
Podemos dizer que a Revolução de 1820 é o equivalente nacional da Revolução Francesa de 1789?
Não são exatamente iguais, mas ambas dão origem a dois processos, a modernização e a divisão política.
Não sei se isto é errado, mas penso que a maior mudança da Revolução Francesa é que o poder deixa de ser uma atribuição de Deus e passa a ser uma atribuição do povo, ou seja, quem está no poder não está lá porque Deus decidiu, mas porque o povo quer.
Sim, há uma, já havia antes uma tendência para diminuir aquilo que nós podemos chamar a caução divina e substituí-la por uma caução, por uma legitimidade racionalista e burocrática. Isso já se via nos chamados absolutismos ilustrados, na monarquia absolutista ilustrada, em que o ênfase já não é tanto numa legitimidade vinda da Graça de Deus, mas mais numa eficiência de resultados, uma função social.
Nesse aspeto, aquilo que verdadeiramente faz revoluções, como a revolução liberal portuguesa é, através do sistema representativo, criar outra legitimidade, que é uma legitimidade que por um lado tem a ver com um poder que agora é regular e legal, limitado pela lei, por um conjunto de instituições, e depois um poder que é sufragado pelos cidadãos, isto é, corresponde a uma vontade da nação. Tem essas duas dimensões. É um poder legal e é um poder democrático, vamos dizer assim, porque acho que já se pode usar essa expressão em relação a estes primeiros sistemas representativos da primeira metade do século XIX, embora não sejam democracias como a atual.
Não, claro, até porque Deus continua a existir para os revolucionários, não é? Não eram ateus.
Sim, não eram. Nós temos de pensar que num sistema representativo, democrático e moderno, como o dos Estados Unidos, Deus continua a existir lá, isto é, continua a estar presente, embora haja uma separação entre o Estado e as Igrejas. O Estado não é desconhecedor de uma dimensão divina, como os Estados na Europa, tendem a ser, como na tradição francesa, onde não há apenas uma separação das Igrejas, mas também o Estado não diz nada sobre Deus.
E não era esse também o caso do Estado que sai da Revolução Liberal Portuguesa de 1820; a Constituição de 1822 ainda é proclamada em nome da Santíssima Trindade, a religião católica ainda é a religião do Estado e dos portugueses.
E a religião é inevitável, não é? Por exemplo, não se podia casar, não existia casamento fora da sacristia, não existia registo civil. Não existe o conceito de um “casamento civil”. O Registo Civil creio que é de 1911.
Não é bem assim. Está na Constituição em 1878. Tornou-se obrigatório em 1911, mas já existia, os liberais já o tinham criado. Acho que o Código Civil da década de 1860 cria essa figura do casamento civil que é uma grande discussão em que participa Alexandre Coelho e outras figuras. Corresponde um pouco à ideia liberal do respeito pela liberdade de consciência, que é uma coisa fundamental. Mesmo estes liberais que mantêm a religião católica como religião do Estado e a igreja como a igreja do Estado, em 1822, ressalvam o direito dos portugueses a terem outras opiniões. Quer dizer, o debate é um bocado ambíguo, não é claro. Mas aquilo que é limitado aos portugueses é o culto público de outras religiões. Ninguém é obrigado a ser católico.
Aliás, se não me engano, é do tempo de Dom Carlos uma lei que permite aos judeus construir a sinagoga de Lisboa, desde que fosse num sítio discreto.
Sim, aliás, os estrangeiros, os protestantes, também os judeus, tinham uma situação bastante mais clara. Podiam praticar o seu culto, mas, exatamente como disse, com uma certa discrição, isto é, não podiam ter templo, quer dizer, não podiam praticar o culto em edifícios que tivessem a aparência exterior de templo. Foi assim que se desenvolveu ao longo do século XIX a ideia de liberdade de consciência, liberdade de opinião, mas sobretudo liberdade de consciência religiosa.
Os ingleses, por exemplo, tinham os cemitérios deles, porque eram anglicanos e tiveram que pedir ao rei autorização para ter um cemitério.
Sim, os ingleses, aliás, os ingleses foram um dos fatores até de pluralismo religioso em Portugal, uma vez que houve desde cedo tolerância com eles, independentemente da religião que eles praticassem.
Eles eram anglicanos.
Havia anglicanos, mas havia também católicos, sim. E também aqueles evangélicos, e havia os deuses que estavam sob a protecção da Inglaterra, e portanto também…
Os ingleses, aliás, mataram-se bastante entre eles por causa das religiões.
