Um fino aroma de ervas. Doce chá fresco enche o ar. No prato, flores e fruta. Sob a Nau Catrineta do Almada, na Gare Marítima de Alcântara, em Lisboa, os vapores tremem saindo da comida quente. Cheira a marisco e também a carne. Sente-se o ferver dos molhos. Ouve-se o crescer da fome, mesmo ao lado da vontade de comer. Lá fora, atrás dos contentores que cortam o sol que rasga as janelas, o Tejo.
Pouco português por aí haverá que, diante de uma talhada de pão onde descansa um borrego, não sinta dentro uma urgência de cravar nele um garfo. Diz a moda: quem não é para comer, não é para trabalhar. E se para o trabalho é preciso forro, como para a vida, coma-se, então.
Todavia, cuidado com o prato. Cuidado com o impacto do que está dentro dele. O impacto não apenas no corpo de quem come, mas também nos ecossistemas ligados a esse arrozinho quente, a essa vitela tenra; a esse bacalhau escorreito e a essa batata doce.
Uma nova geração de cozinheiros internacionais pôs-se a olhar para os efeitos do que têm nos restaurantes. Chamam-lhe ativismo gastronómico e é, em suma, uma corrente de pensamento para descobrir formas mais sustentáveis de garantir o prazer, sem destruir a possibilidade de o prolongar gerações fora.
Entrada: Fazer as pazes com o ambiente
“O que provavelmente […] estamos a determinar todos é a auto-extinção”, atira Alfredo Sendim, da Herdade do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo. Resolver o problema da sustentabilidade do que comemos, para além de necessitar de um esforço coletivo, aponta também para a agro-ecologia, “uma prática que já muitos povos tentaram”, diz o agricultor.
E da agro-ecologia nasce uma comunidade de produtores e consumidores. É isso que propõe a “comunidade de usuários da Herdade do Freixo do Meio”: sentar à mesma mesa quem cria e produz e quem vende e consome. Para que todos tenham consciência do processo, todos partilhem os riscos — e também os ganhos.
Aos clientes chama co-produtores, precisamente por fazerem parte de uma cadeia de responsabilidades. Quem faz compromete-se a seguir determinados processos, quem compra compromete-se a usar os produtos durante seis meses.
Esta fórmula torna os produtos mais caros, mas também mais transparentes, defende Sendim. Os co-produtores sabem os custos de cada etapa; sabem quanto ganham os trabalhadores e até quanto ganha Alfredo. E porque isto é quase uma reinvenção da cooperativa, os co-produtores acabam, por ser co-proprietários da Herdade, podendo usufruir dela também, explica Sendim.
Nacionalizada no 25 de Abril, a propriedade voltou para as mãos da família do atual proprietário já nos anos 1990. Foi nessa altura que Alfredo Sendim, para recuperar os terrenos de produção intensiva, se virou para a agro-ecologia como forma de repor a saúde da terra.
Se, como diz, o homem entrou em conflito com o ambiente, há que agitar bandeiras brancas e procurar a reconciliação com a natureza. Se, pelo caminho, a saúde do homem ainda sair beneficiada, melhor.
Rita Sá, que falou em nome da associação ambientalista WWF, perguntava "vamos mesmo comer o peixe todo até acabar?". A pergunta encerra mais uma razão para olhar para o problema. Se não chegarem as consequências ambientais e humanas, podemos sempre ver a questão pelo prisma económico: se não há peixe, não há arroz de tamboril, bacalhau confitado ou sardinha no pão. E sem comida para vender, não há vendas.
Primeiro prato: Respeitar a origem
A grande estrela do evento foi o chef brasileiro Alex Atala. Com duas estrelas Michelin no D.O.M., em São Paulo, Atala esteve em Lisboa para dizer que “comer inseto pode ser nojento. Tão nojento quanto ir ao supermercado e dar um iogurte de morango para o seu filho — cujo corante é feito de inseto. O pior cego é o que não quer ver”.
Insetos. Alex Atala é conhecido por usar formigas da Amazónia nalguns pratos. É também um dos mais famosos ativistas gastronómicos. Para ele, cozinhar é respeitar. “Atrás de cada prato de comida existe uma morte.”
