No início da apresentação, Pedro Strecht começou por agradecer à Conferência Episcopal Portuguesa, que colaborou sempre com o trabalho e se faz hoje representar pelo seu Conselho Permanente. O relatório completo vai estar disponível online às 15h00.
A Comissão, coordenada pelo pedopsiquiatra, aproveitou para agradecer "todos os que ousaram dar voz ao silêncio", evidenciando que "não são uma mera estatística". "Se não fosse por eles não tínhamos feito este trabalho", garantiu.
De um relatório com cerca de 500 páginas, estas são as principais conclusões:
- Há 512 testemunhos validados relativos a, "no mínimo", 4.815 vítimas;
- De acordo com Pedro Strecht, não é possível quantificar o número total de crimes, uma vez que há crianças que foram abusadas mais do que uma vez — importa referir que, na realidade, foi apenas a partir de 1995 que estes crimes passaram a ser inscritos no Código Penal português enquanto abuso sexual de crianças, e apenas a partir de 2007 se tornaram públicos;
- 52,7% das vítimas identificam-se como sendo do género masculino e 42,2% do género feminino;
- A maioria das vítimas foi abusada quando tinha entre 10 e 14 anos, sendo que a média é de 11 anos;
- Em 32% dos casos têm grau de literacia ao nível da licenciatura e, à época dos abusos, “eram todos estudantes do primeiro e segundo ciclo”;
- A média de idades atual das vítimas é de 52 anos, sendo mais baixa do que nos outros países;
- Foram recebidos contactos de pessoas residentes em Portugal, mas também de outros países;
- A maior parte das vítimas ainda hoje se identifica como católica — 53%. No entanto, apenas 25,8% são hoje praticantes, já que a maior percentagem das vítimas afastou-se da Igreja enquanto instituição e da prática religiosa depois do abuso;
- Há casos em todos os distritos, mas os cinco mais relevantes são Lisboa, Porto, Braga, Santarém e Leiria — a incidência nestes distritos explica-se, em parte, pela existência de seminários ou outras instituições religiosas;
- O pico dos abusos deu-se entre 1960 e 1990 — 60% ocorreu nas décadas de 60, 70 e 80 — , o que prova, segundo a socióloga Ana Nunes Almeida, que "o 25 de Abril não teve impacto nenhum". No entanto, mais de um quarto dos casos foi registado desde 1991 até hoje;
- 97% dos abusadores são do sexo masculino e 77% eram padres — 47% tinham relações próximas da criança;
- Quanto aos abusados que deram os seus testemunhos, 58,6% residiam com os pais na altura dos abusos, 17% estavam institucionalizados, enquanto 7,8% pertenciam a famílias monoparentais;
- Os cinco principais locais de ocorrência dos abusos foram seminários, igrejas internas, confessionários, casas paroquiais e escolas católicas;
- Predominam as formas de abuso mais invasivas sobre as que não envolvem contacto físico com as vítimas — no caso do sexo masculino, manipulação de órgãos sexuais, sexo anal e masturbação. No caso do sexo feminino, a predominância é de insinuações;
- Predominam os casos de abusos continuados sobre atos únicos e isolados — em 57,2% dos casos, os abusos ocorreram mais do que uma vez; em 27,5% dos casos, os abusos duraram mais do que um ano. O abusador está presente em proximidade com a vítima, antes, depois e durante o ato em si;
- Existe um enorme impacto psicológico das vítimas que só se revela na vida adulta. 52% só revelou o abuso, em média, 10 anos depois de este ocorrer. Em 43% das queixas, as vítimas só revelaram os casos de abuso quando contactaram a Comissão;
- Há uma clivagem de género: os homens contam o que se passou ao seu cônjuge ou amigos, as mulheres à família, sobretudo à mãe;
- 77% das vítimas nunca apresentaram queixas à igreja e apenas em 4% dos casos houve queixas judiciais;
- Foram enviadas 25 queixas para o Ministério Público, mas a maioria já prescreveu;
- A necessidade do suporte terapêutico mantém-se hoje em dia para a maioria das vítimas;
- A maior percentagem das pessoas acha que não há reparação possível, mas ao mesmo tempo aguardam um pedido de desculpa por parte da Igreja e dos abusadores;
- Muitas das vítimas sugerem nas queixas formas de prevenção para os abusos sexuais.
