1. A 1 de Outubro voto pela última vez em Lisboa, cidade onde nasci e morei grande parte do tempo. Digo última, tanto quanto consigo prever, porque desta feita parto com os livros atrás, forte dissuasor de futuras mudanças, sem falar do resto, essa feira da ladra. Entretanto, sempre que saio à rua para catar ex-caixotes de atoalhados ou fita adesiva do chinês, descubro candidatos autárquicos recém-postados nos passeios. Frequentemente estão aos pares, já consegui decidir qual o mais bonito. Mais difícil é saber no que votar.
Seja como for, isso acontecerá em Lisboa. Não previa mudar de município, menos ainda para que freguesia, impossível alterar a morada de eleitor por antecipação. Este voto será, pois, pelo que já não vou viver todos os dias mas desejo à que será para sempre a minha cidade, a que melhor conheço, e que provavelmente melhor conhecerei nesta vida.
2. “Nesta vida”, claro, é uma expressão sobre a qual não há consenso. Vai muito da pessoa humana, se é monoteísta, animista, budista, com alguma ménage de fés, ou pelo contrário. Mas suspeito que a expressão me surgiu graças à seguinte confluência:
— antes de me dedicar ao encaixotamento eu acabava de vir da Bahia, grande terreiro de outras vidas
— enquanto estava lá recebi notícia da inauguração em Lisboa de uma estátua de Padre António Vieira com indiozinhos
— nascido em 1608 em Lisboa, Vieira morreu em 1697, em Salvador, onde o paradeiro dos seus ossos permanece mistério (é possível andar, porém, entre a Quinta do Tanque, que o abrigou 15 anos, e o Colégio dos Jesuítas, última morada)
— Vieira é um gigante que me interessa pelo passado, pelo presente e pelo futuro
— então, entre vir de Salvador e votar pela última vez em Lisboa, fui ver a estátua.
3. A notícia recebida na Bahia era da Agência Ecclesia. Olhando a imagem de relance, sem ler o texto, achei que aquela estátua fora inaugurada em algum espaço da Igreja Católica. Nem pus a hipótese de estar num ponto central da cidade, e deixei o assunto para conferir ao vivo. Portanto, esta semana, ao googlar antes de ir lá, fiquei parva com três meses de atraso: a estátua está naquele largo histórico a que muitos lisboetas chamam do cauteleiro, ou da Misericórdia, e oficialmente se chama Trindade Coelho.
Desde que foi inaugurada, em Junho, centenas de milhares de pessoas devem ter olhado para ela. Onde agora há toldos chiques passou Herberto Helder muitas tardes, porque uma das tascas onde parava era ali. Sempre que olhava para fora, lá estavam os plátanos, com a Igreja de São Roque ao fundo. Hoje, um pouco à direita, Herberto veria este Vieira. Ainda bem que não viu, ele que tantos poemas ameríndios mudou para português. Devemos-lhe também essa beleza.
4. Cheguei ao largo no crepúsculo. As janelas da Santa Casa da Misericórdia brilhavam como altares, último sol. E lá estava a estátua, lá estava, desfazendo qualquer esperança que eu ainda alimentasse de que talvez não fosse tão má assim.
Mas era pior: aquele braço levantando a cruz vade retro, aquela cruz contra o largo, os plátanos, o quiosque, os espíritos da tasca de Herberto, o par oriental, o trio de jeans justos, o grupo de turistas já sacando do seu telefone à vista do monumento, acumulando-a na nuvem virtual, pelo sim, pelo não, sem mesmo ler o que diz o pedestal, porque se é uma estátua deve ser importante.
Imagino que a cruz levantada pretenda simbolizar as lutas travadas por Vieira: contra a Inquisição, os anti-semitas, os colonos do Brasil que queriam escravizar índios. Mas, neste Verão de 2017, é contra a cidade, contra nós, contra o presente e o futuro que ela de facto se ergue. Como assim uma cruz levantada desta forma agora, numa das principais praças de Lisboa, com indiozinhos a seus pés? A cruz em nome da qual tantos índios morreram antes, durante e depois de Vieira? Morreram porque os espaços concentracionários onde eram mantidos pelos missionários para serem “cristianizados”, salvos do inferno, se tornaram um inferno de doenças: o epidemicídio trazido pelo homem branco que os dizimava aos magotes. Para não falar dos que foram directamente mortos por portadores da cruz mais alucinados, por castigo, ou como exemplo, supostamente a bem dos interesses da Coroa, de que a cruz era um dos braços colonizadores. E os que não morreram foram obrigados a mudar de fé, de língua, de hábitos. Escaparam os “selvagens”, os que resistiam a serem “descidos” para as aldeias missionárias, ou nunca foram achados dentro dos matos.
Pior ainda: os três indiozinhos debaixo dessa cruz. Um, ajoelhado aos pés de Vieira; outro, encostado ao seu manto; o terceiro, com a mão direita dele sobre o ombro. Três figurantes, protegidos pela cruz e pelo padre, paiçu, grande pai. Frutos tenros para a evangelização, murta pronta a ser moldada desde cedo. A metáfora não é minha, é de uma célebre passagem de Vieira sobre como os índios são estátuas de murta que exigem cuidado permanente, como qualquer planta esculpida. Porque, mal um cristão se distrai, zás, um ramo para ali, umas excrescências para acolá, de volta ao selvagem. Enfim, os indiozinhos do século XVII eram bons, mas muito inconstantes, havia que estar sempre a apará-los.
