Há o que todos sabemos: este é o ano em que um Trump, com modos de comandante temperamental do sétimo de cavalaria, entra pela Casa Branca, disposto a provocar o tigre chinês, cuja paciência pode nem ser infinita, e tudo numa época em que está estendido o tapete vermelho para a ambição imperial de um Putin, cada vez mais na pele de herdeiro de Pedro, o Grande. Para transtornar ainda mais o cenário há uns Erdogan, Duterte e Netanyahu, entre outros, que andam de peito cheio. Portugal aparece-nos em contraponto a esta corrente pessimista: Marcelo e Costa seguem de braço dado a puxar-nos a confiança. Como outro dia dizia José Tolentino de Mendonça, "há um certo tom de esperança que voltou ao espaço público". Quem sabe se Portugal pode ser um caso exemplar de estudo para os outros.
Neste ano que entra ainda vamos ter cartas trazidas por carteiros. Mas não será de admirar se as encomendas começarem a chegar trazidas por drones. A automatização e a robótica vão ter uma dimensão até agora fora da nossa vida. O algoritmo vai invadir cada vez mais todas as facetas do nosso dia-a-dia e servir sempre mais estratégias e artimanhas nas redes sociais. É evidente que neste ano vão aumentar as compras feitas online.
Vamos ter cada vez mais turistas a visitar-nos. Vamos sentir mais que Portugal está menos burocrático, mas ainda falta mais. O Serviço Nacional de Saúde vai continuar a ser um dos grandes progressos dos últimos 40 anos portugueses, assim seja possível metê-lo mais nos cuidados prioritários do orçamento. Idem para o ensino e a qualificação. A discussão em volta da saturação do aeroporto de Lisboa vai relançar o velho debate sobre alternativas. É de imaginar que a vaga tabloide nos media ainda continue a crescer, mas é de esperar que se consolidem alternativas de informação que acrescenta conhecimento e entendimento sobre o que se passa.
O Mediterrâneo, mare nostrum, tragicamente, vai continuar mare mortum, mar cemitério, para tantos migrantes. Muitos deles não estão a querer emigrar mas a fugir da sua terra para tentarem salvar a pele. A causa de tudo, a miséria, a pobreza, as guerras, não vai parar.
A paisagem democrática clássica vai continuar em risco perante as inseguranças que avançam a galope. Vamos ter de continuar a conviver com o terrorismo e a resistir-lhe, sem ceder ao medo. Também vai continuar nos ecrãs o espetáculo do terror.
O massacre na discoteca de Istambul na noite de fim de ano veio confirmar-nos que o terrorismo está para nos magoar. Este ataque, que evoca o de 2015 no Bataclan de Paris, tem por alvo a cultura ocidental e a Turquia laica e cosmopolita.
Muitos cidadãos vão continuar a sentir-se impotentes, expostos, frustrados com sistemas políticos em que não se reveem. Daí o voto contra os políticos do costume.
O BCE, com as suas ajudas milionárias, palavras melífluas e taxas baixas vai continuar a ser um seguro para garantir a serenidade dos mercados financeiros com humores tão dados à turbulência. As incertezas do euro vão contribuir para o dólar ficar mais reforçado. A moeda europeia faz 15 anos em circulação e está evidenciado que o lançamento do euro foi precipitado e a tarefa segue imperfeita: falta a união fiscal e, sobretudo, a política.
Vamos neste 2017 ser rodeados pela celebração de vários aniversários globais – dos 10 anos sobre o lançamento por Steve Jobs do primeiro iPhone aos 500 sobre a afixação das 95 teses de Lutero, passando por dois centenários, o da revolução soviética de Lenin e o de Fátima. O que vai dizer em Portugal o Papa que é exemplo de simplicidade? Então o mundo já terá instalada a Trumplandia.
Admitidas as evidências, tentemos a prospetiva. Bastaria ter em conta o que foi 2016 para concluir que não dá para fazer previsões sobre a evolução geopolítica. Se pudéssemos ter agora a perspetiva de Mário Soares, sempre intuitivo, arguto e certeiro a antecipar os tempos, teríamos ao menos uma bússola. Resta-me, com modéstia, trazer impressões a partir de pontas que tem sido possível apreender a partir de visionários como ele.