A cozinhar há 31 anos (embora diga que, por causa das horas que já passou na cozinha, a carreira chegue ao mesmo meio século que tem de vida), assim que pisa o palco, transforma-se. Vestindo a jaleca, passa a ser super-homem. Super-homem que defende o respeito acima de todas as coisas.
“Não acredito que a cozinha seja ensinar as pessoas a cozinhar. Mas ensinar as pessoas a respeitarem, como as nossas avós”, afirma. E por isso, “a cozinha do futuro tem uma regra muito simples: não compre, não cozinhe, não consuma tudo o que não esteja de acordo com a sua ética”.
E aplicar a ética é um processo que pode ser feito de muitas formas. Também do Brasil chega Alexandra Forbes, jornalista — “assim como os chefes, também os jornalistas têm algo a cumprir” —, que vem apresentar o Reffetorio Gastromotiva e lançar um desafio aos cozinheiros portugueses.
O Reffetorio é uma ideia saída de Milão, Itália. Chegou à Lapa, no Rio de Janeiro, pelos Jogos Olímpicos de 2016. Esta ONG não só ajuda a alimentar quem precisa, como forma pessoas na sua cozinha. Tudo isto feito com comida de excedentes alimentares que de outra forma seriam deitados no lixo.
“Não estamos só a dar comida, estamos a dar amor”, diz Alexandra.
Só no ano passado foram servidas 20.610 refeições, ou seja, 229 jantares para 90 pessoas, servidos por voluntários que tanto podem ser atores como banqueiros, jornalistas ou estudantes. Desta forma, evitaram que cinco toneladas de comida por mês chegassem ao lixo
Ao todo são já quatro os refeitórios — Milão, Rio, Londres e Paris. No Rio, porém, há uma coisa diferente de todos os outros: um curso profissionalizante. Em 2017, formaram 17 jovens cozinheiros.
Agora, o desafio é replicar o modelo em Portugal, pede Alexandra aos chefes e empresários do setor hoteleiro e de distribuição presentes na conferência da passada segunda-feira, 23 de abril, em Lisboa.
Segundo prato: Acabar com os resíduos
No final da noite, uma pilha de garrafas. Montanha de vidro e plástico, vinho semi-bebido e água semi-escorrida, acumulada nas traseiras do restaurante. Uma noite, em 2014, depois de uma sala cheia de gente a provar a comida bastante picante do restaurante, Bo e Dylan Jones encontraram-se com uma montanha de garrafas de água vazias.
Tinha de haver uma alternativa melhor. Decidiram, então, que a até 2018 passariam a ser um restaurante sem emissões de carbono. A ambiciosa missão não foi concretizada, mas o caminho continua a ser feito.
Começaram por comprar créditos de carbono, o que reduz a pegada de carbono do estabelecimento, mas não é a solução ideal. Por isso, começaram a reduzir noutras áreas: cortaram nas garrafas de plástico, usando água filtrada em copos de vidro. Palhinhas de plástico? Não entram neste restaurante. São usadas alternativas naturais, de uma planta parecida ao bamboo.
Para além de evitar a produção de resíduos, o BO.LAN procurou formas de reutilizar o que sobra da produção de cada jantar. Usar as cascas de fruta para fazer detergente ou fertilizante. Ou usar restos de coco como um probiótico para o gado suíno. Até o óleo das frituras passa a ser barra de sabão usada na cozinha para lavar as mãos dos cozinheiros.
Os desafios de implementar uma filosofia destas são vários. Desde os empregados que têm de aprender todas as novas invenções que os chefes trazem para o restaurante; o tempo gasto a reutilizar os resíduos; os ratos que são atraídos pelo coco que devia ser para os porcos; os cheiros de toda a compostagem; e a falta de espaço são alguns desses desafios. Mas o principal talvez seja a mudança mental e cultural a que obriga uma transformação destas.
Em Lisboa, depois de uma manhã a falar do peso trabalho dos cozinheiros para uma cadeia mais sustentável, o almoço foi servido em pratos descartáveis. Entre copos de morangos numa reinvenção de ‘crumble’, a chef Bo diz ao SAPO24 que a culpa não pode cair só sobre os ombros da organização. “Quantas pessoas trouxeram louça de casa?”, pergunta a cozinheira tailandesa enquanto bebe água de um cantil cor-de-rosa.