Pedro Strecht destacou ainda que, na generalidade, a hierarquia católica portuguesa “é favorável” à posição do Papa na condenação dos abusos.
“Com algumas divergências, e nalguns casos, a opinião dos bispos e dos superiores gerais, que foram entrevistados individualmente, é manifestamente favorável ao transmitido pelo Papa” Francisco, que considerou, em 2019, na Carta Apostólica “Vos estis lux mundi”, que “os crimes de abuso sexual a crianças são crimes que ofendem a Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e afastam-nas da comunidade”, afirmou.
“Sabemos, também, que a percentagem da sua existência enquanto praticada por membros da Igreja é muito pequena, sobre a realidade do assunto dos abusos sexuais de menores em geral”, acrescentou Pedro Strecht, acrescentando que é também “baixo o número de abusadores dentro do seio da Igreja e, por isso mesmo, continua a ser importante não confundir a parte com o todo”.
Pedro Strecht disse que a partir de hoje importa continuar a dar atenção a este tema. Por isso, a Comissão, que agora cessa funções, deixa em aberto várias notas e recomendações para o futuro e pede que todas as pessoas possam prosseguir este trabalho. "Falem, falem. Vamos juntos, pela verdade", foi o apelo.
Às vítimas, a Comissão deixou uma mensagem de esperança e fé no futuro, fazendo uma homenagem através de um vídeo, de quase cinco minutos, com uma interpretação de uma peça de Schubert ao piano por parte de Maria João Pires.
O impacto nas vítimas e o perfil dos abusadores
Por sua vez, o psiquiatra Daniel Sampaio explicou as consequências psicológicas dos abusos para as vítimas.
Antes de avançar para os casos da Igreja Católica em particular, o especialista abordou uma análise global dos casos de abuso, informando que 18% das meninas e 8% dos rapazes são vítimas de abuso sexual antes dos 18 anos.
Os dados constam de uma análise da prevalência dos abusos sexuais na sociedade em geral e a nível global realizado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica com base em 331 estudos independentes publicados em 217 publicações e revelam "a necessidade de se realizar um estudo a nível nacional", disse o psiquiatra.
O especialista alertou para o que considera serem "números muito inquietantes" e que têm de estar presentes a todos aqueles que trabalhem com as vítimas.
O que há a ter em conta:
- Do ponto de vista da saúde mental das vítimas, esta vai ser profundamente afetada ao longo da sua vida;
- Muitas vítimas tiveram sintomas psicopatológicos não detetados pelos próprios psicólogos e psiquiatras a quem recorreram. Entre os sintomas estão depressão, ansiedade, perturbações do sono e de alimentação;
- Sempre que a vítima é confrontada com situações que a fazem reviver o trauma, surge um conjunto de sintomas compatível com perturbação de stress pós-traumático;
- Os episódios levaram algumas vítimas ao abuso de álcool, drogas e foram até registados casos de esquizofrenia;
- As pessoas abusadoras caracterizam-se por estarem muito bem inseridas na sua comunidade, são conhecidas pela maneira como trabalham e a dedicação que têm ao trabalho;
- Uma questão a ter em conta é que tipo de perturbações do desenvolvimento emocional do abusador o levam a ficar em alerta sexual perante uma criança — há ligações a abusos prévios ou ao consumo de pornografia;
- Os abusadores não têm capacidade de controlar os seus impulsos e estes manifestam-se;
- Há, contudo, "fatores que ultrapassam os inibidores externos", como os momentos em que é mais fácil o abuso, quando a criança está sozinha à noite num seminário, ou numa tenda ou quando não tem pessoas da família que a possam proteger;
- Na maioria dos casos casos, há uma diminuição da capacidade de resistência da criança. Esta encontra-se vulnerável e dependente do abusador: ou porque é um familiar, um vizinho ou um conhecido em quem confia. Na instituição religiosa, é porque o padre "é uma figura, a voz de Deus".
