“Eu tenho uma ordem de despejo, estou sempre com o coração nas mãos. Porque tenho o meu marido com uma doença oncológica e o meu pai também doente e eu tenho de cuidar deles, estou desempregada. Para onde vou se me puserem na rua? Na minha casa entram, de momento, 1100 euros e por causa disso a assistente social disse-me que não me podem ajudar, que tenho de ser eu a procurar casa, porque o rendimento que entra na minha casa é suficiente para alugar uma e sobreviver. A casa que encontrei mais barata foi 1200 euros e outra a 900 euros. Nessa casa tinha de pagar três meses de renda e um de caução”.
Este é o testemunho de Maria Alcina Lourenço, 48 anos, residente em Lisboa.
Tal como Alcina, a pressão sobre os inquilinos nos grandes centros urbanos tem vindo a aumentar. As rendas não param de subir, os processos de despejo não param de crescer. “Não é um problema novo”, sublinha Helena Souto, uma das porta-vozes do Movimento Casa para Viver. Entre vários problemas, a chamada ‘lei Cristas’, de 2012, também contribuiu para o estado em que se encontra atualmente o mercado de arrendamento, recorda Helena ao SAPO24. Mas já lá vamos.
Num outro testemunho, podemos ver, ler e ouvir o desespero de mais uma lisboeta.
“Há três anos que sou perseguida pela senhoria a dizer que tinha oito dias para sair de casa. Entretanto, houve os cancelamentos de despejos no tempo da pandemia, mas agora recebi uma ação de despejo. Eu moro há 32 anos naquela rua. Tenho pavor para onde vou morar. Como é que eu consigo pagar uma renda de 600 e tal se eu levo 600 e tal euros para casa?”, pode ouvir-se no testemunho publicado na conta do Instagram do movimento que no sábado vai manifestar-se nas ruas de seis cidades.
Sob o mote “quem pode morar nas cidades portuguesas”, o movimento Casa para Viver junta mais de 100 associações e instituições de todo o país. Todos juntos para causas maiores como o Direito à Habitação digna - consagrado na Constituição -, o direito aos cidadãos de viverem na cidade e o fim da exploração e do aumento do custo de vida. Daí resulta a primeira manifestação do “Casa para Viver”, que vai acontecer em Braga, Porto, Aveiro, Viseu, Coimbra e Lisboa, às 15 horas de sábado.
“Eles estão todos ligados”, conta Helena Souto ao SAPO24, “acreditamos que o direito à propriedade tem de ser visto na sua função social. Não nos cabe na cabeça como é que existem tantas casas vazias ou há tantas pessoas a especular com tanta gente sem casa”, declara a porta-voz do movimento para a cidade do Porto.
“Se a habitação tem uma propriedade social essa propriedade deveria estar a servir a necessidade da população no que toca à habitação”, sublinha Helena que faz questão em lembrar que fala em dupla condição. Por um lado, em representação da Associação Habitação Hoje, no Porto, e por outro como porta-voz do movimento para a cidade invicta.
A Habitação Hoje nasceu para lutar pelo “direito à habitação” e pelo “direito à cidade”. Primeiro, “investigar e reunir os dados sobre o problema da habitação em Portugal e, segundo, lutar juntamente com aqueles que enfrentam este problema e construir uma organização de pessoas para resolver estes problemas e daí criar um movimento que vai protestar no sábado”, naquele que será o primeiro passo “para a luta”.
No país inteiro as rendas aumentaram 40%, nos últimos cinco anos, e o preço das casas 19%, só no último ano. “Os salários não”, sublinha Helena, “continuam estagnados e isso significa que havendo no país inteiro apenas 2% de habitação pública, cada vez menos pessoas conseguem aceder à habitação a preço de mercado”.
De acordo com dados de 2022 divulgados esta quinta-feira pelo INE, o valor médio das rendas subiu novamente e está agora em 6,91 euros por metro quadrado, o preço mais elevado desde que esta série estatística foi iniciada, em 2017, e um aumento de 10,6% face a igual período do ano anterior. Em Lisboa, por exemplo, a renda mediana aumentou quase 15% e atingiu os 12,88 euros por metro quadrado, o valor mais elevado de todo o país, ao passo que na Invicta cresceu quase 13% e chegou aos 9,98 euros, o maior aumento anual de rendas já registado no Porto, pelo menos desde 2017.
A casa é a base para que depois possa ter os outros direitos. Uma criança não pode ter o acesso devido a uma escola sem um teto para dormir. A mesma coisa para um estudante que depois do esforço e estudo consegue aceder ao ensino superior, mas tem de desistir porque não consegue pagar uma casa
“A casa é a base para que depois possa ter os outros direitos”, afirma Helena Souto e dá exemplos: "uma criança não pode ter o acesso devido a uma escola sem um teto para dormir. A mesma coisa para um estudante que depois do esforço e estudo consegue aceder ao ensino superior, mas tem de desistir porque não consegue pagar uma casa e também não há muito alojamento estudantil”, declara.
