No episódio desta semana dos Palavrões da Ciência, falámos de «ovos». Aqui fica um texto sobre o tema (e ainda sobre vacinas). Oiça em: Spotify | Apple Podcasts | Google Podcasts
- A galinha ou o ovo?
A resposta já é conhecida há bastante tempo. Ora, embora saiba que o problema da galinha e do ovo é hoje usado como símbolo de qualquer fenómeno de que não conhecemos a origem, conheço quem ache mesmo que «os cientistas» (esses malandros) ficam atrapalhados perante a pergunta.
Ora, na verdade, o ovo apareceu antes da galinha — muito antes da galinha, aliás. Vários milhões de anos antes da galinha…
Basta pensar em três factos que não parecem levantar dúvidas: as galinhas são aves (dizem); as aves descendem dos dinossauros (não morreram todos); os dinossauros punham ovos (bem, as dinossauras — entenda-se).
Logo, muito antes de o primeiro galináceo cacarejar neste mundo, já os seus avoengos andavam a nascer dos ovos! E desses ovos foram nascendo dinossauros e, com evolução das espécies, começaram a aparecer aves e, enfim, lá chegámos às galinhas.
Assim, dos dinossauros às galinhas houve uma sucessão de bichos, todos a pôr ovos. Mesmo se conseguirmos identificar a primeira galinha com as características que consideramos essenciais a uma galinha, tal bicho terá nascido de outra ave — e, assim, o seu ovo também apareceu primeiro.
A resposta está mais do que dada. Porque se continua a perguntar? Bem, é um lugar-comum. É um símbolo. Uma expressão. Uma espécie de piada.
Mas, como disse, já ouvi quem usasse a pergunta para atacar os cientistas: são tão inteligentes, mas nunca conseguiram responder a uma pergunta tão simples.
E, no entanto, conseguiram. A resposta existe, é clara, não deixa grande margem para dúvidas. Há outras questões bem mais complicadas e que atrapalham, de facto, os cientistas. Esta não é uma delas.
- Das galinhas às vacinas
Porque me lembrei eu do ovo e da galinha e da eterna pergunta que já tem resposta há muito tempo?
Porque andei a pensar nas vacinas. Sim, nas vacinas. E andei a pensar nelas por causa do meu filho mais novo, que levou uma vacina e ficou com febres altas uma semana depois, tal como previsto pela enfermeira que lha deu.
O funcionamento das vacinas é daquelas ideias geniais que não são muito difíceis de compreender. O corpo humano cria defesas quando enfrenta uma doença — essas defesas tornam o corpo imune à doença (se a pessoa sobreviver). Ora, na corrida entre o corpo e a doença, podemos fazer batota e dar informações sobre a doença ao corpo, para que ele crie as defesas antes mesmo de ela aparecer. Como as defesas do corpo não se dão bem com os bancos da escola, a forma de ensiná-las é expô-las a uma versão inócua da tal doença.
Concretamente, o que se faz é introduzir uma versão neutra do micróbio que provoca a doença para que os anticorpos do nosso organismo passem a conhecê-lo.
A ideia é boa — mas, como muitas boas ideias, podia não resultar por este motivo ou outro. E, no entanto, resulta de forma espectacular. O mundo pode ser complicado, mas há um ou outro aspecto em que tem melhorado — e um desses aspectos é mesmo a mortalidade infantil, que tem descido em todo o mundo nas últimas décadas (com um ou outro recuo pontual). Uma das grandes razões é mesmo a vacinação — e isto está mais do que comprovado por números que deixam tanta margem para dúvidas como a resposta à velha pergunta do ovo e da galinha.
Bolas: houve doenças que desapareceram! Outras que estão em vias de desaparecer, incluindo a pólio.
E, no entanto, há quem continue a apontar para as vacinas e a duvidar da sua eficácia ou a ver nelas qualquer coisa de sinistro ou, no melhor dos casos, inútil. E são pessoas, tanto quanto consigo perceber, inteligentes (pelo menos, consta que sabem usar a internet).
- A vacina da vizinha
O que se passa? Por que razão isto acontece? Não sei bem. Parece que há pessoas que encalham nesta questão.
É verdade que custa dar vacinas às crianças. Haver uma desculpa qualquer para evitar esse pequeno sofrimento talvez seja uma tentação demasiado grande para algumas pessoas. Ainda por cima, é uma coisa artificial, fria, a entrar na pele das crianças…
Ou então é a dificuldade em acreditar que há coisas que melhoram neste mundo. Haverá quem ache que as vacinas só podem ser um aspecto negativo do mundo, porque isso de acreditar em coisas boas é, certamente, ingenuidade.
Também parece haver uma tendência irreprimível para acreditar em teorias da conspiração: as vacinas existem porque alguém ganha dinheiro com elas! Só por causa disso! E as informações e dados a que temos acesso são todos manipulados! (As teorias da conspiração têm esta espécie de mecanismo de defesa em que todos os dados contrários são transformados em provas da própria teoria. Se uma pessoa cai neste poço, nunca mais de lá sai.)
Não tenho grandes esperanças de mudar a opinião seja a quem for. Mas proponho só que digamos isto: sim, as vacinas têm os seus perigos. Há febres, reacções alérgicas… Ninguém nega isto, muito menos quem administra as vacinas todos os dias. Só que estamos perante o peso avassalador dos números: as pessoas salvas pelas vacinas são muitas mais do que aquelas que sentem algum tipo de efeito secundário. Claro que as crianças salvas não se notam: ficam simplesmente… vivas. Os efeitos secundários graves são mais visíveis — embora sejam extraordinariamente raros.
É um pouco como os cintos de segurança nos carros: há casos em que provocam ferimentos, mas salvam muitas vidas. E quanto ao argumento de que há quem ganhe dinheiro com as vacinas, também há quem ganhe dinheiro a vender cintos de segurança. Daí a concluir que as vacinas ou os cintos não salvam vidas vai um grande salto.
Há uma grande diferença entre os cintos de segurança e as vacinas: quem não usa cinto de segurança põe-se a si próprio em perigo. Quem não vacina os filhos põe os filhos em perigo — e os filhos dos outros (isto porque uma taxa de vacinação baixa põe em perigo mesmo quem é vacinado).
As vacinas são um dos maiores sucessos da medicina. Devíamos estar preocupados com a difusão dos movimentos antivacinação. Convém explicar, insistir, mostrar… O problema é que é demasiado fácil cair na gritaria: parece tão óbvio que devemos vacinar os nossos filhos que aqueles que não o fazem deixam-nos com os nervos em franja. Depois, os nossos nervos em franja enervam aqueles que não gostam de vacinas, que fazem finca-pé da sua posição. De repente, já não sabemos quem começou a gritar primeiro. É daqueles desafios difíceis de superar. Não sabemos como resolvê-lo.
Mas, enfim, pelo menos sabemos isto: o ovo apareceu antes da galinha — e as vacinas salvam crianças.
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Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. Apresenta, com Cristina Soares, o programa Palavrões da Ciência.
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