Para Daniel Sampaio, é preciso "fazer uma denúncia destas situações para que a justiça possa atuar". "É fundamental. É importante que a justiça responda, porque a ideia de poder haver uma pena é um controlo externo para o comportamento abusivo, e que muitas vezes vai ser repetido", alerta.
Devido à "complexidade da personalidade dos abusadores", não há ainda "uma resposta totalmente eficaz" face às suas tendências.
O psiquiatra, todavia, alerta que, no que toca aos abusadores, "não basta acompanhamento espiritual". "Estas pessoas têm de ser tratadas do ponto de vista psiquiátrico e psicológico".
As respostas legais
O antigo ministro da Justiça e juiz conselheiro jubilado Álvaro Laborinho Lúcio seguiu-se na apresentação, indicando que, a partir do momento em que estes crimes adquirem natureza pública, há o dever moral de apresentar essa denúncia.
Dos 25 casos enviados ao Ministério Público, "a maioria já prescreveu”, salientou, justificando, porém, que a Comissão Independente não podia “ficar com estes de dados na mão e não enviar ao Ministério Público”.
De acordo com Laborinho Lúcio, a Comissão Independente não tem de fazer juízos e não tem competência no domínio.
“Nós enviámos para o Ministério Público este tipo de casos. A [nossa] investigação parece relativamente simples, na linha tradicional de uma investigação criminal”, realçou.
Segundo Laborinho Lúcio, há três tipos de casos que chegam à Comissão e que têm de ser enviados ao Ministério Público: aqueles em que a investigação parece razoavelmente simples, outros em que a investigação criminal vai revelar-se muito complexa e outros em que a investigação é impossível.
Quanto aos alegados abusadores que estão ainda no ativo, a lista será enviada à CEP até ao final do mês, para que a Igreja atue, e também ao MP, que decidirá se vai haver ou não investigação criminal consoante os casos.
O antigo ministro da Justiça deixou ainda uma sugestão, centrada na idade das vítimas. “Quem é vítima do crime sexual, sendo menor de idade, pode apresentar queixa até fazer 23 anos”, adiantou. No entanto, "tendo em conta a idade das pessoas, das vítimas como se apresentaram perante a nós, aquilo que nos ensinaram sobre a dificuldade de verbalizar, percebemos que a idade deve ser aumentada, como aconteceu noutros países, para os 30 anos".
Lembrando que em Espanha esse limite foi tabelado nos 35 anos, Laborinho Lúcio apontou para, pelo menos, ficar situado nos 30 anos. No entanto, recordou que a decisão tem de ser tomada pela Assembleia da República, sendo esta apenas uma recomendação.
Como foram feitas as denúncias?
A assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares explicou a metodologia de como foi conduzida a investigação.
O guião utilizado tinha perguntas fechadas e abertas, sendo que foi pedido contexto atual e memórias de infância, bem como informações sobre o abuso e tudo o que aconteceu nessa época.
Foram feitas 34 entrevistas presenciais (21 homens e 13 mulheres) e há ainda registo de 17 testemunhos. No total, foram recebidas 365 chamadas — destas 102 deram origem a preenchimento de inquéritos.
Foram também feitas entrevistas a 19 bispos, todas com média de uma hora — o que implica que dois dos visados se recusaram a falar.
Os arquivos secretos das dioceses foram analisados, sendo que uma carta enviada pelo secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Pietro Parolin, agilizou a sua abertura.
