«Quantos dias já houve?»

O meu filho mais velho tem uma dificuldade curiosa: apesar de já falar sobre tudo e mais alguma coisa, ainda se confunde com a diferença entre o «ontem» e o «amanhã» — e não é fácil de explicar, se virmos bem.

Enfim, eu e a Zélia lá dissemos que, ontem, aconteceram coisas — e amanhã vão acontecer outras coisas. Os tempos verbais já ele os sabe bem: agora o ontem e o amanhã...

Ele fez uma cara de concentração, tentando decorar. Depois, fez uma pergunta complicada:

— Quantos dias já houve?

A Zélia e eu ficámos calados, a tentar perceber a pergunta.

— Já houve? Desde quando?

— Desde sempre!

Ficámos a olhar para ele... Que raio de pergunta.

— Bem, desde o princípio do universo parece que já passaram 14 000 milhões de anos.

Ele fez cara de admiração com o número.

— É mais do que 100…

— Sim, é mais do que 100.

— Foi então que apareceram os dinossauros?

— Não, ainda demorou um pouco — e pronto, lá tivemos de contar em 90 segundos a história toda do universo desde o início. Houve uma grande explosão, surgiram as primeiras estrelas, as estrelas cresceram e explodiram, do pó dessas primeiras estrelas surgiram novas estrelas e, à volta de algumas delas, esse pó das primeiras estrelas transformou-se em planetas, uma dessas estrelas chamava-se Sol, à volta do sol apareceram planetas (e ele lá começa a dizer o nome dos planetas todo contente e a lengalenga continua), um dos planetas era a Terra, que era um planeta muito quente e cheio de vulcões, até ao dia em que arrefeceu e, no fundo do oceano, apareceu um primeiro micróbio, muito pequenino, ainda não se sabe bem como, e este micróbio começou a dividir-se noutros micróbios, cada vez maiores, destes micróbios surgiram as plantas e os primeiros animais (tive de, enfim, simplificar um pouco as coisas) até que, muito tempo depois, aparecem os dinossauros…

— Ah, e depois morreram todos numa explosão!

— Bem, todos não: alguns sobreviveram e são os avós dos pássaros…

— E nós?

— Na altura dos dinossauros também havia uns pequenos mamíferos, que são os nossos avós muito distantes... E avós dos cães, dos gatos, dos golfinhos, dos macacos…

O exame continuava, porque ele não se deu por satisfeito:

— E onde viviam as primeiras pessoas?

— Viviam em grutas, na floresta, depois em casas de pedra…

— Mostra-me!

Enfim, lá peguei no telemóvel, que sempre serve para alguma coisa, e mostrei-lhe fotos de castros (deu-me para aí). Depois, lembrei-me de lhe mostrar uma das mais curiosas habituações do mundo: os yurts da Mongólia.

— Parecem iglus!

Ainda tive de tentar perceber como é que as pessoas não morrem de frio dentro dos iglus (as perguntas que ele me faz!), mas o cérebro dele lá enveredou por outras curiosidades deste mundo, porque me perguntou…

«Qual é a língua dos esquimós?»

Ah! Por fim! Uma pergunta que tem a ver com aquilo que faço no dia-a-dia.

— Sabes, pai? Sabes falar esquimó?

Sim, trabalho com línguas o dia todo e ele sabe disso. Mas, enfim, um tradutor sabe, no máximo, uma mão-cheia de línguas — sobram as outras 5000 e tal. A minha mão-quase-cheia não inclui nenhuma das línguas dos esquimós.

Aventurei-me de novo no telemóvel e, perante a alegria dele, lá começámos a contar na língua dos Inuit do Alasca: (1) atausiq, (2) malġuk, (3) piŋasut, (4) sisamat, (5) tallimat, (6), itchaksrat, (7) tallimat malġuk, (8) tallimat piŋasut, (9) quliŋuġutaiḷaq, (10) Qulit, (11) qulit atausiq, (12) qulit malġuk, (13) qulit piŋasut, (14) akimiaġutaiḷaq, (15) Akimiaq, (16) akimiaq atausiq, (17) akimiaq malġuk, (18) akimiaq piŋasut, (19) iñuiññaŋŋutaiḷaq, (20) iñuiññaq.

Uma pergunta que não é como as cerejas

Ele ficou felicíssimo por ouvir os números nessa estranha língua em que o 7 e o 8 têm uma qualquer relação especial com o 2 e o 3 (entre outras ligações interessantes entre os números). Aprendeu algum dos números? Duvido. Mas estávamos felizes a conversar.

As conversas são como as cerejas. Para onde iria agora a conversa? A Zélia foi tratar de qualquer coisa e eu fiquei sozinho, julgando que nada iria correr mal: afinal, estávamos a falar de línguas!

— Ó pai, há uma coisa que ainda não percebi bem...

Sorri. Para onde iria agora apontar a cabeça do miúdo? Do número de dias do universo, tínhamos chegado à língua dos esquimós. Será que iríamos falar de neve? Dos números em chinês? Dos dinossauros?

Não. A pergunta que lhe apareceu na cabeça depois de aprendermos a contar na língua dos esquimós foi esta (e garanto que respondi depois de muito pestanejar):

— Como é que os bebés saem da barriga das mães?


Marco Neves | Tradutor e professor. Autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.