Houve um tempo, e não está muito longínquo, em que se falava de a União Europeia caminhar para uma federação. As diferenças entre os vários países e a crise económica vieram pôr um travão nesta ideia, mas a discussão não se perdeu para sempre. O que tem isto a ver com nacionalismo?
A globalização coloca hoje desafios à reprodução das identidades nacionais que as corroem. Um exemplo é a imigração. A ideia de que há uma espécie de muralha da China a separar o bom e o mau nacionalismo é uma ideia com muitos limites, mas a verdade é que o nacionalismo não é todo a mesma coisa.
José Neves, professor do Departamento de História da Nova FCSH e que tem como áreas de investigação a História das Ideias Políticas e dos Movimentos Sociais, a História dos Comunismos e Estudos sobre Nacionalismo - e que se declara apoiante da CDU -, fala sobre os desafios e perigos das ideias que lhe estão subjacentes.
"Esta ideia de que há uma espécie de muralha da China a separar o bom e o mau nacionalismo é uma ideia com muitos limites"
Na semana passada falámos de comunismo. Comunismo e nacionalismo andam de mãos dadas?
Não. Tentei há muito tempo, cerca de 20 anos, fazer uma investigação, que correspondeu à minha tese de doutoramento, onde tentei mostrar como é que o comunismo, ao longo do século XX, se nacionalizou, digamos assim.
No contexto português, mas podemos ver isto em contextos mais amplos, há vários momentos que explicam esta nacionalização - a evolução da história da União Soviética seria um exemplo, a convergência entre o movimento comunista e os nacionalismos anticoloniais seria outro.
Portanto, não, nem sempre andam juntos. E, em certo sentido, podemos dizer que é ainda na área do comunismo que encontramos as expressões de maior crítica às visões nacionalistas, se tivermos por nacionalismo, aqui, um entendimento exclusivista, tendencialmente xenófobo ou racista.
"Não nascemos portugueses, independentemente do cartão de cidadania, somos ensinados a ser portugueses"
Podemos entrar já por aí: o que é, exatamente, o nacionalismo?
O nacionalismo pode ser entendido como um conjunto de expressões políticas, intelectuais, culturais, que visam promover a identidade nacional. Parece uma lapalissada, mas o que está aqui em causa é a ideia de que os nacionalismos não são apenas, ou sequer sobretudo, um resultado da identidade nacional. São os nacionalismos que, de alguma maneira, fomentam as identidades nacionais.
As identidades nacionais não são coisas que existam naturalmente, não existem desde o início dos tempos. No caso português, frequentemente dizemos que a identidade nacional é muito antiga, remonta a cinco, seis, sete, oito séculos. Ora, sabemos que, independentemente de uma certa genealogia, que em última instância nos pode levar até esse período, é sobretudo na época moderno-contemporânea, a partir do século XIX, que um conjunto de ideias a que podemos chamar nacionalistas, potenciadas a partir de determinada altura pela construção de um sistema de poder que é o Estado, o moderno Estado nacional em vias de construção, vão generalizar, massificar, potenciar esse sentimento de identidade nacional.
Concretizando, é o nacionalismo que todos os dias ensina nas nossas escolas públicas, mas também privadas, as nossas crianças, os nossos filhos, a sentirem-se portugueses. Nós não nascemos portugueses, independentemente do cartão de cidadania, nós somos ensinados a ser portugueses. Somos ensinados a pensar a história do mundo, que é um lugar relativamente grande, dedicando pelo menos metade do nosso tempo à história de um pequeno quintal, que existe nesse mundo, que é Portugal. E isto acontece com Portugal e acontece com outros contextos.
Portanto, o nacionalismo é, desse ponto de vista, um conjunto de ideias, de sentimentos, de representações que, em grande medida, é potenciado por mecanismos de poder como o Estado, mas também a comunicação social, o desenvolvimento daquilo a que chamámos a imprensa, que conseguem fazer com que as pessoas que habitam num determinado território se identifiquem frequentemente a partir da sua condição nacional e não se identifiquem, necessariamente, a partir da sua condição de género, da sua condição de classe, do clube de futebol de que gostam, da sua religião. Identificam-se, primeiramente, ou pelo menos muitas vezes, com sendo portugueses ou senegaleses ou canadianos, etcétera.