Para a apresentação desta segunda-feira foram selecionados 44 casos que permitem ilustrar os vários espaços em que decorrem os abusos. Os sete relatos escolhidos para a apresentação têm uma "linguagem intensa" e detalhes extremamente gráficos de natureza sexual, tendo sido lidos de forma detalhada na conferência de imprensa.
“Condicionou a minha sexualidade. Influenciou o início da minha vida sexual”, disse uma das testemunhas entrevistadas pelo grupo de trabalho. Outra vítima citada referiu que nunca conseguiu “ter um namorado, uma relação afetiva até aos 40 anos”.
“Um enorme problema que desorientou a minha sexualidade, pois mais tarde nesse verão repeti tudo com o meu primo mais velho emigrante em França, pois eu pedi-lhe para lhe agradar e ele gostou”, contou outra.
Outros testemunhos revelam que a relação de algumas vítimas com a Igreja Católica ficou destruída.
“Afastei-me da Igreja e de religiões organizadas. Nos anos seguintes não conseguia entrar numa igreja, sentir o cheiro a incenso, a flores e ao perfume que usava. Durante uma década entrava facilmente em discussões com católicos, culpando-os do que me tinha acontecido”, disse um dos visados.
“Odeio. É a única coisa que odeio na vida. A Igreja, o credo, as crenças e pessoas ligadas a ela. Desde que sou autónoma, nunca fui a uma igreja e não acredito em Deus”, acrescentou outra.
A cineasta Catarina Vasconcelos, também membro da Comissão, relatou depois os depoimentos das vítimas quanto às causas que as levaram a contactar o grupo de trabalho. "Não foi fácil registar, escutar e ler cada um destes textos", frisou.
As vítimas contaram também o que os abusadores lhes diziam depois dos abusos.
“Estiveste bem, Deus está orgulhoso de ti. Gostaste, ele perguntava. Eu não sabia o que responder. Se me sentia melhor. Que Deus me amava mais do que qualquer uma ali no colégio. Dizia que eu era especial”. “Se contares mato-te. (…) Não digas a ninguém senão vais direitinha ao inferno”, recordou outra ainda.
Após os abusos, alguns abusadores desculpavam-se, mas responsabilizavam a vítima: “Pedia desculpa e dizia que eu não o devia seduzir. Que se sentia com remorsos porque era padre e precisava de se afastar, até que voltava outra vez, pedia desculpa e voltava com carícias, a dizer que gostava muito de mim e começava tudo outra vez...”.
As vítimas revelaram ainda ameaças e subornos para que os abusos ficassem em segredo.
“Dizia que se contasse alguma coisa a alguém, nunca mais via os meus pais. Ameaçava denunciar-me aos meus pais e pároco. [Dava-me] dinheiro e ameaçava a minha mãe”, acrescentaram.
Apenas uma parte residual dos abusadores apresentou um pedido de desculpas após o abuso. Contudo, muitas vezes os abusos eram retomados. Houve registo de 7 casos de suicídio devido a abusos sexuais (com base em relatos da imprensa).
Igreja "não fala a uma só voz"
Noutro momento da apresentação, Ana Nunes de Almeida indicou que, no contacto com a hierarquia da Igreja Católica, foram reveladas conclusões das entrevistas aos bispos e a figuras superiores das instituições religiosas. Estas mostram "um contraste entre a gravidade e o fluxo dos testemunhos das vítimas e o alheamento e relativo distanciamento por parte do topo da hierarquia".
O “crescendo das notícias sobre os abusos e os trabalhos da Comissão Independente” foi importante para uma outra perceção da realidade por parte da hierarquia, tendo sido também verificada uma “notável diversidade interna”, tendo em conta que “a Igreja não falava e não fala a uma só voz”, sublinhou a socióloga.
Com pequenas exceções, todas figuras entrevistadas (sobretudo bispos portugueses) experimentaram notáveis percursos de ascensão face à sua família de origem, ilustrativos de trajetórias improváveis. A importância da escola da idade para o seminário, mérito social, capacidade de sobrevivência está na origem nestes percursos de afastamento social do seu meio de origem.
