do Fortaleza do Guincho, Petra Sauer, reforça: “É importante consciencializar o cliente sobre o ambiente à nossa volta e sobre a sustentabilidade, de trabalhar com parceiros locais, com produtos locais e sazonais. Tudo isso faz parte da nossa preocupação e é uma filosofia permanente no restaurante e no hotel, que é urgente partilharmos”.
Desde 2009, os 580 membros da Relais & Châteaux em mais de 60 países unem-se neste dia para chamar a atenção sobre a importância das espécies marítimas sustentáveis, uma iniciativa alinhada com a visão e estratégia da Organização das Nações Unidas para a preservação dos oceanos.
O menu, como todos os que Gil Fernandes concebe, dura tanto quanto durarem os produtos. Quando acabar a época do cherne, por exemplo, passará a ser servido robalo.
“Se um cozinheiro respeitar as épocas, tem sempre produto para trabalhar”, garante o chef.
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