Sim, em Portugal também não aconteceu o mesmo. Foi de outra maneira, quer dizer, aqui, a tentativa de manter uma homogeneidade religiosa não deu origem a uma guerra religiosa como em França, em Inglaterra, ou na Alemanha - naquilo que depois veio a ser a Alemanha - mas deu origem a uma perseguição religiosa ao longo de bastantes séculos, isto é, desde o século XVI até ao princípio do século XIX. Nós tivemos Inquisição, que é um princípio de tentar manter o poder do Estado. Mais do Estado do que da Igreja, ao contrário do que às vezes costuma dizer-se. A instituição é um tribunal que é pedido pelo rei, quer dizer, pelo Estado.
Sim, e obedece aos interesses políticos do Governo, não é?
Sim, sim. Não é um tribunal da Igreja, as pessoas dizem, não era a Igreja, era o Estado, quer dizer, e é uma tentativa de manter uma homogeneidade religiosa que até ao século XIX se julga que é fundamental para manter a estabilidade de uma sociedade política. Portanto, a ideia de que a uma comunidade política deve corresponder uma comunidade religiosa.

Fazendo um parênteses, não acha que nos Estados Unidos agora está a acontecer uma espécie de retrocesso em termos religiosos?
Penso que não, quer dizer, penso que ninguém põe em causa a separação das Igrejas e do Estado, até porque há uma pluralidade religiosa muito grande.
Mas os chamados cristãos, que incluem uma série de Igrejas, não só a católica, neste momento têm uma grande força, e o vice-Presidente até falou num “Estado cristão branco”.
Não sei, penso que não, eu acho que isso é algo tão inerente à cultura americana, desde o princípio, desde o início da colonização europeia da América do Norte que a ideia da liberdade religiosa é fundamental. Aliás foi uma da razões pela qual muitos colonos saíram da Grã-Bretanha para se estabelecer na América do Norte, porque queriam ter ali liberdade para viverem a sua religião.
Essa pluralidade é demasiado forte, isto é, os Estados Unidos não têm uma tradição como os países da Europa do Sul, católicos, que não têm uma tradição de uma homogeneidade religiosa. Há uma pluralidade religiosa e uma grande disponibilidade das pessoas para mudarem de campo, para fundarem novos movimentos, porque há ali uma espécie de uma pulsão para tentar encontrar Deus pessoalmente, o que leva, aliás, a uma menos consideração pelos intermediários, pelo clero, pelos intermediários religiosos. É uma tradição muito diferente da tradição católica, ortodoxa, em que a intermediação religiosa pelo clérigo é muito importante.
Havia muito a dizer sobre os Estados Unidos, por exemplo a nota americana, o dinheiro, tem símbolos maçónicos e a expressão “In God We Trust”, o que é uma contradição, porque a maçonaria era anti-religiosa e vice-versa.
Mas isso não vamos falar nos Estados Unidos, senão não saímos daqui hoje.
Voltemos a Portugal, que é o que nos interessa.
Em Portugal, apesar de ter havido a vitória em 1820, depois teve um recuo. Foram 14 anos, entre 1820 a 1834, que é o período sobre o qual se debruça este dicionário, embora muitos dos ensaios vão atrás e vão à frente para explicar melhor o que se passou nesta época. Mas é um período em que as coisas não estão garantidas para nenhum dos lados; há um confronto, há uma grande oscilação do poder entre um campo e outro, entre aqueles que estão com a revolução, os chamados liberais, e aqueles que estão contra a revolução, que vão ter vários nomes, desde realistas, no sentido do poder real, até depois se fixar naquela denominação mais conhecida de miguelistas, uma vez que o Infante Dom Miguel se tornou a sua referência principal.
Mas é interessante que realmente a rivalidade entre liberais e absolutistas durou o século XIX quase inteiro, quer dizer, não acabou no fim da Guerra Civil. Continuaram as perseguições, as inimizades e as vinganças. Mas creio que havia uma ideia assente de que os liberais eram à esquerda e os absolutistas eram à direita.
Hoje em dia, e isto é uma coisa que eu quando escrevo sobre estes assuntos me vejo aflito, o conceito do que é liberal mudou completamente. Quer dizer, hoje em dia o liberal é considerado de direita, em Portugal pelo menos, mas na verdade não é, quer dizer, o que é de direita é o neoliberalismo, que é uma política económica.
