Os factos destes dias encaixam em cheio no que Zygmunt Bauman, sábio a dar-nos a entender o que acontece à nossa volta, definiu para o tempo actual como sociedade líquida: uma realidade em que todas as metas mudam a cada momento. Resulta uma sociedade imprevisível, desconcertante, onde o que é passageiro se impõe ao que é estável.
Trump, em toda a campanha eleitoral e nas primeiras semanas da sua presidência, repetiu que a sua América não se meteria no tema da Síria e que a prioridade externa é a de derrotar o inimigo comum, o terrorismo do califado Islâmico. Trump virou costas aos sírios e anunciou-nos uma América isolacionista, a ligar pouco ao resto do mundo.
No tempo de Obama, Trump tinha argumentado contra a hipótese de resposta militar americana a um igualmente chocante bombardeamento químico pelos caças de Assad. Então, Trump recomendou a Obama que guardasse a pólvora. Como interpretar esta mudança abrupta ao lançar fogo Assad que combate o terrorismo do Estado islâmico? Trump impulsivo? Ou um Trump a mudar de perfil, a tentar encaixar na prioridade “America First” (em que tem sofrido revezes) o velho papel de xerife do mundo, uma espécie de “America is back”? Há uma estratégia consistente para promover a paz?
O tempo tem mostrado que Trump tem apurado sentido da oportunidade. O horror global pelo ataque químico na Síria ofereceu-lhe uma ocasião mesmo a calhar. Num momento de popularidade interna em quebra e de alta da impopularidade externa, Trump, com esta cascata de mísseis, conseguiu elogios de opositores democratas nos EUA e de dirigentes europeus que lhe recusavam benevolência. Colocou-se como homem de acção, recuperou a confiança de alguns eleitores desiludidos e deve ter entusiasmado os falcões e o lóbi das guerras ao mostrar que a América continua a usar o bastão.
Com o golpe de força através dos mísseis lançados à distância sobre uma base principal de Assad, Trump, para além da propaganda, também pode estar a enviar mensagens para vários destinatários. Deixou no ar a possibilidade de acção semelhante contra um outro sinistro déspota, o norte coreano Kim, que se supõe beneficiar de tolerância da China, cujo presidente jantou nessa mesma noite com Trump. É plausível que tenha pretendido dizer a Pequim que tem de fazer parar os planos nucleares da Coreia do Norte, ou entram em acção os mísseis americanos.
Também terá passado uma mensagem aos que acusam de demasiada proximidade com Putin, precisamente quando avança nos EUA a investigação sobre o envolvimento suspeito de gente do staff de Trump com o aparelho de Putin no Kremlin. Trump mostrou indirectamente os músculos a Putin, em vésperas de uma cimeira diplomática em Moscovo entre a Rússia e os EUA. Significará que Trump sai do proclamado isolacionismo e adere à negociação diplomática?
Alguma esperança? O que está em causa na Síria não é uma guerra civil. É uma guerra global, jogada por representantes. De um lado, à cabeça, os dos Estados Unidos, da Turquia e da Arábia Saudita. Do outro, os da Rússia e do Irão. Está em causa a hegemonia numa região estratégica no equilíbrio geopolítico global. É uma guerra com muitas guerras dentro e em que não há bons, são todos maus. Sobram as tantas vítimas.
A Nobel da Literatura Svetlana Aleksievic lastimava outro dia que Trump seja uma catástrofe semelhante a Putin. Svetlana lamenta que a Rússia tenha perdido um certo romantismo, ainda que ingénuo, que avançou no tempo de Gorbachov. Hoje há pouco espaço para ilusões.
É de admitir o benefício da dúvida a Trump com este seu golpe de força na Síria. Pode vir a revelar-se um golpe de mestre. À partida, parece mais um bluff para a propaganda. Sendo que a imprevisibilidade é perigosa em tempo de conflitos muito complexos. A frota naval americana a abeirar-se do mar da Coreia levanta inquietações.
Também a ter em conta
Já daqui a 12 dias, 44 milhões de franceses são chamados a votar. A primeira volta das presidenciais vai apurar dois finalistas para a decisão duas semanas depois. O cenário mais provável é de eleição de Macron, com mais de 55% dos votos, na finalíssima com Le Pen. Macron tem alguma coisa de Marcelo, corre sem partido e ocupa o espaço central. Mas, à beira da primeira volta, há quatro candidatos separados por escassos sete pontos percentuais. O esquerdista Mélenchon é a surpresa num ombro a ombro pelo 3º lugar com o antes super-favorito Fillon, da direita. Tudo pode ainda mudar. O sprint final pode trazer surpresas.
Londres vai cair? Excelente reportagem multimédia do The New York Times que nos mostra como como o Brexit pode levar a que Londres deixe de ser capital financeira mundial.
Storm Lake Times: como um jornal local, familiar, com apenas 10 jornalistas faz jornalismo que lhe vale o Pulitzer. O jornal mostrou-se imparável na denúncia da corrupção e no combate pela transparência. Comentário do editor Art Cullen: "Não há razão para que um editorial escrito no Iowa não seja tão bom quanto um escrito em Washington (refere-se ao Post, também no pódio do Pulitzer).
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