Uma simples chamada telefónica pode mudar o rumo de uma história pessoal a quem, por força das circunstâncias vividas no país onde vivia, poderia estar reservado um cenário bem diferente. Para pior.
O gesto básico de teclar os números, curiosamente com sucesso, sempre à primeira tentativa, para a pessoa certa, ligação feita para três geografias, Portugal incluído, mudou a vida a Alina Shapovalova, jovem velejadora, natural de Odessa, no Mar Negro, Ucrânia.
Se Alina, 15 anos, é a personagem central, Carmen Casco-Canepa desemboca no enredo como elo de ligação, e de salvação, ao desempenhar o papel de um dos “anjos da guarda” da jovem velejadora. Ela, e a ajuda de mãos amigas, mãos essas integradas na sua universal rede de contactos, permitiram mudar os planos que a vida parecia reservar para Alina Shapovalova.
O encontro em Itália. O início da história escrita através dos telefonemas
Esta “entrega de carta a Garcia” adaptada à conectividade do mundo atual começou, no entanto, com um encontro fortuito, cara a cara, em Itália, durante uma competição náutica para jovens.
Para Carmen, Alina Shapovalova não era uma perfeita desconhecida. “Conhecia-a, e à família, em Itália. Já a tinha visto competir em Optimist. A Alina esteve em alguns dos nossos eventos e era já uma ótima velejadora”, referiu em conversa telefónica com o SAPO24, diretamente da Suíça.
“Em abril, ainda estava a competir em Optimist, no meeting de Carca (na sua 40.ª edição)”, em Riva del Garda, Itália, na maior competição de Optimist no mundo, com mais de 1000 embarcações. “Terminou em 8.º na geral e foi a primeira rapariga”, recordou. A vitória mereceu honras de destaque na imprensa da sua cidade natal, Odessa.
A história começa aqui. “Estava lá (em Riva Del Garda), falei com o pai, contou-me a situação com a qual debatiam-se na Ucrânia. Estava desesperado devido à conjuntura vivida no seu país”, testemunhou.
“Ajudei”, exclamou, sem hesitar. “Pouco tempo depois, no início de maio, após a competição em Itália, o pai ligou-me”. Resultado: “Vieram viver para a Suíça. Veio a família toda, pai e mãe, as três filhas (uma delas tem uma bolsa de estudo em Zurique) e a sogra”, enumerou.
A ajuda não parou na solução encontrada para uma nova casa e um novo início de vida. “No mesmo dia, contei a história a um grande amigo do clube (DRSC Sailing) e a Alina começou a treinar”, contou.
Seguiram-se novos capítulos à velocidade cruzeiro e novas competições, já na classe Laser. “Foi a um campeonato nos Países Baixos. Não tinha barco. Liguei a um amigo, falei-lhe da história e ele mesmo cedeu o barco dele para ela competir”, recordou.
A “sorte” não se ficou por aqui e acompanhou nova mudança geográfica. “Aconteceu também no europeu, na Polónia (em junho). Preciso de um barco”, recordou, entre risos, um pensamento materializado em voz. E conseguiu um “sim e à primeira” escutado no telemóvel.
Alina Shapovalova competiu. Fez parte do Programa Solidário EurILCA 4 Youth European Championships & Open European Trophy e terminou em 8.º nos sub-16
Título mundial sub-16 em Vilamoura
Nova rodagem do esquadro competitivo. A régua traçou a linha até Vilamoura, para os Mundiais dos escalões jovens, em pleno verão, no final de agosto.
“A história em Portugal não foi diferente. Arranjei, de novo, um barco, e à primeira chamada”, sorriu, novamente.
A diferença para as outras competições é que no Algarve, Alina viria a conquistar o título mundial sub-16 de ILCA 4 e a sagrar-se vice-campeã na classificação geral.
Carmen Casco-Canepa faz uma pausa na narrativa e recorda as três chamadas telefónicas feitas. Do outro lado da linha, as pretensões que originaram a ligação, foram sempre atendidas. Invariavelmente à primeira tentativa. Uma vez, duas, três vezes. O “sim” ao pedido – “preciso de um barco” - ouviu-se em três países diferentes. Países Baixos, Polónia e Portugal.