"A nossa forma de nos pensarmos obedece a uma espécie de kit IKEA de identidade nacional"
Vivemos num mundo cada vez mais global, hoje temos os filhos do Erasmus, as duplas e triplas nacionalidades. Esta realidade pode exacerbar os nacionalismos ou, pelo contrário, diluí-los?
Sim e não. Vou começar pelo não. Ao contrário do que normalmente os nacionalistas dizem, o nacionalismo é algo muito pouco original. Se reparar, é verdade que temos bandeiras diferentes - os espanhóis têm uma bandeira com determinada cor e determinado desenho, os indianos com outra cor, os portugueses com outra cor, os uruguaios com outra cor -, temos poetas diferentes, falamos línguas diferentes, temos moedas distintas (pelo menos em alguns casos), mas a nossa forma de nos pensarmos enquanto comunidade, toda ela, obedece àquilo a que uma autora chamou uma espécie de kit IKEA de identidade nacional.
A nossa forma de nos imaginarmos como comunidade nacional, que depois podemos pintar de formas diferentes, imita-se. As nações são, de alguma maneira, kits que se imitam uns aos outros. E alimentam-se.
É ou foi muitas vezes em circuitos internacionais que estas identidades nacionais foram sendo produzidas. Exemplo concreto: as grandes exposições universais que começam a ser realizadas em meados do século XIX - tivemos uma importante na memória recente da vida cultural portuguesa, que foi a Expo 98. Essas exposições o que são? São uma feira de encontro de identidades nacionais que, no fundo, são momentos internacionais, globais, participados por cada vez mais países, com circulação e fluxo turístico globalizado cada vez maior. Mas, nesses contextos, estamos a promover um conjunto de políticas identitárias nacionais.
O que acontece muitas vezes é que guardamos a ideia de políticas identitárias para falar de um conjunto de movimentos políticos. Não falamos da nação porque já naturalizámos de tal maneira que já nem questionamos a natureza construída e historicamente situada, portanto, não natural, desse processo de identificação.
Dito isto, é evidente que há um conjunto de processos de globalização económica que se fizeram sentir nos últimos dois ou três séculos que colocam desafios à reprodução das identidades nacionais e que as corroem. Por exemplo, o caso da moeda, a inexistência de uma moeda nacional, que durante muito tempo foi um símbolo operativo da construção de uma ideia de mercado nacional, através da uniformização de um sistema de peso e medidas que cria a ideia de economia nacional.
Hoje discutimos a economia nacional, mas já não temos uma moeda nacional. Há aqui desfasamentos que fazem parte do próprio processo histórico. E há, evidentemente, desafios que alguns processos de globalização económica têm colocado à reprodução das entidades nacionais.
Quem são, no espetro político português, os campeões do nacionalismo?
Os campeões do nacionalismo, se o entendermos, como frequentemente se entende, como um fenómeno político exclusivista, excludente (muitas vezes chamado etno-genealógico, pela ideia de que para pertencer a uma nação é preciso ter o sangue dessa nação), assente em valores como a xenofobia, muitas vezes implicitamente e abertamente conotado com a segregação racial e o racismo, estão situados à extrema-direita.
O Chega deve ser identificado claramente como partido nacionalista - no sentido pejorativo que, a partir da Segunda Guerra Mundial ou do momento em que, pelo menos do ponto de vista normativo, podemos considerar um mundo pós ou anti-racista.
