A última vez que uma figura de Estado portuguesa tinha estado na África do Sul foi há dez anos, nas cerimónias fúnebres de Nelson Mandela, em dezembro de 2013, quando Portugal se fez representar por Aníbal Cavaco Silva. Depois, uma década de silêncio fez-se sentir mais do que os 13.269,58 quilómetros que separam Lisboa e Joanesburgo em linha reta. Será que, como afirmou Marcelo Rebelo de Sousa esta semana, a reconciliação entre os dois países "está feita"? A resposta depende do que vier a seguir.
A alegria de saber que iam estar com os seus, que seriam visitados pelo presidente da República e pelo primeiro-ministro de Portugal, foi grande para a comunidade portuguesa na África do Sul e contagiou até aqueles que já lá estiveram e regressaram às origens ou os que têm lá família. "Eu também senti isso, mas, além do 10 de Junho há o quê? Os portugueses que lá estão ficaram contentes, têm a visita do presidente, que não acontecia há anos, esqueceram-se do quão desprezados foram ao longo deste tempo e mobilizaram todo o seu carinho. Mas e depois, o que muda?"
Enquanto a visita oficial durou renovou-se a esperança. Agora, se "serão mais dez ou vinte anos de "abandono", só o tempo dirá". Quem fala assim é Paulo Antunes, um português que recorda como foi difícil conseguir uma autorização de residência quando chegou Rustemburgo, em 1981, mesmo recorrendo ao consulado português em Pretória. Ficou a saber da pior maneira que "as relações diplomáticas entre os dois países não eram a melhores".
A história tem a sua graça. O primeiro-ministro "Pieter Willem Botha, do Partido Nacional, que viria a ser presidente da República da África do Sul [1984-1989], visitou a cidade. Como estava a ter dificuldades na minha legalização, fui falar com ele. E ele disse: "Percebo, mas os teus governantes de Portugal não são muito pró-África do Sul". Depois, olhou para mim, um miúdo a dirigir-se a ele de peito aberto e a pedir ajuda, e ficou contente. "Mas eu vou ajudar-te". E ajudou. Ajudou-me bastante, porque oito dias depois eu tinha aquilo que passado quase um ano não tinha conseguido. Inclusivamente, fiquei com dupla nacionalidade, que ainda hoje tenho", conta Paulo Antunes.
"A verdade é que os portugueses fora de Portugal sentem-se esquecidos, sem dúvida, e é pena... É mesmo pena", diz Tim Vieira, o empresário que nasceu e cresceu em Joanesburgo e que se tornou conhecido em Portugal depois de ter participado no programa Shark Tank. "Nem conseguimos ter canais de televisão a passar por lá, jogos, tantas coisas em que somos totalmente esquecidos".
E isso vê-se em coisas aparentemente tão insignificantes como no facto de a TAP não ter um voo directo de Portugal para a África do Sul. Marcelo Rebelo de Sousa percebeu a duras penas e reconheceu agora a sua importância: "Como eu compreendo. Fui dar a volta ao Dubai para chegar aqui - não se pode dizer que seja uma linha recta", disse o presidente da República no dia em que chegou a Pretória. "Coisas assim mostram que, obviamente, não somos tão importantes para Portugal", conclui Tim Vieira.
"Aos 19 anos tinha um trabalho, uma casa, um carro e um barco para me divertir"
Paulo Antunes "tinha feito uma formação em Cobol [Common Business-Oriented Language], na MCR. Não havia muitas oportunidades de emprego em Portugal, além de quase não existir equipamento informático, os computadores eram muito grandes e muito caros. Então, decidi ir para a África do Sul e, passado uma semana, estava a trabalhar como programador e analista".
"Aos 19 anos tinha um trabalho, uma casa, um carro e um barco para me divertir. Vivia muito bem e fiz tudo isso num ano. Era um país de oportunidades", confessa. "Foram tempos muito bons, que passaram muito depressa. A idade era outra e o espírito de aventura também".
Hoje, "todas as pessoas que conheço e estão lá já tiveram episódios de ameaça com arma de fogo. E eles matam mesmo". Por causa da insegurança e da violência, "já há muita gente a abandonar o país. Conforme vão envelhecendo, alguns dos meus familiares também vão pensando em regressar, por causa da família, dos filhos, dos netos, não querem que nada de mal lhes aconteça".
Para se protegerem, "os filhos não fazem o mesmo trajeto todos os dias, quebram rotinas pela necessidade de não passar sempre nos mesmos sítios. Na altura, as casas tinham jardins à frente, que davam directamente para a rua. Hoje, as casas estão todas muradas e com grades", lamenta. "A possibilidade de gerar valor continua a ser imensa, mas a falta de segurança é um grande problema".
