Na construção da dramaturgia, a encenadora não encontrou grande espaço para diálogo, entendendo que isso seria “subverter a escrita” do poeta, optando por isso por “estender a linguagem poética”, levá-la mais longe.
“Porque não, da mesma forma que nós temos música em palco, [ter] uma espécie de poesia em palco, uma linha de programação que tem por base pegar em poemas ou autores e nas suas obras poéticas e transpô-las para o palco? Este espetáculo surge um pouco como uma experiência, mas tem um fundo muito pessoal”, explicou a encenadora aos jornalistas, hoje, no final de um ensaio de imprensa da peça.
Depois de, em junho último, ter estreado com uma peça elaborada a partir de poemas de Alice Vieira, Marta Dias regressa agora ao universo da poesia, e a Ruy Belo, um autor “muito mais difícil de levar para o palco, porque é um mundo imenso”.
Se os poemas de Alice Vieira, de que partiu para construir “Toda a cidade ardia”, eram de tal forma “coloquiais” que lhe facilitaram o trabalho, desta vez, partir para o universo de Ruy Belo não foi tão fácil, apesar de ter sido um processo “natural”, referiu.
“Apesar de o poema ter como premissa uma ‘ideia simples’, a ideia da passagem de um dia, e um dia uma vida”, e “poder abrir muitas portas cénicas”, “criar personagens a partir daquela voz”, foi um “desafio” e “uma aventura”, afirmou Marta Dias.
O poema aborda o tema do tempo, uma questão “difícil” que Marta Dias considera “muito atual e urgente”, e que questiona “até que ponto as pessoas hoje têm tempo para a poesia, para ler ou para se aperceberem de coisas mais subtis, do que todos os apelos diários e constantes”, acrescentou a encenadora, “do que tudo aquilo que nos afoga um pouco e nos imerge”, sublinhou.
Esta é uma temática que a angustia bastante assim como aos atores da peça. Por isso, foi também muito interessante de explorar – assegurou -, nomeadamente na criação das personagens, que a encenadora propôs na escrita: uma jovem ‘youtuber’, uma doutora, um poeta e um pescador.
Na peça, porém, a encenadora não encontrou grande espaço para diálogo — “isso seria subverter um bocado a escrita” de Ruy Belo. Optou por isso por “estender a musicalidade das palavras”, optando por ligar as personagens como se fossem cantores.
“Como se isto fosse uma cantata barroca e pudéssemos dividir [a peça] pelas suas vozes, definindo ou distinguindo-as de forma a criar uma melodia interessante em contrapontos”, sublinhou.
Uma melodia em que as personagens vão debitando falas gizadas por Marta Dias e versos de Ruy Belo, ao mesmo tempo que se vão questionando e experimentando a angústia com temas que se mantêm atuais.
Sobretudo temas políticos, como no final — o país, a angústia, a solidão –, que se ‘colam’ a Ruy Belo.
Ao longo da peça, os versos “Ouve o tempo passar / escuta a sua voz/ pois o tempo tem voz”, mesmo quando não são ditos, estão sempre implícitos. Como está o próprio poeta, à medida que se vai dando conta das transformações da natureza, da população e das mudanças do próprio sujeito que vai falando.
As personagens criadas por Marta Dias, cujas falas misturam texto da encenadora e versos do poema de Ruy Belo, desaguam assim numa praia, onde um pontão muito vivido funciona como local de comunhão entre o homem e a natureza, assumindo um sentido quase de altar, de lar.
Sem considerar que a peça é uma “homenagem a Ruy Belo”, até porque não gosta do termo homenagem, Marta Dias sublinha “a enorme generosidade e o à-vontade” com que Teresa Belo, viúva do poeta, sempre os tem tratado desde que começou esta criação, apesar de ainda não ter visto a peça.
“Um dia uma vida” tem interpretação de Ana Brandão, Madalena Almeida, Miguel Lopes Rodrigues e Rui Melo.
A dramaturgia e encenação são de Marta Dias e o cenário e figurino de Marisa Fernandes.
No vídeo está Eduardo Breda e, na luz, Marta Dias e Alberto Carvalho.
A peça estreia-se no próximo sábado, dia 17, tem antestreia na sexta-feira, e vai ficar em cena de quarta-feira a sábado, às 21:30, e, aos domingos, às 16:00.
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