É coincidência. Mas os protestos no palco ecoam as lutas pelos direitos sociais, laborais. Os proletários que temem e ao mesmo tempo veneram a libertação das máquinas, surgem em palco para ser a carne do ferro.

"Maiakovski - O Regresso do Futuro" é uma peça de teatro que "revisita o universo e a obra de Vladimir Maiakovski [1893-1930]", que se estreia esta sexta-feira, no Rivoli, no Porto, no âmbito do Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI).

O SAPO24 entrevistou Igor Gandra (Teatro de Ferro), encenador e cenógrafo da peça, e Isabel Barros (Teatro de Marionetas do Porto), que assina o acompanhamento artístico da peça.

"Maiakovski - O Regresso do Futuro" é uma cocriação das companhias portuenses Teatro de Ferro e Teatro de Marionetas do Porto — e uma coprodução com o FITEI —, trabalhada em conjunto com o objetivo de se construir uma máquina do tempo, em que se imagina uma tentativa de ressuscitar o poeta russo Maiakovski, algures numa linha temporal alternativa.

Temos aqui uma espécie de desconstrução da personagem: temos objetos, alguns com aspetos antropomórficos, outros que nada têm a ver com o humano, mas, mesmo assim, sentimos que desempenham algum papel narrativo, são parcialmente personagens. Qual o processo que nos conduz à narratividade de um objeto não narrativo?

Igor Gandra (IG): Penso que esta nossa peça, até pela forma como nós arrancamos, com aquela espécie de enunciados em forma de pancarta, acaba por ser também uma reflexão sobre a própria ideia do que é fazer teatro, do que é estar aqui à frente uns dos outros a fazer estas coisas — e fazê-lo não apenas na companhia uns dos outros, enquanto humanos, mas também na companhia de uma série de objetos, que são considerados inanimados, por um lado, utilizando esta hibridação entre casa, corpo e máquina que é o teatro: uma máquina que só funciona sendo habitada por humanos.

Se quisermos, este modernismo vanguardista também corresponde um pouco ao início do projeto pós-humano: uma parte do nosso trabalho é de inspiração no trabalho dos bio-cosmistas, que são os percursores do transumanismo, dessas coisas que agora são tão atuais — só que foi há cento e tal anos que eles começaram... E de alguma forma, essa relação entre humanos e não-humanos, entre atores e objetos também tem raízes um pouco nessa tradição, embora não de uma forma completamente consciente, tem a ver um pouco com a ideia de artificialidade e de artifício de que a própria montagem teatral também é feita constitutivamente.

Não sei se isto responde muito bem ao que queria perguntar, mas, no fundo, continuei a pensar para além do que disse.

E que história é essa a que assistimos no palco?

IG: São muitas histórias, na verdade. Esta imagem que pusemos em cena, de um conjunto de linhas que atravessam o palco e que nós vemos em movimento — embora quietas — tem um pouco a ver com isso: uma série de linhas alternativas coexistentes, linhas temporais alternativas que coexistem, mas que, não sendo mutuamente exclusivas, encontram-se e afastam-se.

Depende um pouco de cada um de nós, enquanto construtores/espetadores, construir essa história. Porque na verdade são muitas histórias.

Tem a ver com a estrutura um pouco de colagem que usámos, mesmo no sentido em que ela surge também na arte, pegar em coisas diferentes e juntá-las umas às outras, não apenas fragmentos de poemas, ou de peças, mas objetos também de origem diversa — e modos de estar na cena. Uma das coisas que, para mim, é mais interessante nesta peça, enquanto experiência de criação, é a quantidade de convenções teatrais que nós conseguimos visitar com uma certa agilidade — ou, pelo menos, para as quais convidamos os espetadores a visitar, com uma certa agilidade e descomprometidamente.

Isso é também uma força deste teatro que não é só de humanos. É um teatro humano evidente e irremediavelmente — não temos como escapar a isso, nem sequer o desejamos —, mas também é um teatro das coisas, dos objetos, das máquinas, do tempo.