Reconhece ser “uma história pouco usual”, mas esse facto, curioso, torna-a “especial”, atirou. “Nunca tive de ligar duas vezes. A primeira pessoa a quem liguei acedeu logo e disse imediatamente que sim”, relembrou.
Reforça o facto de a velejadora não ter, então, embarcação própria. “É algo especial. E foi sempre o barco daquela pessoa. A quem liguei, arranjou e disponibilizou-o”, pormenorizou.
“Sou de Odessa, no Mar Negro”
Altura de Alina se apresentar ao SAPO24 e contar algumas partes já apresentadas. “Sou de Odessa, no Mar Negro”, apontou ao telefone. “Não somos uma família de velejadores. O meu pai começou-o como hobby e levou-me a competir”, ressalvou, durante a conversa telefónica.
Velejou e treinou até ao último minuto permitido pela lógica da sobrevivência na sua terra natal. Ultrapassado o limite, mudou de país. “Estou na Suíça, onde vivo e treino. Aliás, estamos todos, eu e a minha família, desde meados de maio, três meses depois do início da guerra”, sublinhou, na única citação ao conflito a leste.
Fala dela e dos sonhos que carrega.
“Tento ser profissional e estudo ao mesmo tempo, numa escola, no ensino normal”, assumiu. “Ainda não decidi se vou para a universidade”, afiançou com as incertezas próprias da idade e do futuro que não adivinha. “Se sonho com os Jogos Olímpicos? Sim. Paris? Veremos se já, seria espetacular, tentaremos”, assegurou a jovem velejadora.
Clube de Vela de Lagos emprestou barco para treinos
Alina Shapovalova recorda a passagem por Portugal e Vilamoura onde se sagrou campeã mundial sub-16. “Viemos para Portugal a 1 de agosto. Treinei no clube de Vilamoura. Deram-me um barco para a uma semana de treinos”, contou.
O caudal da cronologia de acontecimentos obriga a nova interrupção na narração. A voz de interlocutora principal dá lugar a quem a ajudou por águas algarvias antes do ILCA 4 Youth World Championships.
“Recebemos uma chamada (do Rodrigo Moreira Rato, que nos ajuda a organizar a prova do Circuito Mundial GC 32, em Lagos, juntamente com o clube de vela de Lagos e a Marina) para ajudar uma velejadora ucraniana”, explica Martinho Fortunato, da Marina de Lagos.
“A Alina necessitava de um barco para treinar antes do Mundial. O clube de Vela de Lagos emprestou um. Os treinos foram em Vilamoura e, entretanto, chegou uma embarcação para competir”, resumiu.
A história surge pormenorizada nas redes sociais do LX Sailing, uma página dedicada ao mundo da vela.
“Temos uma pequenina percentagem de responsabilidade. Contentes pelas coisas terem corrido bem. Não foi a semana com barco emprestado que a fez ganhar, foi o ano, mas se o pedido não tivesse sido satisfeito andaria seguramente mais stressada”, aludiu Martinho Fortunato.
Regresso à voz de quem está na linha da frente desta história. “A dois dias da competição chegou o barco dos meus patrocinadores, a quem estou muito grata”, reconheceu Alina. “Ofereceram-me um, veio de Itália, uma oferta do construtor. Usei os barcos deles quando corria em Optimist. E treinei dois dias, dois pequenos treinos, no barco com o qual competi e consegui o título mundial sub-16 (e 3.º lugar na geral)”, relembrou.
“É uma miúda especial. Chamo-lhe a miúda mágica”
Carmen, a mulher que possibilitou que tudo isso fosse uma realidade, reentra em campo. “É uma miúda especial. Chamo-lhe a miúda mágica. Digo-lhe que ela deve ter algo de especial”, confidenciou. “Foi campeã mundial sem barco”, regozijou.
Nos Países Baixos, Polónia e Portugal “teve sempre barcos diferentes”, fez questão de lembrar. Mas hoje a realidade é diferente. “Alberto e Paolo Portillia, donos do Nautivela (empresa naval italiana) ofereceram-lhe um Laser que usará enquanto necessitar. O nosso treinador principal, Damir Nakrst, comprou todo o equipamento (mastro, vela, retranca, etc.) e Alina pode usá-lo sempre que precisar”, destacou.
“Finalmente tem um barco”, concluiu, orgulhosa e feliz por ter contribuído para esta história pessoal e este sonho que está longe do seu fim e que necessita de ser alimentado.
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