A história passa-se nos anos de 1990, em parte durante o mandato presidencial de Collor de Mello, e centra-se em Estela, uma menina negra e pobre de 13 anos, abandonada pelo pai, que sonha ser filósofa, como um caminho para a liberdade: liberdade para pensar, para questionar e para procurar o seu lugar.
Estela — cuja vida decorre num quotidiano de violência, privação e desamparo – vê-se obrigada a parar de estudar para ajudar a mãe a fazer limpezas noutras casas, devido a uma doença de pele que a mãe desenvolve, o que a leva a passar por várias dificuldades, observando tudo e levantando sempre muitas questões.
Neste caminho em direção à sua maturidade, a rapariga depara-se com barreiras emocionais, desde uma relação ambígua com a mãe, a busca por um pouco de afeto do pai, a imposta maturidade para cuidar do irmão mais novo quando se mudam sozinhos do Sul para o Rio de Janeiro, a descoberta da sexualidade e os limites entre a religião e a liberdade.
À semelhança de “O Avesso da Pele”, romance de cariz autobiográfico, vencedor do Prémio Jabuti, publicado em Portugal em 2021 (ambos os romances foram publicados pela Companhia das Letras), que o autor descreveu como uma “história sobre pais e filhos, atravessados pelo racismo e pela recuperação de uma humanidade perdida”, também “Estela sem Deus” trata os mesmos temas da pobreza, do racismo, do abandono, da violência e da família.
“A diferença é que é a ótica de uma menina negra que se quer tornar filósofa, mas são corpos atravessados pelo racismo, e tem também a relação entre pais e filhos, neste caso entre ela e a mãe”, disse Jeferson Tenório, em entrevista à agência Lusa.
A ausência paterna está presente, mas aqui é “uma paternidade que não é traumática, não é violenta, mas é uma ausência, então é como a personagem consegue lidar com a ausência e ao mesmo tempo ter autonomia da própria vida”.
No entanto, “Estela sem Deus” é uma obra menos biográfica, porque o narrador é uma menina, o que constituiu uma tarefa “difícil” para o escritor, que teve de fazer pesquisas e entrevistas para “conseguir criar uma personagem realista, real”.
“Por outro lado, as experiências de pessoas negras são muito parecidas, então de certo modo é uma biografia das pessoas negras no Brasil, mais do que uma autobiografia, é uma biografia dos brasileiros”, destacou o autor.
Jeferson Tenório queria que a personagem principal fosse feminina, porque essa é também uma realidade que queria retratar, a das mulheres negras e pobres, num país de enormes assimetrias, onde continuam a ter de lutar muito mais por um lugar na sociedade.
Pôr-se no lugar desta rapariga “foi a única forma de escrever uma personagem de maneira mais profunda”, explicou.
“A primeira versão foi escrita na terceira pessoa e parecia-me mais uma observação superficial da vida dessa personagem, então, a única forma de fazer um mergulho mais profundo era tentar me colocar no lugar dessa menina e, a partir desse momento, criar uma personagem mais consistente, uma personagem em que eu tive acesso à sua subjetividade. Foi também um desafio para mim de alteridade enquanto escritor homem”.
O momento que marca o primeiro confronto de Estela com a filosofia é dado logo no início do romance quando, perante um passarinho morto, a rapariga pergunta à avó o que acontece durante a morte, ao que esta lhe responde: “Não há ‘durante’ quando se morre, Estela. Há somente um estar ou não estar mais na vida”.
“Eu queria mostrar uma mulher negra que pudesse pensar sobre si, que pudesse trazer questionamentos, não só da raça ou do racismo, mas questionamentos existenciais, e por isso, uma personagem que se quer tornar filosofa é, para mim, uma imagem muito poderosa, uma imagem de empoderamento, uma mulher negra que pensa filosoficamente sobre a vida”.
São esses questionamentos que a levam a Deus, a questionar-se sobre a sua existência, sobre o seu papel na vida das pessoas.