Isabel Barros (IB): Acho que logo no início, quando se introduz a máquina do tempo, a máquina do teatro, justamente se lança essa ideia de peças que podem andar para a frente, podem andar para trás e esse revisitar, como o Igor estava a dizer. Essas peças que andam aqui na cena trazem este desconcerto, quase, à forma de ver do espectador — de repente está no futuro, está no passado, e faz esse percurso através do espetáculo.

Acho que é mesmo de máquina: uma máquina de estar.

Existe aqui uma coincidência de esta peça estar em cena nos dias em que o Porto recebe a discussão europeia dos direitos sociais, dos direitos laborais — temas aqui transpostos. Que mensagem é esta, do homem e da máquina, e das suas relações sociais?

IG: O Vladimir Maiakovski é o poeta da revolução de outubro, revolução bolchevique, uma revolução socialista — justamente posta em marcha por pessoas com preocupações sociais e de justiça social. E uma parte importante da poesia dele fala sobre essas questões: sobre a revolução, por um lado, sobre a capacidade de construir de novo, de começar por fazê-lo de forma eventualmente violenta.

Mas a peça acaba por revisitar também, sobretudo nos fragmentos das peças que nós usámos, seja no "Percevejo", seja do "Mistério Bufo" ou dos "Banhos", esta ideia de personagens que viajam no tempo e nos vão dando indicações de como o futuro será ou deveria ser — ou de como nós próprios vivemos condenados a uma certa forma de obsolescência, seja pelos nossos hábitos culturais, seja pela nossa capacidade ou incapacidade de nos integrarmos num determinado modo produtivo.

O que fizemos em relação ao novo Sermão da Montanha, uma cena do "Mistério Bufo", em que aparece uma espécie de profeta, foi introduzir, nos comentários dos proletários, alguns elementos que não eram daquele tempo — o feudalismo digital, por exemplo. São coisas que nós inventámos, de acordo com as indicações do próprio Maiakovski, que no prefácio diz claramente: "de cada vez que remontarem esta peça, atualizem-na".

Porque na peça original era o Clemanceau e o Lloyd George, os líderes francês e britânico da época. Hoje, se fizéssemos a peça toda, tínhamos de pôr o Emmanuel Macron e o Boris Johnson no lugar deles. Não fizemos a peça toda, só aquele bocadinho, mas ainda assim temos essa atualização com estas questões, que têm a ver com o nosso lugar no mundo, com a divisão do mundo em classes, que eventualmente não é bem, bem como no tempo em que o Maiakovski escreveu as coisas, mas é uma questão que persiste: da grande desigualdade, concentração da riqueza e do poder, agora no caso da informação, dos dados.

A peça, pela matéria que nós usámos, acaba também por dar alguma continuidade a esse tipo de preocupações, esse tipo de inquietações — até pelo próprio nome: "O Regresso do Futuro" é de alguma maneira uma reação àquela ideia do fim da história, que o Fukuyama nos vem dizer, desde a queda do Muro [de Berlim]: chegámos aqui, este é o fim da história, já não vamos mais longe do que isto — uma espécie de pax eterna de um determinado sistema económico.

Se calhar não é bem assim e os últimos anos têm-nos mostrado que o fim da história parece não ter chegado — foi adiado. E o futuro também não está escrito: é isso que os velhos revolucionários também nos querem dizer através dos tempos.


A peça "Maiakovski - O Regresso do Futuro" estreia-se esta sexta-feira,  7 de maio, às 19:30, no Grande Auditório do Rivoli. Tem duração de 50 minutos, é para maiores de 16 anos e os ingressos custam nove euros. Deverá estar em cena em Lisboa, no Teatro S. Luiz, nos dias 21 e 22 deste mês, sempre às 20:00, no contexto de uma itinerância por diferentes salas do país, que deverá estender-se até julho.

Na interpretação estão os atores Carla Veloso, Eduardo Mendes, Micaela Soares, Rui Oliveira e Vítor Gomes. O desenho de luz ficou a cargo de Filipe Azevedo, as percussões ficaram a cargo de João Pais Filipe, a sonoplastia é da responsabilidade de Igor Gandra, que com Eduardo Mendes trataram das marionetas e outros objetos. A dramaturgia é de Regina Guimarães.