Esta quinta-feira, o Wall Street Journal informou que Robert Mueller, o Procurador Especial nomeou um Grande Júri para prosseguir com as investigações à interferência da Federação Russa nas eleições presidenciais de 2016. A notícia é importante e o ato sério; no entanto, dadas as diferenças de forma e estrutura entre o sistema judicial norte-americano e o nosso, será interessante esclarecer o que está em jogo.
Os antecedentes são conhecidos: ainda durante a campanha eleitoral para a presidência americana surgiram indícios de que os russos estariam a interferir no processo. O caso mais conhecido foi a publicação de emails confidenciais da Comissão Eleitoral do Partido Democrata pelo site Wikileaks, emails esses que teriam sido obtidos indevidamente pelos serviços russos. Simultaneamente, a comunicação social começou a investigar contactos entre pessoas próximas de Donald Trump e elementos da Comissão Eleitoral do Partido Republicano, nomeadamente o seu diretor, Paul Manafort, com o embaixador russo, Sergey Kislyak.
A escolha do general Michael Flynn para Assessor de Segurança Nacional levou à primeira baixa séria no executivo de Trump: provou-se que Flynn tinha recebido (e não declarado) dinheiro dos russos. Posteriormente também se soube que o general tinha ligações com o governo turco.
As suspeitas sobre contactos impróprios durante a campanha eleitoral levaram a que o director do FBI, James Comey, abrisse um inquérito. Desde o início que Trump e a sua entourage afirmaram que se tratava de uma “caça às bruxas” e uma “invenção” da comunicação social.
Já depois do presidente eleito, prosseguiram as revelações da comunicação social sobre o possível “conluio” entre elementos ligados ao presidente e agentes russos, revelações essas obtidas tanto através de investigações dos media, como de fugas de informação (“leaks”) vindas da Casa Branca e da “comunidade da informação” – o conjunto de agências norte-americanas que lidam com contra-espionagem.
Trump, queixando-se constantemente das fugas de informação, mandou o seu ministro da Justiça, Jeff Sessions, investigar e descobrir os culpados. Sessions, um senador republicano histórico, completamente apoiado e protegido pelo seu partido, já tinha tomado uma atitude pouco clara, ao escusar-se a participar nas investigações sobre o “conluio”, alegando que, como participante na Comissão Eleitoral de Trump, era parte interessada.
Numa conversa a sós com o diretor do FBI – que não deveria ter acontecido sem a presença do ministro da Justiça, que tutela o FBI – Trump pediu “fidelidade” a Comey. Comey, segundo o seu testemunho, não desmentido por Trump, terá respondido que só poderia garantir “imparcialidade”. O seu destino estava traçado. Trump mandou Sessions despedi-lo e, como este se recusou, passou a ordem para o secretário de Estado da Justiça, Rod Rosenstein. Mas logo a seguir não resistiu a tweetar que tinha sido uma decisão pessoal sua.
A Comissão de Informação do Senado, bipartidária, que está a investigar a interferência dos russos nas eleições, imediatamente chamou Comey para ser ouvido. O depoimento, público, não deixou dúvidas de que o director do FBI tinha sido demitido por se recusar a encerrar a investigação.
Perante o escândalo, tanto no público como entre os parlamentares republicanos (para não falar nos democratas), Jeff Sessions propôs a nomeação de um Procurador Especial independente. A Comissão aceitou a escolha de Robert Mueller, um ex-director do FBI com reputação de imparcialidade e idoneidade.
Nomeado a 17 de Maio, Mueller juntou uma equipa que se calcula que tenha duas dúzias de advogados e dezenas de agentes do FBI. Embora tanto ele como os seus funcionários não tenham feito comentários públicos, sabe-se que a investigação seguiu duas linhas de investigação. Uma, seria o tal conluio – pessoas próximas de Trump, como o seu filho, Donald Jr. e o genro, Jared Kushner, participaram em reuniões com representantes russos com o fim expresso de prejudicar Hilary Clinton. A lista não pára de crescer, assim como os aspectos cada vez mais suspeitos. A outra linha de investigação seria sobre os negócios de Trump, família e associados com os russos. Os investigadores recuaram pelo menos até 2013, ano em que Trump organizou o Concurso Miss Mundo em Moscovo.
Queixando-se constantemente da investigação, Donald Trump não consegue, ao mesmo tempo, parar de prejudicar a si próprio e aos seus, com revelações comprometedoras. Por exemplo, recentemente afirmou que o email em que o seu filho disse que se reunira com uma representante do Governo russo para discutir questões não relacionadas com a eleição, tinha sido escrito por ele próprio. Num sistema jurídico fortemente baseado na credibilidade do que a pessoa afirma, ou seja, que está a dizer a verdade até prova em contrário, mentir é um crime muito grave. Vale lembrar que o impedimento (“impeachment”) de Clinton não se deveu a ter relações sexuais com Monica Lewinsky, mas a ter mentido sobre elas.
Nas últimas semanas Trump tem sistematicamente atacado Jeff Sessions por não travar a investigação de Mueller. Contudo, o Presidente está perante um gambito difícil de desfazer: se demite Sessions, perde completamente o apoio do Partido Republicano; se demite Mueller, é quase certo que o Parlamento (Senado e Câmara dos Representantes) iniciará um processo de impedimento.
Agora Mueller convocou um Grande Júri. Não se trata de um júri de julgamento, ou seja, não estamos perante um processo judicial. Este júri, constituído por vinte cidadãos escolhidos aleatoriamente, tem apenas a função de verificar e validar as provas reunidas pelo Procurador Especial, podendo também requerer novas provas – isto é, pode citar qualquer pessoa para depor e pedir documentos. Os trabalhos são secretos; os membros fazem um juramento de confidencialidade e não podem emitir opiniões em público. No final, o Grande Júri decidirá apenas se há material para indiciar alguém, mas há casos em que grandes júris decidiram o contrário.
Esta decisão de Mueller torna praticamente impossível a Trump demiti-lo ou mandar alguém fazê-lo. Também não implica o presidente em alguma culpa, mas dá fortes indícios de que a equipa de Mueller tem provas concretas contra pessoas muito próximas dele, inclusive familiares.
Não é xeque mate a Donald Trump, mas é um xeque. As próximas movimentações são cruciais.
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