Nota prévia. O SAPO24, num inverno não muito distante, esteve na Nazaré, com Sérgio Cosme, piloto de jet ski e profissional das equipas de salvamento de ondas grandes.
O ponto de encontro foi o porto de abrigo da Nazaré. Nicolau von Rupp, que tinha estado dentro de água a fazer uma sessão de tow-in, cedeu o lugar a João Macedo, outro surfista de ondas grandes. Equipados com coletes insufláveis, em cima da mota de água, “Serginho” aos comandos, eu e o João, à boleia, seguimos até ao famoso Canhão, da praia do Norte.
Levitámos em águas serenas, dobrámos o Forte de São Miguel Arcanjo, Farol que recebeu mais de um milhão de visitantes desde a abertura, em 2014, passámos pelo meio de uma pequena elevação rochosa separada de solo firme e, como se de uma fronteira se tratasse, entrámos literalmente noutro “país”. Na terra das ondas grandes.
Testemunhámos a cumplicidade entre quem conduz a mota de água e o surfista que desce as ondas do tamanho de um prédio, o dar tudo pela vida do outro, o timing do resgate, a fuga do estrondo salgado que nos sopra aos ouvidos e nos quer engolir, as decisões de segundos e a segurança sempre presente na mente. Segurança que nunca deixámos de sentir, mesmo quando eu e Sérgio, no jet ski, surfámos uma onda.
Um par de temporadas depois desse inverno não muito distante, o Nazaré Tow Surfing Challenge colocou no radar a equipa liderada por Sérgio Cosme. A operação de resgate ao surfista de ondas grandes, Alex Botelho – e ao colega de equipa, Hugo Vau, correu o mundo e valeu o “Prémio Superação” atribuído pela Liga Mundial de Surf, organizadora do evento.
E lá regressámos, com razão mais que justificada, a mais uma conversa com Sérgio Cosme. No Espaço Jogos Santa Casa, em Lisboa, ouvimos o relato sobre a sua escolha (altruísta) de vida, decisões e a obsessão pela segurança. E, claro, o episódio sucedido na Nazaré, em fevereiro.
O guardião da Nazaré
O hangar no Porto de Abrigo da Nazaré serve de base ao que se passa na praia do Norte. É onde se encontra a logística que o surf de ondas grandes obriga - manutenção das motas, armazenamento de pranchas (as que ultrapassam os três metros de comprimento, utilizadas em remada, e as que pesam 10 kg, puxadas por tow-in), coletes insufláveis, cabos e outro material de segurança e de treinos de resgate. Mas, o Farol é, hoje em dia, outro ponto nevrálgico nos dias que ninguém quer esquecer.
Dali, daquele miradouro, um spotter presente na falésia, acompanha as equipas de salvamento, que estão na água, em constante comunicação rádio. “A equipa na água não faz nada se não tivermos em terra quem nos ajude”, explica Sérgio Cosme.
Recua no tempo. Ao tempo que decidiu comprar a primeira mota de água. “Perguntei ao Garret se deveria ir para o Havai fazer um curso. Na altura, a viver na casa em frente à praia do Norte, na casa da Marisa, disse-me para gastar o mesmo dinheiro em gasolina, porque tinha ali à minha frente o melhor local de treinos do mundo”, solta uma gargalhada. “Sem a ajuda dele, não seria nada”, reconhece. “Ele”, é Garret MacManara, o pai daquilo tudo, o “tal” que meteu a Nazaré no radar do mundo. No mundo dos surfistas de ondas grandes, e não só.
No primeiro Nazaré Challenge “estava em dúvida se queria ir para a água com o António Silva. O Garret chegou ao pé de mim e disse: vai, vai. Não estava ninguém na água. E foi tão difícil, as ondas .... prum, prum!”, relembra.
Antigo nadador salvador, “Serginho” insufla o peito quando questionado se se sente o “guardião da Nazaré”, nome imortalizado num documentário da Red Bull. “Não tenho como não me sentir o guardião. Ou melhor, um dos guardiões da Nazaré. Há vários, graças a deus, que se preocupam com os outros”, garante, num tom altruísta que lhe sai espontaneamente.
Dá um exemplo da sua omnipresença. “Há uns tempos, um gajo numa prancha de surf com motor, via-o, parado, na zona da arrebentação. Estava a ir-me embora e ... fico mais descansado se avisar e as pessoas souberem que eu já não estou lá. Cada vez que me vou embora, há menos uma máquina de resgate. Seja o Sérgio, ou outro”, explica.
“Quando tirei o meu primeiro curso de nadador-salvador, em 2006, o meu formador disse que quem tira um curso será nadador-salvador a vida inteira. Na altura não entendi o que queria dizer”. A resposta apareceu anos mais tarde. “Num inverno, vi uma pessoa na água e não saí do estacionamento enquanto ela não saiu daquela zona de correntes. Quando temos o curso, há um clique na nossa cabeça, não deixamos de o ter”, atesta.
Segurança. A palavra que soletra sempre que entra na água
“Gostava dos brinquedos, motas em terra e na água” e a brincadeira começou em 2004. “Uma corda para puxar amigos, sem sled, e vamos para as ondas. Até tenho uma multa, por andar a rebocar. Sei que foi em 2004, por causa da multa” solta um sorriso como se fosse uma criança apanhada a “roubar” um doce.
Baixo, corpo franzino, habituado a rasgar as ondas numa prancha de surf desde os 13 anos, Sérgio quis profissionalizar-se no resgate. Ramom Laureano, uma das lendas das ondas grandes e António Silva, foram os seus mestres, em 2013, num curso. “Entrei na Nazaré e entendi que era o meu cantinho das ondas grandes. É tão difícil conduzir, não há tantos pilotos e parecia-me ser bom investir aqui”, relembra. “Eu não queria sair só nos dias grandes. Mas queria estar apto para fazer o que entendesse. A puxar, a resgatar em qualquer lugar ou tamanho. E apostei na Nazaré”, assume o profissional das equipas de salvamento.