Reduzir passa por mudar mentalidades e abordagens. Pensar de antemão aquilo que vamos fazer, antes de apontar o dedo a tudo menos aos outros. “Ainda podemos decidir o que fazer com estas coisas. Estes copos são de bom plástico, podem ser reutilizados”.
Do outro lado da mesa, Dylan diz que a palestra funcionou. Ao perguntar se aquilo faz sentido, ao ter essa discussão, nota-se que há uma consciência a mudar, afirma.
O SAPO24, porém, não foi o único a ir ter com o casal para perguntar o que achavam da loiça descartável num simpósio sobre ativismo gastronómico. Tanto assim foi que, antes da segunda parte, Bo pediu novamente o microfone e desafiou os presentes a fazer alguma ação que compense os resíduos produzidos naquele almoço.
Paulo Barata, da organização, não ficou agradado com as dúvidas dos presentes. “Preferia que tivessem feito essas perguntas a mim”, diz no palco, justificando a loiça de plástico com o orçamento apertado do evento.
Quem não tem dúvidas da origem dos resíduos é Douglas McMaster, do Silo, em Brighton, Inglaterra. O cozinheiro britânico diz que o “desperdício é uma falha da imaginação”, porque há sempre um destino a dar ao que sobra.
A ideia do Silo, um restaurante sem caixotes do lixo, nasceu em Sidney, na Austrália. O processo começa pela eliminação das embalagens, trabalhando diretamente com os produtores para trazerem os produtos em recipientes reutilizáveis ou, pelo menos, biodegradáveis.
Douglas, que diz suspeitar ser ligeiramente autista, gosta de olhar para um problema de todos os ângulos possíveis. Quando se depara com um desafio, anda ali à volta dele até encontrar soluções. E o Silo, na costa sul do Reino Unido é um compêndio de inovações e disrupções saídas da cabeça dele.
Num velho armazém, o mobiliário do restaurante tanto podem ser secretárias de uma escola como cadeiras feitas de madeira de embalagens industriais. E mesmo as almofadas dessas cadeiras, feitas de madeira reaproveitada, são calças de ganga velhas enchidas com collants.
Os pratos são feitos com sacos de plástico reciclados, a ementa é projetada na parede para dispensar papel. E tudo o resto é processado através da compostagem, fermentação ou demais processos que eliminam os resíduos do restaurante, transformando-os noutra coisa, noutra utilidade qualquer.
Um estabelecimento destes obriga a sair de um ciclo industrial, a repensar como se fazem as coisas e a vergar os regulamentos. Para poder servir leite “puro”, isto é, sem aditivos, conservantes ou demais fármacos legalmente previstos, os funcionários têm de andar com um aviso nas costas a chamar a atenção para os eventuais perigos de beber leite diretamente da fonte. Que perigos? “Saúde e bem-estar”, explica Douglas.
Sobremesa: Cozinhas portuguesas (e clientes) ainda têm um longo caminho pela frente
Juntos são uma constelação. Com restaurantes distinguidos com as míticas estrelas do guia da marca de pneus francesa Michelin, Henrique Sá Pessoa e José Avillez são talvez os mais proeminentes rostos do renascimento por que a cozinha portuguesa tem passado.
Hoje, toda uma nova geração se lhes juntou, mas, para os chefes, o caminho rumo a um verdadeiro ativismo gastronómico nas cozinhas dos restaurantes portugueses ainda é longo. E depende não apenas de quem faz a comida, mas também de quem a come.
Isso mesmo conta Henrique Sá Pessoa ao SAPO24. “Ainda há um longo trabalho a fazer" nas cozinhas portuguesas, diz. "Aliás, deu para perceber pela apresentação do BO.LAN que ainda há muita coisa a fazer, mas temos a sorte de em Portugal já haver alguma consciência, pelo menos no que toca à reciclagem, aquelas coisas mais básicas, plásticos, papel, lixo orgânico, óleos".