“No Porto, temos visto muita gente em muito más condições, vivem em casas sem saneamento básico, com graves problemas de humidade, sem ventilação, as pessoas ficam expostas diariamente a um risco para a saúde enorme. Vemos muitas crianças e idosos que ficam doentes com problemas respiratórios crónicos e pulmonares. As pessoas vão ao hospital, são medicadas, mas têm de regressar às mesmas casas e voltam a estar expostas aos mesmos problemas”, explica a representante da associação portuense.
“As ilhas do Porto”, dá como exemplo, “estão a ser arrendadas casas de ilha com contratos de 500 euros, a casa tem 16m2, com ratos, muita humidade, com buracos no telhado, baratas no chão. Há tanta falta de casa que as pessoas têm de se sujeitar a isto. Ou seja, pagam cada vez mais por piores condições. As crianças convivem com ratos e com todos os perigos adjacentes. Há muitas casas em muito mau estado, para não falar nas casas camarárias. Foram pintadas por fora, mas por dentro continuam em muito mau estado e ainda dizem que a culpa é dos moradores”.
Por essa e muitas outras razões, “defendemos que têm de ser suspensos os despejos por especulação imobiliária”, afirma a porta-voz e explica que “a maior parte dos despejos é por especulação. O que acontece é que o contrato de arrendamento acaba e o senhorio não o renova para poder subir o preço da renda num novo contrato”, exemplifica com base nos vários testemunhos que tem tomado contato na Associação que pertence.
“E, também, acreditamos que as rendas têm de ser controladas, mas não da maneira como o governo propõe controlar agora. O governo propõe controlar as rendas como estão agora, ou seja, muito altas. O governo tem de baixar as rendas e controlar em função dos rendimentos das pessoas”, sublinha a porta-voz.
De acordo com Helena Souto, “a partir do momento que o direito à Habitação ficou patente como um direito constitucional, seria de esperar que o Estado tivesse feito alguma coisa para pôr isso em prática. Desde logo, o Estado tem alienado património. As políticas foram sempre de acesso ao crédito, para comprar casas próprias, o que deixou muita gente com problemas de entrega das casas ao banco, em momentos de crise”, afirma.
“O problema é que desde o tempo das políticas de acesso ao crédito” (bonificado e posterior a isso), “confiou-se no mercado para resolver o problema da habitação, ou seja, para garantir casa às pessoas. O problema é que o mercado é desregulado e especulativo”.
não se pode confiar na boa vontade de cada senhorio para fazer o que está certo e colocar rendas de acordo com a necessidade da população
Para estes movimentos torna-se urgente regular o mercado de arrendamento porque “não se pode confiar na boa vontade de cada senhorio para fazer o que está certo e colocar rendas de acordo com a necessidade da população”, recomenda Helena.
“A partir do momento que, em 2012, por exemplo, surgiu a “lei Cristas”, a lei do arrendamento que permitiu despejar as pessoas e, ao mesmo tempo, começou a criar-se os vistos gold e a incentivar o turismo. Tudo isso permitiu a chegada ao país de pessoas com muito maiores rendimentos, significa que se introduziu no mercado agentes com muito maior poder de compra. E, portanto, chega-se a um ponto que o senhorio prefere escolher uma renda de 1000 euros no lugar de uma de 200. E isto é completamente desadequado com os rendimentos da população”, conclui a porta-voz.
“O que foi feito com a liberdade que foi dada ao mercado é um problema, mas é um problema também que o Estado não tenha investido numa solução a longo prazo em vez de andar sempre com pensos rápidos, pequenas políticas que foram agudizando o problema até chegarmos ao ponto de hoje. Reverter a “lei Cristas” é fácil, não há vontade política”, atira a ativista.
“O governo falou em suspender os vistos gold, mas não chega. Os benefícios fiscais a residentes não habituais continuam, não se falou sequer em travar isso”, alerta a porta-voz.
A suspensão dos vistos gold deverá ser confirmada esta tarde, depois da reunião do Conselho de Ministros.
Entretanto, esta manhã, a Associação Portuguesa de Capital de Risco – APCRI, manifestou reservas quanto à medida. Em comunicado, a APCRI defende que o fim dos vistos para quem compra edifícios, previsto no pacote “Mais Habitação”, não deve comprometer as Autorizações de Residência para Investimento (ARI) para estrangeiros que querem aplicar capitais em empresas portuguesas, no sistema científico e tecnológico ou na produção artística nacional. “Portugal precisa muito de atrair capital estrangeiro para dinamizar o seu desenvolvimento económico-empresarial”, alerta Luís Santos Carvalho, presidente da APCRI.
Outro exemplo levantado por Helena Souto refere-se ao Alojamento Local (AL). Segundo a porta-voz do movimento Casa para Viver, a medida de restringir novas licenças de AL, “é atirar areia para os olhos porque, neste momento, já há demasiados alojamentos locais nas cidades e há demasiadas casas do Estado devolutas nas cidades”.