Quanto ao reconhecimento do problema dos abusos sexuais, notaram que se assistiu a um movimento de "fora para dentro", ou seja, o problema começa a fazer parte das suas vidas com contactos que têm com o que se passa lá fora, e de "cima para baixo" — realçando “o papel impulsionador de vários papas, em particular do Papa Francisco”, no que toca a dar a conhecer a existência dos abusos sexuais.
Algumas destas pessoas, poucas, já referiram no seu discurso a introdução da vítima como preocupação maior e revelam o conhecimento as práticas de ocultação e da solução da mudança de paróquia, de sacerdotes ou consagrados com estes problemas.
No entanto, nos depoimentos variou muito o grau de desconhecimento quanto ao contacto direto com casos, que é sempre muito raro. No entanto, notou-se uma diferença grande entre bispos e superioras e superiores gerais de instituições. Estes últimos tiveram mais experiência de contacto com crianças que sofreram de abuso, não só de Igreja mas interfamiliar, estando despertos para estes problemas.
"É claro que houve abusos sexuais e ocultação"
Na fase das perguntas dos jornalistas, Laborinho Lúcio respondeu quanto às suspeitas de casos conhecidos por parte dos bispos e/ou de ocultação.
O ex-ministro da Justiça refere que, no período que vai de 1950 até aos nossos dias, houve claramente casos de abuso sexual, bem como ocultação por parte da Igreja. "É claro que houve abusos sexuais e ocultação", mas agora iniciou-se um "caminho de desocultação" também por parte da Igreja, que convocou esta Comissão para analisar o panorama em Portugal.
"O que me interessa não é saber quem foi o elemento da Igreja que protagonizou a ocultação", frisou, mas saber o que aconteceu. "A partir de momento em que isolo alguns bispos como sendo paradigmáticos da ocultação, posso estar a retirar peso à ocultação global da Igreja. O que me importa é saber se a Igreja ocultou ou não. Preferimos que as pessoas não vão a correr atrás de uma meia dúzia de ocultações, e se dirijam antes à Igreja que fez essa ocultação", continuou.
"Quando falamos desta ocultação estamos a falar de um tempo em que esta era generalizada", continua, dizendo que Portugal entrou num campo em que no futuro é necessário "deixar muito claro que houve uma cultura de ocultação", que ainda pode ser desejo de alguns membros da Igreja, mas "também há abertura para a desocultação".
"Não podemos esperar grandes resultados do ponto de vista da punição criminal", voltou a frisar, recordando uma vez mais que a maioria dos prazos estão prescritos.
Quanto aos que foram enviados ao MP, algumas acusações devem ser formuladas. "A partir do momento em que enviamos ao MP, nós, Comissão, afastamo-nos completamente disso", sublinhou.
Antes, Pedro Strecht lembrou a não existência de registos nos arquivos da Igreja de casos conhecidos, ou porque nem chegaram à hierarquia, ou porque poderão ter sido destruídos pelo caminho.
O pedopsiquiatra adiantou também que, das vítimas que contactaram a Comissão, "nenhuma pediu diretamente indemnização, mas muitas revelaram necessidade de continuidade ou início de apoio psicológico e psiquiátrico".
Já Ana Nunes de Almeida disse que, dos bispos e sacerdotes portugueses inquiridos durante o trabalho de campo, "houve muito poucos que na missa ou nas suas atividades pastorais alertassem para este problema e fizessem um apelo ao tema".
Quanto ao papel da Jornada Mundial da Juventude para aludir a este problema, a socióloga recomenda que esse discurso seja integrado, já que é um tema "absolutamente central na Igreja".
O que é que a Comissão sugere?
No "sumário executivo do relatório" da Comissão Independente — uma versão abreviada de 21 páginas face às 500 do documento completo —, o corpo de especialistas deixa várias recomendações tanto à Igreja Católica como à Sociedade Civil.
