I
Chegar ao Corvo não é fácil. A ilha está a meio caminho entre a Europa e a América, mas para a companhia aérea que opera os voos para a Aerogare do Corvo, há de ser um lugar tortuoso onde chegar. Pelo menos, foi a assim que a SATA decidiu o nosso voo: inicialmente previsto para sair de Lisboa na manhã desta quinta-feira, para chegar ao Corvo depois de uma escala na Horta; a SATA transferiu-nos para um voo noturno de Lisboa para Ponta Delgada, onde pernoitámos, partindo depois para a Horta e, de lá, então para o Corvo.
Assim visto, o caminho Lisboa — Corvo parece maior que a distância real. Assim visto, o país alarga-se a um território cujas dimensões obrigam a viagens de 24 horas.
O drama do transporte, contudo, fica em segundo plano quando as nuvens se abrem debaixo do Dash 8 (o bimotor que nos traz ao Corvo). O mundo abre-se diante dos olhos de quem o observa à velocidade de aterragem. A paisagem, que não é exótica por ser tão familiar, revela-se lentamente por trás das nuvens.
Cai uma pouca água. Na sala de chegadas da aerogare, os passageiros ajuntam-se à espera de que as malas sejam descarregadas e postas em cima dos rolos metálicos que as encaminham. Uns quantos homens e mulheres esperam pelos que vêm. Há um breve corrupio, uma curta comoção no ir e vir dos funcionários do aeroporto, no organizar dos transportes para os alojamentos. Um cão ladra. Veio embalado no porão e reencontra-se agora com a família.
Uma carrinha de caixa aberta é carregada com bagagem. E partimos para o Comodoro, um hotel de varandas para o monte e com uma biblioteca invejável de literatura sobre o Corvo (e as ilhas, ou não estivesse lá representado o amigo Raúl Brandão, que sobre elas escreveu).
Pouco importa a infraestrutura que nos recebeu. É boa. Bastante boa e chega dizer isso. Porque o melhor que nos deu este primeiro dia de Corvo (para além da soberba vista), foi o sorriso das pessoas. A abertura, a disponibilidade. Abaixo vão os mitos dos ilhéus deprimidos; abaixo a ideia de que quem aqui anda dura apenas, esperando um dia que a rocha se ponha de pé e caminhe para à beira de outra ilha.
O Corvo é o Corvo e isso chega.
II
Depois do hotel, partimos à procura de almoço. A tarde vai alta, escorregando depressa para lá das 15. Mas há um Caldeirão à beira de uns moinhos com vista para as Flores cujos hambúrgueres vespertinos servem de combustível ideal para irmos ao derradeiro caldeirão.
É isso que fazemos após carregar o estômago de alimento: uma expedição lá acima, atravessando as nuvens para chegar ao paraíso — afinal, não é por acaso que dizem estar o paraíso no céu.
A névoa é densa. A bruma esconde na sua pasta leitosa aquilo que há de haver do outro lado. Mas isto tudo a tempos. Pois que nos cortes da montanha, há espaços que nos mostram esse Corvo em toda a dimensão. E assustam em seus abismos.
Chegados a um dos topos do caldeirão, não vemos nada. As nuvens caíram lá no fundo, saindo apenas as que vêm altas e empurradas pelo vento forte. Aguentamos a ver se o céu abre. Não abre. Descemos um pouco, mas nem lá o cenário se revela. A corte à ilha é difícil.
E desistimos.
Vamos trepando a terra húmida, subindo para nos metermos no carro. Ouve-se uma buzina aflita. O homem aperta a sirene, bradando ao vale o alerta: olhai de roda, eis que o caldeirão se abre, sem névoa ou bruma.
Tornamos a descer. O campo verde reluz; a água, lá no fundo, põe-se a convidar. As vaquinhas, como árvores velhas, mantêm-se no seu pasto, indiferentes à beleza que as rodeia.
Descemos quase até ao fundo. Às vezes paramos, só para contemplar. A orquestra de aves compõe a sinfonia triunfal do herói que partiu à descoberta da natureza intocada; da natureza cujos caminhos ainda são pisados pelas vacas, tal eram há quarenta, cinquenta anos.
E mesmo há um século assim era. O Príncipe Alberto I do Mónaco descrevia lá no seu tempo as “ilhotas em terra seca”, cuja configuração diz-se ser a do arquipélago, “Na parte mais alta, uma lagoa dormita no fundo da cratera silenciosa e oferece às aves marinhas, cansadas das tempestades, a paz que todos os seres procuram depois de uma grande turbulência”.
Eis o Corvo.
III
Já no centro, um quanto povo vai esquartejando duas vacas. Preparam a carne para as sopas de domingo. Meia tonelada de alimento está ali à beira da câmara a ser arranjada por homens e mulheres (e até um fotógrafo continental, que se agarrou à faca para trabalhar).
Ao lado, no pavilhão da escola, vão-se também compondo as coisas. No bar, quatro mulheres vão cortando pombinhas. No ginásio, vai-se cobrindo o soalho com um vinil que o proteja. Ao fim da noite, quando lá voltamos, está tudo pronto para o banquete. Os pratos postos nas mesas corridas, as pombinhas coladas no seu devido lugar.
IV
Um diário de bordo não o há de ser se não estiver sempre remetendo para comida. É ela que faz mover os homens e, desse modo exato, assim nos fez mover um naco de vitela. Nessa luta andávamos quando, vinda de uma mesa ao fundo da sala, uma pequena rapariga, de vestido azul e laço no cabelo brilhante, se estaca do meu lado.
Põe-me à frente uma enorme fatia de bolo de chocolate, coroado por um garrido morango. Alguém ali fazia anos e a menina, em atenta diligência, pôs-se a distribuir fatias daquele bolo por todos os que ainda restavam no estabelecimento — cozinha incluída.
A peripécia chega para ilustrar o sentimento com que a ilha nos acolhe. O Príncipe Alberto I dizia, no virar do século passado, que nesta ilha há gente que nunca saiu desta terra. O que ele se esqueceu de ver foi que de qualquer ponto da ilha se vê o infinito.
Os corvinos veem mais mundo. O Corvo já não é uma ilha desconhecida, é uma ilha orgulhosa que se dá a conhecer, sem qualquer diminuição. A qualidade de vida aqui é imbatível. Na escola, os professores podem mesmo ensinar. As crianças andam na rua. Os pássaros cantam sempre e as estrelas agigantam-se.
O trânsito é raro. De casa ao emprego, a deslocação nunca há de ser grande. E do emprego à praia, menor ainda.
Esta ilha, que assenta já na placa norte-americana, parece longe. Mas não há diferenças ou exotismos. É uma vila como as outras (as das ilhas e as do continente). Está só abençoada pela beleza e pela calma vestais que enfeitiçam o olhar e seduzem o ouvido.
Abrimos o texto dizendo que este lugar está "lá longe". Um equívoco. Nós podemos estar longe do Corvo, mas o Corvo está bem perto de nós.
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