Para nós é sempre difícil tentar fazer corresponder as divisões políticas de uma época passada, e passaram 200 anos, com as divisões políticas de hoje. Nunca correspondem exatamente. Por exemplo, no caso dos liberais, quando eles vencem em 1834, a discussão política mais relevante acaba por passar toda para o campo liberal, e aparecem uma direita e uma esquerda liberal. A direita liberal, que tem características também conservadoras. São liberais, mas que são liberais no sentido em que aceitam a revolução liberal como o momento de fundação daquele regime.
E, portanto, aquilo que nós às vezes temos é direitas e esquerdas que são as direitas e esquerdas de certos regimes, isto é, há uma direita e uma esquerda do liberalismo, há uma direita e uma esquerda da república, que era como dizia aliás Manuel Brito Camacho, que é o líder republicano da Revolução de 1910, “eu sou um conservador, mas um conservador da república”, quer dizer, isto é, é da direita, mas da direita republicana.
Hoje em dia também há uma esquerda e uma direita deste regime democrático, e ainda aparecem sempre pessoas que têm ou nostalgia, ou têm outros projetos de outros regimes. Para nós, a luta política relevante é entre uma direita e uma esquerda dentro do regime.
Aquilo que se passa em 1820 é que não se estabelece ainda o regime, quer dizer, isto é, há uma constituição de 1822, mas que é derrubada em 1823, portanto fica-se, digamos, num estado de indefinição, ainda não se sabe o que é que vai prevalecer, e o que acontece é que muitos personagens passam de um lado para o outro, isto é, os próprios atores políticos, por vezes, têm dificuldade eles próprios em inserir-se - os miguelistas, de facto, não é bem uma direita, tal como os liberais não são a esquerda, porque eles não fazem parte do mesmo regime, isto é, eles são dois regimes diferentes.
É uma coisa diferente ser esquerda e direita hoje, que são esquerda e direita deste regime. O que faz sentido dizer, é que há uma esquerda e há uma direita deste regime. No século XIX há dois países quase, há o país dos miguelistas e há o país dos liberais, e depois cada um desses países até está dividido em várias facções políticas. Quer dizer, como eles não são campos unificados, o choque não é bem entre uma esquerda e uma direita, é entre duas concepções muito diferentes do que é que deve ser o país e o que é que deve ser o Estado, e duas concepções para as quais não se conseguiu arranjar um terreno comum. Isto é, foi através da guerra civil.
Lembro-me, por exemplo, que houve uma discussão no século XIX inteiro sobre a educação, se devia ser do Estado ou não, porque o Estado educar, de alguma maneira, era anti-liberal, mas, ao mesmo tempo, os liberais queriam que o Estado ensinasse toda a gente, para não serem as ordens religiosas.
Sim, estes liberais de que nós estamos a falar, muitos deles leram aquilo que os liberais de hoje leem, isto é o Adam Smith, o Bastiat leram essas coisas todas, mas eles têm sobretudo um objetivo, e esse objetivo é - vou pôr de uma maneira assim crua - é destruir o tipo de sociedade que existia até então em Portugal. E, para isso, hoje estão muito determinados em usar com toda a força o poder político. E, portanto, não têm dúvidas em usar a força toda do Estado para obter esses resultados que querem.
Portanto, são bastante autoritários e bastante violentos até à guerra civil. É como o D. Pedro, aliás o Duque de Bragança, que acaba de desfiar a causa liberal entre 1832 e 1834, explica lá a alguém que estava a pedir um bocado mais de moderação: "O senhor não está a perceber, isto aqui é ou eles ou nós, não há meios termos, não há entendimentos, não há moderação, não há compromissos.Isto é um mundo, de facto, dividido, em que está muita coisa em causa."
Eu lembro sempre que quando nós comparámos as repressões políticas em Portugal e os confrontos políticos em Portugal, esta é a época de maior violência dos últimos 200 anos.
Isto não é a época da República, não é a época do Estado Novo, não é a época do PREC de 1974, 1975, esta é a época da guerra civil, isto é, nunca houve tantos exilados, nunca houve tantos presos políticos, nunca o confronto político foi tão violento como na década de 20 e no princípio da década de 30, no século XIX em Portugal. É, porque está muita coisa em causa - está demasiado em causa.
Para eles está - e nós percebemos isso nos panfletários - a imprensa é muito viva nesta época, às vezes até completamente desbragada, eles percebem que está tudo em causa, isto é, está tudo em causa.
