O mundo tem hoje um exército de indignados porque a realidade do dia-a-dia destas pessoas piora continuadamente e as suas esperanças estão num beco sem saída. A revolta é plenamente justificada, está à solta nas redes sociais e irrompe no voto. É assim que em sucessivas eleições ou referendos o voto tem sido sobretudo um voto de protesto – votam mais para estar contra do que por adesão a ideias.
Há meia dúzia de meses, associar o termo Presidente ao nome de Donald Trump era algo que só os fiéis do multimilionário levariam mesmo a sério. Agora, a seis meses das eleições presidenciais e legislativas em França, será imaginável que a cruzada de Marine Le Pen a leve à presidência da república francesa? Já percebemos que o que antes parecia ridiculamente impossível se torna plausível. O vazio que o reputado Bauman reconhece nos EUA também parece instalado em França.
Nos EUA, tivemos uma dupla desconexão: uma entre os políticos tradicionais e grande parte dos cidadãos eleitores, e outra entre os media e a opinião pública. Na América, o jornalismo não foi capaz de calibrar a magnitude do fenómeno social que o magnate soube capitalizar a seu favor. Foram cometidos muitos erros de análise. Por exemplo, o Huffington Post começou por recusar noticiar as atividades de Trump na secção política: “é um espetáculo, não vamos morder esse anzol, quem quiser saber o que ele diz vai encontrar essa informação na secção people, ao lado das histórias sobre a família Kardashian”, argumentou então o editor-chefe Ryan Grim. Veio depois a emendar a mão.
É generalizado, hoje, o mea culpa dos media por não terem percebido a vaga social que atrelou a Trump, mas também há críticas ao jornalismo por ter sido por muito tempo porta-voz acrítico dos discursos da personagem que dizia barbaridades no circo da campanha. Gregory J. Wallance, em The Hill, compara a campanha Trump com a cruzada anti-comunista do senador McCarthy nos anos 50. Wallance lembra-nos que McCarthy foi desmascarado por um valente jornalista, Edward R. Murrow, que desmontou as mentiras no discurso do poderoso senador. Agora, conclui Wallance, faltou quem tenha a coragem de Murrow (a propósito: esta é uma boa ocasião para revermos Good Night, and Good Luck, o filme realizado por George Clooney em 2005, sobre como Murrow se atreveu a desafiar o poder de McCarthy naquele obscuro tempo americano de caça às bruxas).
Trump é o tal que instalou a suspeita sobre se Obama preenchia os requisitos para ser presidente dos EUA por, dizia ele, não estar provado que tenha nascido nos Estados Unidos. E disse tantos disparates mais, tratados com um sorriso displicente ou frívolo.
Agora, os americanos já disseram o que queriam. Antes, os britânicos também tinham votado pela saída da Europa. Num lado e no outro, com grande revolta de quem ficou surpreendido, até com gente a falar em mudar de país.
Segue-se a França na lista de grandes países com votos no horizonte. Hollande, apesar de alguns gestos de grandeza, pôs os socialistas em maus lençóis. Parece evidente que a França vai virar à direita. Será interessante seguir já nesta quinta-feira o confronto na televisão entre Juppé, Sarkozy e Fillon. É o debate entre os candidatos da direita do sistema tradicional. Tenho para mim que Alain Juppé, moderado e cosmopolita, com longa história política, é a opção preferível no atual quadro francês. Mas, na finalíssima da eleição presidencial, então a dois, o candidato do centro-direita vai, parece evidente, ter de enfrentar a populista e extremista Marine Le Pen. A sua Frente Nacional já chegou aos 24,8% dos votos entrados nas urnas, correspondendo a relevantes seis milhões de votos, nas eleições europeias de 2014. Será que agora ela pode saltar a barreira dos 50% de votos nas urnas numa finalíssima em que a esquerda, uma vez mais, não deve conseguir meter um candidato?
Trump nasceu do vazio que estava criado e foi hábil a explorar a imagem de outsider, frente às elites da política nos EUA. Le Pen é uma guerrilheira contra os consensos instalados na elite política francesa: ela assume-se feroz contra a imigração, contra o comércio livre, contra a União Europeia, contra a França multiétnica e contra a tolerância religiosa. Le Pen, tal como Trump, é poderosa a comunicar e eficaz a usar as redes sociais como instrumento para doutrinar. Não é prudente arriscar que Juppé vai arrasar Le Pen. Pode repetir-se o episódio de Hillary com Trump.
José Pacheco Pereira disse na Quadratura do Círculo e escreveu no Público que não tem a mínima simpatia por Trump, mas tem imensa simpatia pela vontade de mudar, que tanta falta faz nos dias de hoje nas democracias esgotadas na América e na Europa. Pois. O problema é quando a mudança nos confronta com o abismo, como alerta Jorge Sampaio no corajoso e magnífico ensaio que publicou no Público.
Já estamos a ver o que acontece à liberdade quando há o poder autoritário de um Erdogan a liderar um país como a Turquia – e consegue fazê-lo com apoio popular. Também sabemos como são os regimes de Al Sisi, de Putin, de Chavez/Maduro, de Duterte, de Orban e de outros. Como seria a Europa com Le Pen a comandar a França? A história do século XX mostra-nos como algumas eleições foram trampolim para regimes terríveis.
O problema instalado é sério e grave. O ressentimento que se tornou tão forte tende a ser inimigo da inteligência. Leva ao efeito boomerang, vira-se contra cada um de nós. Corremos o risco de ficar nas mãos de traficantes de futuros. Faz-nos falta uma revolução que trate o ressentimento social com exigência política e estratégia solidária. Que saiba juntar e fazer avançar dois mundos até aqui separados, o dos esquecidos ou deixados de fora pela política na condição de expropriados do direito a vida feliz e o dos que vão sendo chamados de elites, embora não o sejam.
Por agora, o que está pela frente é um território desconhecido. Há que não ter medo e procurar a alegria.
TAMBÉM A TER EM CONTA:
Trump já escolheu um incendiário, conhecido como o génio dos sites radicais de direita, para comandar a estratégia da sua presidência. Steve Bannon é o pior sinal neste momento.
Merkel deu a luz verde que permitiu a eleição do social-democrata Steinmeier para presidente da Alemanha. O bloco central funciona no topo do poder em Berlim. É uma desfeita para Schauble, o duro guardião da ortodoxia, dado como aspirante ao cargo que é essencialmente honorífico.
Barcelona avança já a partir do ano que vem para uma moeda social local. Talvez seja um modo de apoio ao comércio de proximidade, mas irrita o sistema.
O naturalista e divulgador David Attenborough é mundialmente famoso pelos seus documentários sobre a vida selvagem. É um símbolo do fascínio pela vida na natureza. É sempre útil lembrar o essencial.
Duas primeiras páginas escolhidas no SAPO JORNAIS: esta e esta.
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