Igreja:
- Proposta de uma nova Comissão para continuidade do estudo e acompanhamento do tema (multidisciplinar, membros internos e externos à Igreja);
- Reconhecimento, pela Igreja, da existência e extensão do problema e compromisso na sua adequada prevenção futura.
- Cumprimento do conceito de «tolerância zero» proposto pelo Papa Francisco;
- Dever moral de denúncia, por parte da Igreja, e colaboração com o Ministério Público em casos de alegados crimes de abuso sexual;
- Pedido efetivo de perdão sobre as situações que aconteceram no passado e sua materialização;
- Formação e supervisão continuada e externa de membros da Igreja, nomeadamente na área da sexualidade (sua e das crianças e adolescentes);
- Cessação de espaços físicos fechados, individuais, enquanto locais de encontro e prática religiosa;
- Medidas preventivas eficazes, incluindo «manuais de boas práticas» e «locais de apoio ao testemunho e acompanhamento das vítimas e familiares»;
- Apoio psicológico continuado às vítimas do passado, atuais e futuras (responsabilidade da Igreja e articulação com o Serviço Nacional de Saúde).
Sociedade Civil:
- Necessidade da realização de um estudo nacional sobre abusos sexuais de crianças nos seus vários espaços de socialização;
- Reconhecimento inequívoco dos Direitos da Criança;
- Empoderamento das crianças e famílias sobre o tema: o papel da Escola;
- Aumento da idade da vítima para efeitos de prescrição de crimes;
- Celeridade da avaliação e resposta do sistema de justiça;
- Reforço do papel da comunicação social na investigação e tratamento do tema;
- Aumento da literacia emocional sobre as verdadeiras necessidades do desenvolvimento infantojuvenil, sobretudo no campo afetivo e sexual.
O contexto
O relatório da Comissão Independente começou a ganhar corpo a partir de 11 de janeiro do ano passado, quando começou a receber testemunhos, e em menos de uma semana foram validadas 102 denúncias.
Sem querer adiantar números finais até à apresentação do relatório final, a Comissão Independente divulgou no seu último balanço público, em outubro, que já tinha registado 424 testemunhos validados, compreendendo casos de abusos ocorridos desde 1950 e vítimas entre os 15 e os 88 anos.
Os membros da comissão esclareceram logo à partida que não estava em causa uma investigação criminal, mas adiantaram que as denúncias de crimes que não tivessem prescrito seriam encaminhadas para a Justiça, o que veio a confirmar-se até junho com o envio de 17 denúncias para o Ministério Público (MP), mas em outubro foi assumido pela Procuradoria-Geral da República que dos 10 inquéritos instaurados, mais de metade (seis) já tinha sido arquivada.
O relatório já é do conhecimento da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que recebeu no domingo o documento da parte da Comissão Independente, coordenada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht.
Hoje será também conhecida a primeira reação da CEP, presidida pelo bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas, e para 3 de março foi já convocada uma assembleia plenária extraordinária Conferência Episcopal para analisar o relatório.
Em paralelo, foi divulgado no início deste mês que as Comissões Diocesanas de Proteção de Menores tinham recebido até essa altura 26 participações de abusos sexuais em todo o país.
Os casos de abusos sexuais revelados ao longo de 2022 abalaram a Igreja e a própria sociedade portuguesa, à imagem do que tinha ocorrido com iniciativas similares em outros países, com alegados casos de encobrimento pela hierarquia religiosa a motivarem inúmeros pedidos de desculpa, num ano em que a Igreja se vê agora envolvida também em controvérsia, com a organização da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa.
Liderada por Pedro Strecht, a comissão independente é ainda constituída pelo psiquiatra Daniel Sampaio, pelo antigo ministro da Justiça e juiz conselheiro jubilado Álvaro Laborinho Lúcio, pela socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida, pela assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares e pela cineasta Catarina Vasconcelos.
*com reportagem adicional de Raquel Almeida
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