A bem da salvação das almas, muito Vieira os defendeu contra os colonos maus. É que havia os colonos maus que queriam escravizar todos os não-brancos, tanto índios como negros. E depois havia os colonizadores que faziam de polícia menos mau, e só queriam escravizar os negros, porque, enfim, alguém tinha de trabalhar a terra da colónia. Havia um preço a pagar para defender os indiozinhos, e esse preço foram os africanos. Vieira não foi um anti-esclavagista. Foi um anti-esclavagista selectivo.
Lendo-o, encontramos vários exemplos de como um homem brilhante como ele não detectou (ou não quis detectar) inconsistências teológicas em entregar uns para salvar outros.
5. Lendo-o, encontramos vários exemplos de como um homem brilhante como ele não detectou (ou não quis detectar) inconsistências teológicas em entregar uns para salvar outros. De como foi possível fabricar um edifício retórico sustentando, no fundo, que a relevância da alma depende da cor do corpo: “Que vivais de presente escravos e cativos, para que por meio do mesmo cativeiro temporal, consigais muito facilmente a liberdade eterna.” Uns, os negros, tinham de se conformar ao destino, os outros não. 1648: “Porque sem negro não há Pernambuco, e sem Angola não há negros.” 1661: “Os moradores nunca tiveram remédio senão depois que se serviram com escravos de Angola, por serem os índios da terra menos capazes de trabalho e de menos resistência contra as doenças, e que, por estarem perto das suas terras, mais facilmente ou fogem ou os matam as saudades delas.”
E, já no fim da vida, Vieira referiu-se assim aos negros que resistiam no Quilombo dos Palmares: “[Matam] com peçonha, como fazem oculta e secretissimamente uns aos outros”, “perseveram em pecado contínuo e actual de que não podem ser absolvidos, nem receber a graça de Deus”, e se tivessem liberdade “seria a total destruição do Brasil, porque conhecendo os demais negros que por este meio tinham conseguido ficar livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outros tantos palmares, fugindo e passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que não é outro mais que o próprio corpo.”
Só o corpo se cativa, insistiu Vieira, como se assim fosse menos obsceno o cativeiro, porque o corpo não interessa. “De maneira, irmãos pretos, que o cativeiro que padeceis, por mais duro e áspero que seja, ou vos pareça, não é cativeiro total, ou de tudo o que sois, senão meio cativeiro.”
6. Vieira é uma figura lendária, profética, fascinante, protagonista de naufrágios e combates, autor brilhante de centenas de sermões e cartas, lutador bravo contra inquisidores, perseguido e encarcerado por anos. Capaz de não servir preconceitos do seu tempo em vários campos, serviu-os noutros. Homens raros do seu tempo foram anti-esclavagistas de facto, não ele. Deve ser visto no que tem de excepcional mas também de convenção, e contradição.
O problema não está em lhe erguer uma estátua agora. Está na estátua erguida, no que foi dito na inauguração, em quem lhe deu aval. Ao mesmo tempo que esta cidade, ex-capital esclavagista do mundo, até hoje não fez um só tributo aos índios chacinados e a seis milhões de africanos traficados no Atlântico pelo império português.
A cruz e os indiozinhos aos pés de Vieira são, por tudo isso, um insulto ao presente e ao futuro. Há meio século, seria possível erguer esta estátua sem muita contestação. Hoje não. Não com tudo o que cada vez mais sabemos. Não se trata de julgar Vieira à luz de 2017. Trata-se de em 2017 não ser possível perpetuar o que o Estado Novo perpetuou. O centro histórico de Lisboa não é o Portugal dos Pequenitos. Os indiozinhos não são bonecos. Tiveram filhos, que tiveram filhos, que tiveram filhos, gente de carne e osso, viva agora. Não podem ser dispostos assim em 2017.
7. Na inauguração, o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, declarou à Agência Ecclesia que “pessoas que passam neste lugar central da cidade onde [Vieira] viveu e pregou, lembrem e aprendam que há figuras que não passam porque a sua mensagem é tão ou mais actual do que quando foi dita”. O responsável pela Companhia de Jesus em Portugal, padre Frazão Correia declarou que Vieira inspira a “ler o tempo presente” e a descobrir “como é que o Evangelho se encarna no compromisso social”.
Em Portugal, é comum usar o passado na lapela quando é bom. Quando não é bom, não se discute: o que lá vai, lá vai, era assim, etc. Cara Igreja Católica: e homenagear os ameríndios mortos e os africanos traficados com a colaboração da igreja?
8. Mas não se trata apenas da Igreja, é o Estado: o que Lisboa diz ao presente e ao futuro com esta estátua. Fernando Medina, presidente da câmara e candidato à reeleição, deu-lhe o seu aval. Na inauguração falou na “justiça feita” a “uma das maiores personalidades do pensamento” que “não tinha a devida expressão e reconhecimento”.
Não é com esta estátua que se faz justiça a Vieira. De certa forma, ela é a cruz de Vieira. Há que reconhecer o erro e tirá-la dali. O meu último voto em Lisboa seria por isso pelos tributos que faltam a milhões de pessoas. Pelo que isso implica para a nossa vida conjunta, e a de quem virá.
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