Acorda e deita-se a pensar nas letras que somam a palavra segurança. Considera que é a palavra-chave. “Na minha cabeça é e sempre foi”, garante.
Obcecado, recorda quando Rodrigo Koxa bateu o record da maior onda surfada - Guinness World Records - com 80 pés (23.77 metros) na Praia do Norte, Nazaré. “Gritei-lhe, não há tempo para celebrar, temos que ir para a zona de segurança”, disse, a rir. “Aprendemos com erros que fazemos e as facilidades saem caro. Não com a vida, se não, não estava aqui a contar a história, mas sai do pelo e do bolso (reparações)”, frisou.
As decisões em segundos
Dois pequenos rochedos são uma das portas de entrada do carrossel de ondas grandes do Canhão da Nazaré. “Engraçado, o Garret sempre me fez passar por ali. Porquê? É como tudo na vida. Quanto mais treinamos uma situação, mais habituados ficamos e mais facilmente lidaremos no futuro”, adianta. “Se controlarmos uma situação de perigo, conseguirmos treinar essa situação de forma controlada, quando houver o perigo, vamos ter que conseguir fazer aquilo que estivemos a treinar, vamos estar muito mais tranquilos. O resgate ou outra situação, terá um final melhor”, antecipa.
Num salvamento, as decisões são tomadas debaixo da pressão. “Frações de segundos. Uma decisão de segundos, de saltar ou não da mota, levo ou não com a onda. Quanto mais treinar as situações, quando elas acontecem, tudo sai facilmente. Quando temos poucas horas daquilo que nos propomos fazer, é mais difícil”, avisa.
“No final, ao fazer uma retrospetiva, queremos saber se tomámos boas decisões. A percentagem aumenta cada vez que vamos para a água treinar com alguém”, regista.
O relato de um resgate na primeira pessoa
É tempo de recordar a situação que saltou para as bocas do mundo: a operação de resgate de Alex Botelho durante o Nazaré Tow-In Challenge, no passado dia 13 de fevereiro. Um gesto de altruísmo e heroísmo que valeu à equipa de 10 pessoas na água e 14 em terra o “prémio Superação”.
Sérgio Cosme começa por falar da ação de um colega. “O Alemão (Maresias) que se atirou à água e largou o jet ski”, para socorrer o Alexandre Botelho. “A situação do Alex foi eminente e esteve para acontecer. Na minha cabeça é uma situação muito difícil. Eu sou um todo. Eu e o jet ski. Somos uma máquina de salvamento”, aponta. “E o que é que sou melhor: uma máquina de salvamento com ou sem jet ski? Obviamente depende da situação onde estamos inseridos, mas naquele momento, não achei boa ideia saltar do jet ski”, recupera.
“O que pensei que me podia acontecer, foi o que sucedeu ao Alemão. Saltou, agarrou o Alex, teve a decisão que achou melhor naquele momento. São aquelas decisões que, lá está, ao treinar, são melhores ou piores conforme os treinos que tivemos”, regista. “A decisão que ele tomou, e pensei nisso, não o fiz porque tinha medo de o perder”, assume. “Naquele momento, foi minha decisão, não saltei e foi o melhor”, frisa.
Os momentos vividos da operação de resgate foram acelerados, mas perduram na memória. “Já lá tinha ido três vezes ao Alex e não o tinha conseguido tirar de lá. Passo a espuma e vejo o Alemão sozinho. Tinha que tirar os dois. É uma decisão muito, muito dura para mim deixar ali alguém. No caso, um amigo, o Alex ou quem quer que seja, acelerar o jet ski e sair dali. É uma situação muito difícil”, confessa.
“No final o que é que eu quero? Tirá-lo de lá”, exclama. “E se quero tirá-lo de lá, aquela máquina de resgate tem que ser a melhor e eu não posso saltar do jet ski. Mais facilmente faço 20 metros de mota do que três a nadar”, compara.
Dos cursos de nadador-salvador, recordou uma máxima. “Quando chegas ao pé do náufrago, tens que por as vias aéreas fora de água. Lembrei-me disso e foi o que fiz. Tenho que tirar a cabeça da água. Não entra mais água e o vento residual pode fazê-lo acordar. E faz a diferença entre ter, ou não ter, sequelas”, constata.
O dever de missão e o reconhecimento
A conversa estava a terminar. Os prémios voltam à tona. O que recebeu. “Muda a forma como se olha para quem anda de mota de água. Gostava que mudasse um pouco a nível de reconhecimento e não tanto a nível de fama, logicamente. Qualquer pessoa que faz um trabalho, gosta de ser reconhecidos”, sustenta. E do que não tem. “Puxei o Rodrigo para recorde do mundo. Para ele, é dos dois, mas as autoridades só deram a ele. Ele tem um troféu em casa, e eu não”, aponta.
Questionado sobre que sente quando ouve a frase, no walkie-talkie, “Sérgio, Sérgio, homem ao mar”, a resposta é disparada da ponta da língua. “Sinto o dever de uma nova missão. É uma missão basicamente. Aconteceu-me na Big Monday (em fevereiro), em que o mar esteve gigante. Acontece várias vezes”, recupera.
“Eu treino os meus spotters para, numa situação de perigo, avisarem-me. A partir de um momento que há um jet ski capotado, em frente às pedras do primeiro pico, é uma questão de urgência. E quando isso acontece, chamam-nos e lá vamos nós”, finaliza.
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