Forma-se daqui a duas semanas um triângulo de poder que de facto inquieta imenso: Trump, Putin e Netanyahu. A coligação governamental israelita com a retórica mais violenta de sempre em direção aos palestinianos fica agora encorajada pelos falcões de Trump para abusar sem receio de travões por parte de Washington. O ideal de Israel e Palestina em dois estados independentes recua décadas, vai para antes do tempo de Arafat, Rabin, Peres e Clinton. O fim da opção de dois estados significa necessariamente o fim de qualquer esperança de paz para Israel, para a região e, por carambola, para nós todos. É espantoso como, primeiro que tudo, não há em Israel uma maioria que sinta esta ameaça. Sem que a questão palestiniana tenha alguma harmonia encaminhada não há soluções no Médio Oriente que, sendo umbigo do mundo, pode minar tudo. Passa neste ano meio século sobre a “Guerra dos seis dias”, com o ataque surpresa de Israel ao Egito, Jordânia e Síria. A ocupação israelita de territórios, apesar de várias devoluções, continua a ser nó no problema geral.
O chamado Estado Islâmico parece em claro recuo, talvez até decadência, mas a ameaça terrorista tende a crescer.
A presidência Trump, comandada por um empreendedor que obviamente sabe criar fortuna, mergulha-nos em incertezas e não se vê que introduza algum modo de esperança. A lista de incógnitas é enorme. Trump vai continuar a clamar que as alterações climáticas são uma invenção e assim retirar os EUA do Acordo de Paris sobre o Clima? Vai excluir os EUA do acordo nuclear com o Irão? Que relação vai desenvolver com a Rússia de Putin? Vai deixar a Síria permanecer protetorado de Moscovo? Vai reduzir a participação dos EUA nas organizações da ONU e na NATO? Vai persistir na intenção de deslocar a embaixada dos EUA em Israel de Telavive para Jerusalém? Vai mesmo tomar medidas drásticas contra a imigração muçulmana para os EUA? Vai manter a ideia de ampliar o muro na fronteira com o México? Vai desmantelar o Obamacare que passou a garantir cuidados de saúde para mais de 10 milhões de pessoas nos EUA? Vai abrir uma guerra comercial com a China? Será que lhe passa pela cabeça uma espécie de nova Yalta? Trump vai favorecer que o lóbi das armas seja cada vez mais poderoso nos EUA? Vai respeitar a liberdade de crítica por parte dos opositores? Como vai lidar com as tensões raciais nos EUA? A presidência Trump põe no ar o temor de muito confronto que tem potencial para se tornar violento dentro dos EUA e escalada da tensão nas relações internacionais.
Outras duas incógnitas relevantes: como vai ser a evolução da Turquia? E a da Arábia Saudita?
A relação entre Putin e Trump vai marcar a agenda internacional. Com a China a recusar ser mero espetador.
A Europa entra num ano que é mesmo crítico. Com uma questão central: a liberdade, a tolerância, a solidariedade e os outros valores humanos em que assenta a ideia de Europa vão continuar a dividir os países e os povos na união que está desunida a ponto de ameaçar desagregação?
Há pelo menos três eleições que neste 2017 vão desenhar a Europa da próxima geração. Já em 15 de março é na Holanda, país fundador da União, onde o ultradireitista Geert Wilders encabeça as sondagens. Não lhe será fácil conseguir acordo para formar coligação de governo mas esta eleição vai ser o primeiro teste do ano à força do discurso nacionalista que alastra pela Europa.
Em 23 de abril votam os franceses. Marine Le Pen tem todas as sondagens a garantir-lhe o primeiro lugar na primeira volta. Vai seguir-se, duas semanas depois, uma finalíssima que tudo indica seja, com a esquerda desaparecida, um duelo entre a candidata Le Pen da Frente Nacional e o candidato Fillon da direita tradicional. Parece muito remota a possibilidade de um socialista, no caso Valls, se intrometer nesta disputa. Todas as previsões prometem que a França republicana vá impedir a candidata ultra de assumir a presidência e assim evitar rebentar com o que ainda há de União Europeia. Embora com o risco de um presidente eleito como mal menor. Seja como for, não esquecer que as sondagens também garantiam que Trump seria batido por Hillary.