Mas o processo não é fácil para todos. No caso do chef português, cujo restaurante Alma fica no centro do Chiado, em pleno coração de Lisboa, há "muitas limitações em termos logísticos e o lixo é sempre um problema", todavia, sublinha, aquilo em que se tenta mais focar é na redução do desperdício, tendo uma atenção particular com "as doses nos pratos, toda a comida que vem das mesas", problema mais facilmente controlável no Alma por ter um menu de degustação, explica.
Também os comensais têm de ajustar os hábitos de consumo para ajudar a causa. "Mais cuidado com a dieta, mais cuidado com aquilo que compram", sugere o cozinheiro. "Tem de ser uma conversa onde toda a gente se senta e se envolve, não pode ser só o governo, só o consumidor, só restaurador. É um projeto mais global que envolve muitas partes", conclui.
E uma dessas partes é composta por chefes como José Avillez, que diz que "antes até de ser cozinheiro" já tinha "bastantes preocupações com a sustentabilidade". Por isso, tem procurado, "dentro do possível", contribuir para essa mudança, explica numa breve entrevista ao SAPO24.
"Às vezes não é tanto na divisão dos lixos, é quando se deixa aquele fio de água a correr, quando se usa o dobro da película aderente para enrolar um peixe — são pequenos atos do dia-a-dia que depois podem fazer uma grande diferença", afirma. E defende que há "toda uma formação de base para isso: a pessoa ter cuidado. E depois pode ir um bocadinho mais longe”. Porém, sempre dependente de outras condições, por exemplo, “para a real separação dos lixos é preciso ter um país todo que ajude, uma cidade que ajude, não é só separarmos no restaurante se depois vai tudo para o mesmo sítio".
Por isso, diz, este trabalho não é apenas dos cozinheiros, mas "tem de ser partilhado com a comunidade". Esforço que "não está a ser feito como devia", atira. "Está a começar a ser feito, há hoje muito mais preocupações do que havia por parte da comunidade, mas acho que ainda estamos no princípio", diz.
"Os clientes hoje em Portugal, por exemplo, se chegassem a um [restaurante com] duas estrelas Michelin e não tivessem toalhas nas mesas porque eu tinha decidido tirar as toalhas para não gastar água, não iam gostar", afirma. "A mudança de mentalidades e de comportamento é o que demora mais tempo e temos de atuar em conjunto para conseguir resultados mais significativos", conclui o chef.
Era um cafezinho e a conta: Fora da alta cozinha, ainda se luta pelo direito fundamental à alimentação
A conta de tudo o que ainda não se faz é pesada. Francisco Sarmento, representante da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) em Portugal, denuncia a violação do direito humano a uma alimentação adequada. “30% da população portuguesa de alguma forma não pode ou não consegue comer aquilo que quer”, acrescenta.
“O grande desafio é promover uma transição para sistemas alimentares mais sustentáveis e equitativos”, diz. “Por isso, juntando a fome com a vontade de comer, realizamos o direito humano à alimentação adequada”, conclui. E esse direito deve estar na legislação portuguesa. A FAO quer que a Assembleia da República aprove uma lei de bases do direito à alimentação adequada.
Porque os desafios do sistema alimentar hoje são muito diferentes dos de há 100 anos, quando a alimentação ficou na alçada do ministério da Agricultura. “Passámos essencialmente a produzir calorias e não nutrientes”.
Com o aumento da população, a diminuição de recursos e uma crescente urbanização, Francisco pergunta: “Se daqui a três décadas, 2/3 da população vai viver em cidades, a questão é: o que vão comer e como vão comer?”
“O sistema alimentar hoje vive um conjunto variado de crises. Uma crise ambiental, social, económica. Crises quase se potenciam umas às outras”, adverte. “Estamos sentados num autêntico barril de pólvora”.
Provocar e inverter tendências
Entre copos de vinho alentejano e cerveja catalã, cozinheiros e empresários, estudantes de hotelaria e jornalistas discutem que caminhos pode a gastronomia seguir para um futuro mais sustentável.
Porque a comida não tem de ser diferente. Antes, são as escolhas — de cozinheiros, empresários e consumidores — que devem mudar para garantir que o prazer de comer fica exatamente igual. Porque, como diz Alex Atala, "todos os seres comem e se reproduzem. O homem é o único que transforma essas coisas em prazer. E a cozinha é a única que dura todo o dia".
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