“Quando um beneficiário de um visto gold investe milhares de euros numa casa, na cidade, não é só o preço dessa casa que essa pessoa está a afetar. Ele está a elevar todo o preço do mercado e afetar o custo de vida dessa área da cidade”, afirma. “O mesmo para o Alojamento Local: quanto mais casas, que estavam destinadas para a habitação houverem, menos habitação fica disponível, mais caras se tornam as rendas”, conclui.
Quanto ao “direito à cidade” reivindicado pelo movimento, "significa que eu, onde vivo, tenha as condições para viver e isto significa que eu, as pessoas pobres, idosas devem ter acesso a serviços, centros de saúde, cultura”.
Há várias formas de desertificar uma cidade, entre elas Helena Souto destaca duas maneiras de mandar os residentes das cidades para fora.
“Uma é aumentar as rendas e a outra é o aumento do custo de vida à volta dessas casas. Eu até posso estar protegida com um contrato de renda anterior a 1990, mas se de repente a padaria ao lado começar a vender café a cinco euros e pão a três euros. Se a mercearia ou o supermercado ao lado fechar, e passar a estar demasiado longe, deixo de ter acesso a bens alimentares. Se tudo à minha volta começa a mudar, se deixo de ter vizinhos, também é uma forma de me tirar dessa zona”. Por isso, “o direito à cidade significa que onde vivo, tenha as condições que preciso para viver e ao mesmo tempo que “eu, tenha o mesmo direito à cultura, a centros de saúde, hospitais e serviços perto de onde vivo”.
A cidade do Porto tem mais de mil residências alocadas ao Alojamento Local. Para Rui Moreira, trata-se de uma "atividade vital para o Turismo". O autarca falava esta manhã, depois de receber os empresários de AL que protestam contra as medidas do Mais Habitação que poderão colocar em risco os seus investimentos e postos de trabalho. “A cidade está renovada e mais bonita, graças ao AL”, declarou o presidente da Câmara do Porto, demonstrando “preocupação” com o impacto das medidas para o AL.
De acordo com Helena Souto, “cada vez mais se está a empurrar as pessoas da cidade para os concelhos limítrofes e já não estamos a falar dos municípios vizinhos do Porto, mas sim de concelhos para além destes". Enquanto que o local de trabalho, a escola, a universidade, os locais de lazer, mantêm-se nos sítios onde outrora viviam, e as pessoas podiam deslocar-se a pé. “Se os trabalhos mantêm-se no centro e as pessoas são forçadas a viver cada vez mais longe do trabalho, significa que vão ter de deslocar-se e os transportes públicos são o que são. Apesar de termos metro, é muito difícil deslocarmo-nos diariamente em carruagens enlatadas.
O movimento prepara-se igualmente para protestar contra as medidas apresentadas para mitigar o aumento do custo de vida. Sobre o IVA zero, “estamos uma vez mais a transferir dinheiro e benefícios para os privados. As grandes cadeias de distribuição alimentar continuam a aumentar os seus lucros, no último ano. Por mais que se venham queixar, os lucros estão a aumentar. Diminuir o IVA, como medida urgente, vai afetar as populações, mas a longo prazo não estamos a garantir que o custo de vida baixe.
Este movimento de luta, não é recente. Esta manifestação é o resultado de um longo trabalho de todos os coletivos. A manifestação é um primeiro passo para continuarmos a luta em todo o país.
Em Lisboa, a Câmara procedeu recentemente à entrega das chaves de 105 habitações municipais. As habitações vão estar disponíveis ao abrigo de vários programas municipais de acesso à habitação como o Programa Renda Acessível e o Programa de Arrendamento Apoiado.
Nos próximos meses de abril e maio serão abertos dois concursos de renda acessível, o primeiro envolvendo 64 novas habitações em Entrecampos e o segundo integrando um número ainda não definido de habitações reabilitadas no património municipal disperso pela cidade.
Helena Souto acredita que o Estado e os municípios estão a fingir com os programas de ajuda e dá o exemplo do programa de Arrendamento Acessível, uma das medidas do pacote Mais Habitação que os municípios têm utilizado.
“A renda acessível é uma renda 20% abaixo do mercado em que os senhorios vão beneficiar com benefícios fiscais. Ou seja, os senhorios não vão perder rendimentos neste programa. O governo está a promover a mesma renda alta. Os municípios e o Estado central querem aplicar essas rendas com base no mercado para a habitação pública, o que exclui grande parte da população. Estamos a pôr penso rápidos, tal como na habitação. Ao não atacar diretamente o problema, não vamos garantir que a longo prazo os portugueses tenham comida”, conclui.
As vozes vão erguer-se por todo o país e juntar-se às manifestações que estão a decorrer pela Europa na semana do “Housing Action Days 2023”, coordenados pela “European Action Coalition for the Right to Housing and the City”.
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