Se por nacionalismo entendermos, como muitas vezes na literatura analítica sobre os nacionalismos se entende, e nalgumas correntes políticas também, uma forma mais benigna, cívica, a que muitas vezes se chama patriotismo, ou seja, um sentimento de identidade nacional de orgulho, se quisermos assim, mas um orgulho que não é pensado em conflito ou em relação de superioridade com o outro, então podemos dizer que a generalidade dos partidos que participam da vida institucional parlamentar hoje pode ser classificada como patriótica - patriótico e de esquerda, como o Partido Comunista Português gosta de dizer.
Mesmo partidos que à primeira vista têm um discurso muito anti-estatista, muito anti-nacionalista do ponto de vista económico, como a Iniciativa Liberal, não deixam de o exprimir na linguagem da nação. Ou seja, todos os protagonistas político-partidários vêm a jogo para, no fundo, se apresentarem como os melhores intérpretes ou aqueles que têm a oferecer algo melhor para o futuro da nação.
"Há claramente um nacionalismo que é considerado mau, conotado com as expressões racistas e xenófobas, e um nacionalismo benigno, entendido como patriotismo"
Isso quer dizer que há um nacionalismo bom e um nacionalismo mau, um nacionalismo de esquerda e um nacionalismo de direita?
Não colocaria as coisas na esquerda e na direita, mas diria que há claramente um nacionalismo que muitas vezes é considerado um nacionalismo mau, conotado com as expressões racistas e xenófobas do nacionalismo, e um nacionalismo benigno, entendido como patriotismo, que captaria um espetro político do centro-direita até à esquerda e à extrema-esquerda.
É evidente que o nacionalismo, enquanto ideologia plural, tem uma vida própria. Ou seja, esta ideia de que, de alguma maneira, há uma espécie de muralha da China a separar o bom e o mau nacionalismo é uma ideia com muitos limites.
Podemos ver um exemplo claro nesta campanha eleitoral, a discussão em torno da imigração. As diferentes posições refletem aquilo a que podemos chamar uma leitura mais acirrada, que joga com o pressuposto de que há um sentimento xenófobo e racial no eleitorado que deve ser potenciado, e que podemos conotar com as posições do Chega, e uma mais moderadas, à procura de uma relação harmoniosa entre os interesses nacionais da população portuguesa e os contributos da população imigrante - à esquerda e ao centro tem-se argumentado que sem os imigrantes a segurança social não teria condições de pagar as reformas que atualmente paga.
Portanto, há diferenças, mas ao mesmo tempo vemos que o tom do debate sobre a imigração tem sido cada vez mais marcado pela agenda da extrema-direita. O mesmo se passou em França. Nos últimos 20 anos, no espetro político francês, houve uma espécie de muralha da China, uma linha vermelha que se traçou entre a extrema-direita, o centro e a esquerda.
Um dos fatores de clivagem foi exatamente as questões da imigração. Passado 15 anos desta linha ter sido traçada, e ser anunciada a cada eleição, vemos que boa parte das propostas feitas hoje pelo centro, identificando-o com Macron, são propostas muito mais próximas daquelas que eram as propostas da extrema-esquerda há alguns anos.
Sim, há uma diferença entre os nacionalismos, o que não significa que não haja vasos comunicantes entre aquilo a que poderíamos chamar o nacionalismo bom e o nacionalismo mau, com aspas.
"No discurso de Pedro Nuno Santos encontramos um nacionalismo económico com cunho industrial"
Embora a França tenha com a imigração um problema que, em dimensão, não se compara com Portugal. Mas podemos falar no nacionalismo de Trump ou no nacionalismo de Xi Jinping, por exemplo. São coisas diferentes?
São diferentes, mas a sua questão é importante e é interessante. Quando falamos de nacionalismo podemos estar a falar de vários temas: população, cultura, costumes, economia. Tudo isto, evidentemente, se relaciona.
No caso que coloca, Donald Trump fica associado, no seu primeiro mandato - já estou dramaticamente a antecipar um segundo -, a uma certa reinterpretação económica do nacionalismo americano. Não é apenas o nacionalismo que valoriza o papel dos Estados Unidos da América como agente regulador da ordem mundial, do ponto de vista da política externa poder-se-ia até dizer que a política de Trump é menos agressiva do que a dos democratas, mas há uma revalorização de uma certa ideia de uma América economicamente produtiva.
