Marcelo deixou avisos ao Governo, a TAP tratou de justificá-los

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

No dia em que se celebraram 112 anos da implantação da República, Marcelo Rebelo de Sousa voltou atrás um século no tempo — até ao terrível período pós-guerra e pós-Gripe Espanhola — para deixar avisos ao presente.

Porque se os tempos são melhores que em 1922, nem por isso são fáceis, e a combinação da pandemia com as dificuldades económicas atuais produz um cocktail perigoso.

Num salto para o mundo e o Portugal de 2022, Marcelo traça o contexto: "Acabámos de viver uma pandemia, ainda vivemos uma guerra e assistimos a novos apelos, já não a ditaduras, mas a autoritarismos iliberais, ou seja, não democráticos".

Se Portugal vive hoje numa "República democrática" e com “mais liberdades políticas económicas e sociais, mais pluralismo, mais meios de informação e de controlo dos poderes públicos e privados", nem por isso livra-se dos perigos.

“Não é suficiente termos democracia na Constituição e nas leis, importa ter democracia nos factos, com cada vez mais qualidade, melhores e mais atempadas leis, justiça, administração pública, controlo de abusos e omissões dos poderes, prevenção e combate à corrupção das pessoas e instituições", avisou. Sublinhou de seguida que “a democracia não é só política, é económica, social e cultural, e que sofre com a pobreza, a desigualdade, a injustiça, a intolerância, com a xenofobia, o racismo e a exclusão do diferente. Sabemos como erros, omissões, incompetências e ineficácias na democracia a fragilizam e a matam”.

O discurso de Marcelo quase serviu de preâmbulo para a notícia que marcaria o dia, proporcionada por uma empresa que a cada dia que passa mais parece uma pedra no sapato do Governo, a TAP.

O que aconteceu?

A companhia aérea vai renovar a sua frota de automóveis, aponta a TVI/CNN Portugal.

Qual é o problema?

É que os Peugeot dos seus administradores e gestores vão ser substituídos por BMW, que terão um valor de mercado a partir dos 52 e dos 65 mil euros. Ao todo são perto de 50 viaturas.

Qual é a justificação para esta escolha?

A companhia fez saber que a maioria da sua frota é detida em regime de ‘renting’ operacional desde 2017 e atinge o máximo de prorrogações possíveis em contrato no próximo ano. Ou seja, era necessário renovar a frota, independentemente da escolha dos novos veículos.

“Com a opção que fizemos, estamos a poupar anualmente até 630 mil euros, se tivéssemos mantido os carros que temos hoje”, disse a TAP num comunicado interno, ao qual a agência Lusa teve acesso.

Mas porquê BMWs?

“Não havendo outra opção senão celebrar novos contratos, optou-se por viaturas híbridas plug-in, em vez do atual diesel, por motivos ambientais, mas, também pelos benefícios fiscais associados a estas viaturas, menos poluentes”, justificou a comissão executiva da TAP.

Ao todo, a empresa defende que a escolha dos BMW permite “uma poupança superior a 20% do valor mensal da renda e tributação, relativamente a novos contratos de renting para viaturas com características semelhantes às atuais (gasóleo), estando em linha com o plano de reestruturação uma vez que representa o menor custo possível em sede de concurso no mercado”.

“A proposta escolhida foi a que apresentou o preço mais baixo, com uma renda mensal de 500 euros. Como referência, as outras propostas apresentadas à TAP com valor mais competitivo contemplavam rendas mensais de 750 euros”, pode ler-se.

A justificação parece fazer sentido. Qual é então o problema?

É uma questão de perceção: a notícia da compra de carros de luxo, não obstante as suas virtudes, caiu mal, tendo em conta os problemas financeiros que flagelam há muito a TAP.

Foi o próprio Presidente da República que fez essa observação, já depois do seu discurso. “Quando se está num período de dificuldade deve fazer-se um esforço para dar o exemplo de contenção”, afirmou, considerando que é preciso “ter algum bom senso” quando o país e o mundo atravessam um “período difícil”.

A reação de Marcelo foi a única?

Não, houve manifestações de repúdio de extremos políticos opostos, ambas exigindo ao Governo que atue.

Da parte do Bloco de Esquerda, o seu líder parlamentar, Pedro Filipe Soares, considerou “um insulto o que a administração da TAP fez ao país”, acreditando que “da parte do Governo, que é quem representa o Estado junto da TAP, porque é o representante do acionista, deveria merecer um enorme reparo”.

“Quando tivemos milhares de milhões de euros de dinheiros públicos que foram usados para salvar a TAP por ser estratégica para o país, e nós consideramos que é estratégica para o país, não faz sentido que o dinheiro público seja usado com decisões que são incompreensíveis como essa”, defendeu o deputado.

Já o Chega foi mais longe, prometendo o seu presidente, André Ventura, que vai questionar o Ministério das Infraestruturas sobre a compra dos carros de luxo. “Num momento de crise como o que estamos a viver, vamos questionar qual é a justificação para haver despesas deste tipo numa companhia aérea que os portugueses têm vindo a salvar com os seus impostos”, afirmou.

“Através do parlamento, da figura da questão parlamentar, preparámos uma questão para o Ministério das Infraestruturas para perceber como tamanha imoralidade é possível num tempo como estamos a viver”, frisou.

E da parte dos trabalhadores da TAP, houve alguma reação?

Sim, a mais contundente, por sinal. O Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil sugeriu hoje à TAP a mesma lógica de “gastar mais, para poupar”, com que a companhia se defendeu sobre a renovação da frota automóvel corporativa, para a reposição das condições laborais dos trabalhadores.

“Enquanto uns têm cortes brutais nos seus vencimentos, quando ainda há processos de despedimento em curso e quando se condiciona a qualidade de vida a outros, em simultâneo, renova-se o parque automóvel dos cargos de direção”, defendendo que “para a existência de paz social, é imperativa a presença de justiça social”, atirou o sindicato em comunicado.

Neste contexto, o SPAC considera que a “nova atitude” perante “os gastos” terá de abranger os pilotos na reposição das condições laborais. “Se tal não acontecer ficaremos realmente surpreendidos e seremos obrigados a acreditar na hipótese de que a administração da TAP ou não quer aplicar o excedente financeiro na justa reposição das condições laborais dos trabalhadores, ou não existe excedente financeiro e esta renovação da frota foi paga com os cortes nos salários dos trabalhadores”, é acrescentado.

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