Em setembro é na Alemanha. A chanceler Merkel enfrenta a reeleição pendente da força que vai ter no Bundestag o partido populista de direitas AfD, Alternativa para a Alemanha. Tudo leva a crer que poderá condicionar a agenda política de um dos raros países que cumpriu os seus deveres (Portugal é outro) de acolhimento de refugiados. O cenário mais provável talvez seja de continuação da grande coligação entre a CDU de Merkel e o SPD agora de Martin Schulz, eventualmente alargada aos verdes. A tribo de governos europeus, embora precisando de definir estratégias de progresso e passos concretos, tende a ficar paralisada, à espera dos votos alemães.
Há uma outra relevante escolha europeia e essa já nos próximos dias: quem vai suceder ao alemão Schulz na presidência do Parlamento Europeu? Dois italianos estão na linha da frente, Tajani à direita, Pitella à esquerda, mas há um liberal belga, Guy Verhofstadt, que é um campeão na ambição de mais e melhor Europa. Se ele for o escolhido, o que terá de passar por muita negociação, será um bom sinal.
O ano que entra também talvez tenha eleições em Itália, onde as análises sugerem o primeiro lugar para um populismo que escapa à divisão entre direita e esquerda, o Movimento Cinco Estrelas, do comediante Beppe Grillo.
Dentro da Europa também cresce a tensão Leste/Oeste com a Polónia de Kaczynski e a Hungria de Orban em constante desafio aos principio de liberdade e tolerância que são marca do continente.
2017 também é o ano em que começa a negociação do divórcio Brexit entre o Reino Unido e o grande mercado único da União Europeia. Tende a ser um quebra-cabeças e pode tornar-se uma tormenta para milhões de pessoas.
Todas estas turbulências obviamente têm repercussão em Portugal. Mas o nosso país, apesar de continuar às voltas com a banca desbancada, com a dívida insuportável e com a falta de reformas indispensáveis, tende a continuar com a atmosfera política e social relativamente desanuviada, mérito de Marcelo, de Costa e, reconheça-se, da liderança do BE e do PCP. Teremos eleições autárquicas lá para o final de setembro, não se vislumbram alterações substanciais no mapa autárquico. Espera-se que possamos navegar mais para a valorização do mar e que a economia ganhe fôlego, com tudo o que isso implica.
O ano de 2017 tende a confirmar-se como de afirmação da ambição dos jovens africanos. Gerações com grande potencial.
Entramos no ano da mudança de presidente em Angola. A sucessão de José Eduardo dos Santos suscita muitas incógnitas, é uma boa ocasião para estarmos mais atentos ao que se passa em Angola, em África e na lusofonia.
O Brasil está a suspirar: enfim, 2017! Vai voltar um tempo político de decência? O povo da Venezuela vai conseguir sair do cerco da miséria?
Este é o ano um de Guterres na liderança da ONU. A tarefa é gigantesca, mas a esperança nas capacidades dele é enorme. Bom começo: "a paz como prioridade absoluta - dela dependem a dignidade e a esperança, o progresso e a dignidade".
Lá para o verão volta a haver seleção de futebol no topo, agora com Portugal na Taça das Confederações, em Moscovo, com o lugar de campeão europeu. É uma boa ocasião para confirmar méritos.
2017 é o ano da retirada anunciada de um dos maiores campeões de sempre, Usain Bolt. Que estrelas vão despontar?
Vamos poder ver filmes muito esperados, como Silence, de Scorsese, a história de dois missionários jesuítas portugueses em busca do seu líder espiritual, o padre Ferreira, vítima da cruel perseguição aos cristãos no Japão do século XVII. É um filme que coloca a discussão sobre a arrogância de quem se diz dono da verdade. Também Moonlight, filme no pódio para os Óscares, tal como o musical La La Land. E lá mais para o fim do ano o novo Blade Runner. E esperar pelo que vão fazer cineastas portugueses como Leonor Teles, Miguel Gomes, Salavisa ou João Pedro Rodrigues, entre vários outros. Também esperar os livros – há que voltar aos “Cem anos de solidão”, neste ano de meio século depois -, as músicas e outros prazeres na arte. Há que desfrutar de Lisboa capital ibero-americana da cultura, com a certeza de programação estimulante por António Pinto Ribeiro e do DocLisboa que a equipa de Cíntia Gil prepara com exigência. A WebSummit vai voltar a gerar excitação.
O ano entra com ameaças sérias às liberdades, à democracia, aos direitos humanos. Vamos atravessá-lo rodeados por más notícias. Por isso, 2017 anuncia-se safado. Mas podemos encontrar pontes para alguma esperança, e assim safá-lo. Bom ano! Todos precisamos de confiança e de ternura.
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