Paulo Antunes ainda se recorda do "choque" que foi deparar-se com uma realidade completamente diferente quando chegou à África do Sul. "Em Portugal ainda não tínhamos hipermercados e a cidade para onde fui, que era uma cidade pequena, Rustemburgo, já tinha na altura quatro hipermercados, centros comerciais e outlets. Era um país muito desenvolvido. Olhávamos para a África do Sul e pensávamos que era África, quando na realidade o país estava muito ocidentalizado".
Rustemburgo "vivia de uma mina de platina, que gerava emprego e riqueza e que produzia mais platina do que qualquer outro lugar do mundo. Ficava no interior e à volta tinha umas minas de carvão. Estava muito próximo de Sun City, a cidade dos casinos, que era a última cidade branca antes de entrar no Botswana".
O drama da violência ou um apartheid ao contrário
Veio embora em 1985, "quando começaram a sentir-se as primeiras escaramuças de negros contra brancos", estava a mulher grávida da primeira filha. "Tinha o referencial da nossas ex-colónias e a certa altura pensámos que, de facto, o país não era para brancos". Até hoje Paulo Antunes mantém a dúvida sobre se regressar foi a decisão certa."Os familiares que lá ficaram continuam a viver bem. Com bem-estar económico? Sim. Seguros? Não".
Quando Paulo Antunes deixou a África do Sul ainda havia apartheid. "A polícia era essencialmente branca, hoje é essencialmente negra. Os cargos políticos e de funcionários públicos de destaque, que eram ocupados maioritariamente por brancos, hoje são ocupados por negros". É um facto, diz, "não se trata de racismo da minha parte. Mas acredito que existe uma componente de rancor face aos brancos, um sentimento de ódio e de raiva contra a exploração de que acha que foram alvo; "este era o nosso país e estes vinham para aqui enriquecer". É o paradigma das revoluções".
E Madiba, o primeiro presidente negro da África do Sul (1994 a 1999), líder da luta contra o apartheid já partiu. "Mandela controlava isso muito bem, era um indivíduo pacificador, não queria violência. O país continuou muito equilibrado enquanto ele foi vivo", também porque "tinha consciência de quem levava o país para a frente. Eram evoluídos, mesmo do ponto de vista da defesa, do armamento, da tecnologia".
A presidente da Câmara do Comércio e Indústria Lusa-Sul Africana, Manuela Robinson, corrobora esta afirmação. "Diria que foi Nelson Mandela", responsável pelo fim do apartheid, "que trouxe alguma segurança, alguma esperança para a África do Sul. Tenho pena, e isto é a minha opinião pessoal, que não tenha estado muitos anos no poder, porque a África do Sul estaria melhor do que está neste momento. Muita gente não conhece o actual presidente [Cyril Ramaphosa] e as pessoas que o conhecem muitas conhecem-no pelas piores razões: corrupção ou por já ter casos contra ele em tribunal. Esta é a sua notoriedade".
Se antes havia um "desequilíbrio muito grande entre brancos e negros, hoje essa diferença existe de outra maneira", afirma Paulo Antunes. Não há apartheid, mas não há misturas.
A população branca é resiliente, mas a estatística mostra que está envelhecida e não é renovada. Os números oficiosos e os números oficiais divergem. Os primeiros indicam que há 500 mil sul-africanos de descendência portuguesa e cerca de 200 mil portugueses a residir permanentemente na África do Sul. Os segundos apontam para uma realidade bem diferente, de tal maneira que o Observatório da Emigração menciona numa nota que "alguns países, que num passado mais ou menos remoto foram qualificados como destinos importantes da emigração portuguesa, como é o caso da África do Sul, perderam, entretanto, relevância por inexistência prolongada de novas entradas e consequente não renovação da sua população emigrada de origem portuguesa".
Estima-se que terão emigrado cerca de 60 mil portugueses em 2021, mais 15 mil do que em 2020, menos 20 mil do que em 2019. Nesse ano, havia pouco mais de 2,6 milhões de portugueses a viver no estrangeiro, 25% da população em Portugal. Dados das Nações Unidas confirmam a tendência para a concentração da emigração portuguesa na Europa e assinalam um número eventualmente sobrestimado de emigrantes fixados em África.
Dos 23 principais países de destino da emigração portuguesa, 14 são europeus. Entre os dez com maior fluxo apenas um se localiza noutro continente: Angola. De acordo com os últimos dados disponíveis, em 2020 havia na África do Sul 11.861 residentes nascidos em Portugal, segundo os registos consulares, que em 2010 apontavam para 79.860 inscritos de nacionalidade portuguesa.
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