O leitor acompanha sempre os pensamentos de Estela e, numa das primeiras cenas de violência sofridas pela sua família, a rapariga relata: “Então eu fechei meus olhos e chamei por Deus. Mas Deus não veio”.
Jeferson Tenório diz que “o livro é uma aproximação com Deus”, porque Estela faz todo um trajeto: “a jornada dela é primeiro compreender que Deus é esse, que é um deus punitivo, que tudo vê, que traz muita culpa para as pessoas e, depois que ela vê isso, renega esse tipo de deus”, que lhe é mostrado pela igreja.
Mas já no final da narrativa aproxima-se dele, “quando entende que Deus está espalhado pelas pessoas próximas dela, principalmente entre as mulheres”.
Esta ideia é bem expressa quase no final do livro, através de uma reflexão que Estela faz a partir de toda a sua vivência e experiências por que passou.
“Tive uma dor no peito que me trouxe outra revelação: a de que Deus era, na verdade, a minha mãe limpando o chão na casa das madames. Deus era a minha mãe tendo de sustentar a casa sozinha porque meu pai nos esquecera. Deus era a minha tia cuidando do tio Jairo com derrame. Deus era a Melissa querendo voar pela janela. Deus era a minha madrinha Jurema suportando o Padilha. Deus éramos nós sendo violentadas. Deus era eu carregando um filho morto no ventre.”
Então, “a busca de Deus na verdade é uma busca de si mesmo, uma busca intima, pessoal, que não traz respostas mas traz muitos questionamentos. Eu acho que a busca da religião nesse sentido é, não a busca de respostas, mas a busca de mais perguntas”, considerou o autor.
Os temas tratados por Jeferson Tenório põem o dedo numa das maiores feridas do Brasil e geram incómodo, ao ponto de ter já sido alvo de censura e de ameaças.
Com “O Avesso da Pele”, sofreu na sua pele ataques e perseguições quando, em março passado, o livro foi recolhido de escolas de três Estados do Brasil, na sequência de um vídeo feito por uma diretora de uma dessas escolas, que o considerava pornográfico, por ter muitas cenas de sexo e portanto não poderia estar numa escola, relatou.
“Obviamente que era uma afirmação falsa, o livro não trata dessas questões. Também por causa do discurso utilizado pela extrema-direita que está muito forte no Brasil – heranças do bolsonarismo -, os livros foram retirados desses Estados”.
O episódio teve uma repercussão muito grande. Entidades, professores, políticos, artistas, como Chico Buarque e Fernanda Torres, protestaram contra a censura e há pouco tempo os livros voltaram para as escolas, depois e uma ação judicial da editora.
O saldo acabou por ser positivo — conta – porque “o livro triplicou as vendas, houve uma procura muito grande, a censura acabou por colocar o livro em evidência”.
O escritor mostra-se, contudo, muito apreensivo com este tipo de comportamento cada vez mais recorrente, e exemplifica com um caso sucedido ainda esta semana com o livro “O Menino Marrom”, do escritor Ziraldo, que foi censurado.
“É uma pratica que tem sido muito recorrente e está ficando muito comum no Brasil, que os livros sejam censurados. Vejo com bastante preocupação o que está acontecendo”.
Jeferson Tenório alerta para duas situações concomitantes que aparentam estar a crescer sem freio: por um lado, “a ultra-direita que censura o livro porque não quer discutir o que o livro mostra”, mas, por outro lado, “a censura do politicamente correto, que também procura limpar ou higienizar a literatura”.
“A literatura, como a arte em geral, sempre vai incomodar de algum modo, então vejo que tanto a censura quanto o cancelamento têm acontecido de maneira recorrente e é muito preocupante, porque pode provocar autocensura no próprio artista ou no próprio escritor que, por ter medo de entrar em determinados assuntos, acaba não discutindo com profundidade aquilo que incomoda a sociedade.”
Artigo de Ana Leiria, da agência Lusa.
Comentários