O título chamou-me a atenção. Porquê? Porque fico sem saber se aquilo são muitas queixas, poucas queixas, queixas assim-assim.

Estou certo que o jornalista dá mais informações no corpo da notícia desaparecida. Mas essa minha confusão inicial lembrou-me deste facto interessante: os números podem enganar e muito. Não julguem, no entanto, que podemos ignorá-los: na verdade, se os números enganam muito, as palavras enganam ainda mais — e essas palavrinhas especiais que são os números dão muito jeito para pensarmos melhor.

Portanto, perante o título "Turistas apresentam quatro queixas por mês contra taxistas", a nossa tentação é usar este número para as nossas narrativas particulares.

  • Ah, esses taxistas, malandros, vejam lá que se portam tão mal que recebem quatro queixas por mês (tantas!).
  • Ah, esses turistas, malandros, que andam sempre a importunar os nossos taxistas.
  • Ah, quatro queixas? Só? Tão poucas! Os turistas não têm é coragem de se impor perante os abusos dos taxistas.
  • Ah, quatro? Só? Os nossos taxistas são uma maravilha!

E por aí fora...

Ou seja: aquele número, assim muito frio, pode servir para mil e uma histórias diferentes ou mesmo opostas. O mesmo número serve para elogiar ou para insultar os taxistas.

Como resolver isto? Aqui ficam cinco ideias, tomando como exemplo este caso:

  1. Fazer comparações

Por exemplo, qual será o número de queixas noutras cidades? E, já agora, qual será o número de queixas por 100 000 habitantes em cada cidade (para compararmos as coisas de forma mais correcta).

Ou, melhor ainda: qual será o número de queixas por 1000 viagens de táxi em cada cidade?

Talvez assim comecemos a perceber se quatro queixas por mês é muito ou pouco. E há ainda outras formas de escavar para lá dos primeiros números.

  1. Olhar para a evolução ao longo do tempo

O número de queixas está a aumentar ou a diminuir? Estabilizou? Deu um salto neste mês? Aumentou durante uns anos e agora tem diminuído?
Há que ter cuidado, no entanto: com números baixos, o acaso tem um papel muito importante no número de queixas por mês. O melhor será olhar para tendências de longo prazo...

  1. Tentar saber qual era a expectativa inicial
  2. Será que os taxistas têm objectivos de qualidade no que toca ao número de queixas? Esses objectivos foram ou não cumpridos?

    (Como vemos, o truque está em fazer perguntas aos números. Claro que nem sempre temos maneira de chegar às respostas — ou tempo, para dizer a verdade. Mas, pelo menos, se fizermos as perguntas, começamos a perceber aquilo que os números não dizem.)

    1. Abrir o número e olhar para o que está lá dentro

    erá que as queixas estão concentradas em poucos taxistas? Ou nem por isso? As queixas são apresentadas a qualquer hora, ou concentram-se em determinadas alturas do dia? E será que os mesmos taxistas recebem queixas todos os meses, ou, em geral, um taxista que recebe uma queixa num mês não recebe mais durante o ano?

    1. Não cair na tentação de procurar números interessantes

    Há que evitar o risco de encontrarmos nos números uma qualquer história mais interessante do que verdadeira. Os números nem sempre são interessantes — e ainda bem.

    Imaginemos que um comportamento frequente de muita gente aumenta o risco disto ou daquilo. Vou inventar um cenário fictício. Por exemplo: um grupo de cientistas descobre que ler aumenta em 100% (!) a probabilidade de sofrer uma estranha doença nos olhos — chamemos-lhe leiturite. Ou seja, quem lê tem o dobro da probabilidade de ter a tal doença. Assusta, não é? Certamente, se esta história fosse verdadeira, teríamos os jornais a declarar que a leitura, afinal, é perigosa.

    Isto, claro, até um leitor muito pouco dado a aceitar assim insultos à sua actividade preferida se dar ao trabalho de olhar para os números com mais atenção.

    Percebemos então que o risco na população em geral será de 1 doente em cada 10 000 000 de pessoas. Entre os portugueses, o mais provável será termos 1 sofredor da tal leiturite.

    Ora, se a probabilidade aumenta para o dobro, quer isso dizer que seria necessário que todos os portugueses passassem a ler para passarmos a ter 2 sofredores de tal mal.

    De repente, um aumento da probabilidade em 100% já não parece razão para grandes sustos, não é?

    Diga-se, já agora, que a doença é mesmo inventada. Riscos a sério corre aquele que não lê, como sabemos.

    Voltemos aos nossos amigos taxistas. Esta vontade de pôr os números a gritar manchetes pode levar-nos a dizer: aumento de 100% das queixas contra taxistas! Porquê? Porque em Julho houve quatro queixas, quando em Junho tinha havido duas. A única diferença foi ter havido um taxista que teve o azar de dar com um casal que gosta muito de reclamar — e, pronto, lá temos manchete. Com a verdade me enganas, não é assim? (Aviso aos desprevenidos: os números neste parágrafo são fictícios. Não quero cá insultos a classes profissionais por dá cá aquela palha.)

    A síndrome da velha que bebia gin

    Para terminar, deixem-me lá falar desta síndrome antiga. Alguém diz que o álcool faz mal e logo aparece alguém a dizer: ora, ora, conheço uma senhora que bebia todos os dias e viveu até aos 100 anos!

    Ó meus amigos: também conheço fumadores que viveram até aos 100 anos. Quer isto dizer que fumar não faz mal? Claro que não...

    A verdade é que olhamos para os números como nos dão jeito. Queremos fumar? Então reparamos na velha que fumava até aos 100 e ignoramos todos os que morreram aos 50. Queremos justificar a nossa falta de leitura? Olhamos para o risco mínimo (quase inexistente) duma doença que nem sequer é assim tão grave.

    Gostamos de apontar uma pistola à cabeça dos números até eles confessarem aquilo que nós queremos que confessem. Ora, se resistirmos à tentação e baixarmos a pistola, os números dizem-nos, em voz baixinha e sem ameaças, algumas coisas interessantes. Só temos de ter calma e ouvi-los com atenção.


    Marco Neves | Autor do romance de aventuras A Baleia Que Engoliu Um Espanhol (Guerra e Paz). Tradutor na Eurologos e professor na Universidade Nova de Lisboa. Escreve no blogue Certas Palavras.