O problema não é só da Internet: olhamos para as prateleiras das livrarias e encontramos maus livros. Na televisão, muito do que se vê não presta. Na rádio, só ouvimos música má. Está bem que poucos concordam com aquilo que é bom e aquilo que é mau — mas quase todos se declaram francamente desesperados…
A lei da porcaria universal
Ora, deixem-me apresentar a Lei de Sturgeon: 90% de tudo o que se faz é lixo. Isto vale para textos, livros, músicas, etc. Encontrei esta lei, pela primeira vez, num livro de Daniel Dennett chamado, no original inglês, Intuition Pumps And Other Tools for Thinking (um livro que ajuda a pensar melhor e vale muito a pena ler).
Foi nesse livro que encontrei a tal lei, mas esta foi inventada por Theodore Sturgeon, um escritor de ficção científica que defendia com este conceito o seu género de eleição: é verdade que 90% dos livros de ficção científica não prestam. Mas há sempre uns 10% que são muito bons — e, para dizer a verdade, também nos outros géneros 90% do que se vende é lixo. Os defensores da «boa literatura» (que torciam o nariz à ficção científica) limitavam-se a cair num erro clássico: comparavam os 10% de boa literatura doutros géneros com alguns maus exemplos de ficção científica. Assim, é fácil deitar abaixo um género inteiro.
A percentagem em si será exagerada? Se o leitor quiser ser mais optimista, esteja à vontade. O certo é que a realidade pende para o lado do mau… Usemos a percentagem que quisermos, esta lei ajuda-nos a pôr as ideias no lugar.
Repare o leitor: a Lei de Sturgeon aplica-se a tudo, mesmo àquilo que nós próprios fazemos. Ou seja, quem escreve ou quem faz música fará muito mais coisas más do que coisas boas.
O problema é que não podemos decidir «hoje vou fazer coisas boas». A coisa não funciona assim. Só depois de fazer muita porcaria, conseguimos tirar a ferros de dentro do nosso talento (seja ele muito ou pouco) alguma coisita relativamente boa. Os 10% aparecem lá para o fim — ou, talvez, espalhados em tudo o que fazemos de maneira mais ou menos aleatória.
Da mesma forma, dentro duma qualquer arte ou actividade, 90% do que se faz é mau. Sim, podemos ler muitos artigos de Sociologia e encontrar pouca coisa boa; o mesmo acontece na Física, na Literatura, etc. e tal. Dos livros publicados, só uns poucos valem a pena — mas eles existem; o difícil é encontrá-los.
O passado é doce, o presente dói
A Lei de Sturgeon tem uma consequência surpreendente: só com a quantidade chegamos à qualidade. Não conseguimos evitar os 90% de porcaria. Os 10% só aparecem no meio do oceano de tentativas frustradas…
Oiço, por vezes, quem afirme que «hoje em dia» (expressão perigosa…) todos apostam na quantidade, esquecendo a qualidade.
Ora, é fácil olhar para o passado e ver um tempo cheio de coisas boas, bem longe da enxurrada de coisas más de hoje em dia. É um engano. Do passado, lembramo-nos do que é bom. É normal: as más músicas e os maus livros não deixam marcas. Além disso, o tempo é um filtro, como sabemos. Assim, o próprio filtro encarrega-se de nos esconder tudo o que de mau se fazia.
No fundo, quem idealiza o passado faz o mesmo que os críticos da ficção científica que Sturgeon atacava: pegam no que era bom do passado e comparam com o que é mau hoje em dia.
Admito que muita da porcaria que se escrevia ou compunha ficava na gaveta. Hoje, é mais fácil que saia à luz do dia. Mas no meio da enxurrada, há muita coisa boa. Só temos de a procurar.
Vemos isto em tantos sítios: nas escolas (sim, os bons alunos continuam a existir, só que há muito mais alunos e muito mais variedade do que «antigamente»; e, diga-se, até os maus alunos merecem ir à escola e aprender, por mais desesperados que fiquem aqueles que preferiam ver as escolas como depósitos de pequenos génios); nos jornais (há tanta coisa má, claro, mas os textos bons não desapareceram); nas cidades (quantas ruas cinzentas e tristes têm de existir para encontramos uma vista que nos anime?); nas amizades (quantos falsos amigos temos de ter para encontrar aquele que fica ao nosso lado aconteça o que acontecer?); nas ideias (quantas tentativas frustradas não são necessárias até encontrarmos aquela boa ideia que nos resolve o problema?); na evolução (quantos organismos morrem para que uns poucos se reproduzam?); num pequeno texto como este (quantas frases enormes tem o leitor de aturar para chegar à pequena pérola que vale a pena — se é que a pérola está lá?).
Todos podemos ser bons (mas só às vezes)
Claro que há quem escreva muito melhor do que os outros; há quem cante bem e quem cante mal; há quem seja um realizador de génio e quem não passe dum aprendiz. Mas, se tentar muitas vezes, até um mau escritor conseguirá arrancar das suas mãos umas quantas coisas boas, de vez em quando. Quase tudo é mau, mas a tal Lei de Sturgeon até é bastante optimista, se virmos bem.
A lição é clara: vale a pena procurar o que é bom. O mundo sempre teve muito mais coisas más do que boas, mas esse facto da vida é inevitável. O esforço da procura vale a pena pelos momentos de prazer que os bons livros, a boa música, os bons filmes e, em geral, a boa arte nos oferecem, de vez em quando.
Feliz Ano Novo!
Marco Neves | Tradutor e professor. Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa e A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.
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