E essa ideia de uma nação auto-suficiente do ponto de vista da produção é construída contra uma estereotipação daquilo que seria a crescente influência da China, sobretudo a nível das exportações, de tecnologia e de bens industriais. Desse ponto de vista, há um nacionalismo económico com um pendor industrialista, que depois se concretiza mal - mas o investimento público durante o mandato de Trump é muito significativo, por comparação.
Há uma similitude entre isso e o nacionalismo económico chinês, centrado em torno da figura do Estado, nas múltiplas formas de organização empresarial que o sistema chinês vai tendo. Mas isso é algo a que, quanto mais não seja do ponto de vista retórico, temos vindo a assistir noutros contextos políticos.
Podemos encontrar esta valorização de uma espécie de nacionalismo económico, muito orientada para a ideia de que um país, um povo, deve ser capaz de produzir economia e não apenas consumir ou vender serviços, em vários contextos. No contexto português está presente, sobretudo, em dois tipos de discursos políticos: PCP e Pedro Nuno Santos.
No discurso do Partido Comunista Português, muito claramente, desde logo num velho slogan do PCP: Portugal não é um país pobre, tem recursos, desde logo recursos humanos, capazes de produzir uma dinâmica de desenvolvimento que não está dependente do financiamento europeu, como antes não estaria dependente do "financiamento" colonial.
No discurso de Pedro Nuno Santos, com maior ou menor ênfase, já antes desta campanha, mas na própria ideia de um "Portugal inteiro", na valorização, por exemplo, das capacidades produtivas de toda a população portuguesa - não apenas aquele discurso que encontrávamos no Partido Socialista dos quadros qualificados, da geração mais qualificada de sempre.
No discurso de Pedro Nuno Santos aparece a geração mais qualificada de sempre, mas aparecem também as gaspeadeiras, os trabalhadores da ferrovia. Aí encontramos um nacionalismo económico com cunho industrial, que não é o mesmo estereotipado nas críticas que a partir do liberalismo lhe são dirigidas, mas que agora até se articulou nesta ideia de que é preciso ter políticas selectivas de apoio ao desenvolvimento económico, um industrialismo selectivo, como de alguma maneira o protecionismo industrial sempre foi, medidas para as indústrias emergentes, escolhendo umas em detrimento de outras.
Falámos dos partidos contra a NATO, a UE ou o euro. O nacionalismo é ou não compatível com estas organizações? No caso particular da UE até se discutiu caminhar para um modelo de federação.
Depende dos modelos de que estivermos a falar. Mas há, evidentemente, uma contradição muito maior entre um modelo federal do que aquele que é o modelo atual prevalecente na União Europeia. Se no modelo federal caminharmos para a ideia de uma eleição direta, de uma liderança europeia, em que passasse a haver o povo europeu, ou se dissermos que a eleição para o Parlamento Europeu passa a ter círculos desenhados sem as filtragens nacionais que garantem equilíbrios mínimos em termos de proporcionalidade ou que corrigem a relação direta demográfica, número de eleitores, número de eleitos. Depende de todos estes esquemas.
Até a ideia dos partidos transnacionais.
Até a ideia dos partidos transnacionais. E aí podemos ver diferenças significativas entre os próprios partidos de esquerda. O que é interessante é que há cinco ou seis, nove ou dez anos, esta discussão, porventura, teria surgido no início ou a meio da nossa conversa e não no fim, era uma discussão muito mais presente.
O contexto grego marcou muito esse debate, na altura todos seguíamos a vida política grega com a mesma atenção com que seguimos a vida política portuguesa. E esse horizonte modificou-se, quase que se poderia dizer que a própria União Europeia, na forma como lidou com o caso grego, acabou, não necessariamente definitivamente, com a possibilidade de uma experiência europeia da vida política.
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