Bem, a imprensa imparcial é uma invenção do século XX, porque a imprensa do século XIX é abertamente facciosa.
Sim, a imprensa moderada começa no século XIX com o Diário de Notícias, em 1864, que é o jornal “incolor”, que é assim que se chama, Um jornal sem partido, toda a gente achava aquilo tudo estranhíssimo, e depois curiosamente acabou por se tornar o modelo dos jornais, os jornais eram todos, tinham um partido, todos tinham uma opção política muito clara.
Exato, depois veio “O Século”, que era o oposto do Diário de Notícias.
“O Século”, curiosamente, começa como um jornal do Partido Republicano e depois vai evoluir para um jornal incolor, isto é, também se começa a tornar um jornal generalista, a competir no campo do Diário de Notícias. Mas, durante muito tempo, quando chegamos ao princípio do século XX, é basicamente o Diário de Notícias e o Século que são os jornais incolores, porque os outros todos tinham partidos ou eram órgãos de partidos.
Já ninguém se lembra disso, mas a República de 1910 era um regime de direita, porque era contra as lutas reivindicações dos operários que surgiram nessa época. Pode dizer-se isso?
Não, não pode, o regime é um regime de esquerda, quer dizer, era um regime visto como de esquerda em termos franceses, vamos dizer assim, e porquê? Porque aquilo que definia a esquerda não era ainda a relação com a classe operária, isso é um bocadinho mais tarde, é sobretudo a questão religiosa, quer dizer, a questão da igreja, e aí era nitidamente um regime anticlerical.
Jacobino, não é?
Exato, e portanto daí não havia dúvidas nenhumas que isto era um regime que correspondia em termos franceses à esquerda da república francesa. A direita republicana francesa não se reconhecia neste regime instaurado em Portugal em 1910.
Mas, no fundo, as divisões do século XIX foram indo pelo século XX, porque quando chegamos a Salazar, há uma espécie de vingança de uma série de correntes que tinham sido perseguidas no século XIX, a religião, para começar, e as ideias conservadoras de classe…
Não sei, porque eu acho que no caso do Salazar são muito importantes as ideias que surgem na década de 1920 e 1930, portanto estamos a falar do século XX. As ideias sobre como obter a paz política em Portugal, como organizar as instituições, as corporações, são muito daquela época.
Eu sei que os adversários do Salazar geralmente gostavam de dizer, “ah, aquilo era o Portugal antigo, antes de 1820.”, mas não era, aquilo é um Portugal moderno também, com outras ideias.
Freitas do Amaral, que é insuspeito, diz que Salazar é “pré-revolução francesa” - descreve-o exatamente assim.
Pois, mas aí não concordo com o professor Freitas do Amaral. Acho que Salazar é pós-revolução francesa - mas, obviamente, pré-revolução francesa no sentido em que tinha mais simpatia pelos contra-revolucionários. A importância do “Dicionário Crítico da Revolução Liberal”, é mostrar isso, quer dizer, primeiro, como era o mundo que existia antes da Revolução Liberal e que de facto desfez-se, isto é, foi destruído pela Revolução Liberal, e portanto não tem verdadeiramente representantes no nouveau regime. O ancien regime era um mundo, com uma linguagem, conceitos, e instituições que mudaram todas completamente. Mesmo os miguelistas ao longo do século XIX vão-se começar a adaptar à ideia do constitucionalismo, das liberdades, das garantias. Por exemplo, os miguelistas de 1870-80, publicam um jornal que se chamava “A Nação”, em Lisboa - e que quando nós lemos, percebemos que eles já podiam ser quase liberais, porque a linguagem deles é já do tempo do liberalismo. Aquilo que os liberais fizeram entre 1820 e 1834 foi criar um mundo novo em que todas as correntes políticas mais modernas começaram ali, basicamente. Os conservadores e os liberais do mundo anterior desapareceram.
Mas não dúvida que Salazar tinha alguns “amores”, digamos assim, pela paz social, pelo ruralismo, hereditariedade das classes - por uma série de valores pré-revolução francesa. Achava que a industrialização era perigosa, porque criava revolucionários. Eu realmente concordo com Freitas do Amaral, mas não acho que o Salazar fosse fascista, porque o fascismo é do século XX, é do Mussolini, e é um conceito moderno em vários aspetos, acredita na indústria, na mobilização militar das massas, acredita no progresso técnico - tudo coisas que Salazar detestava.
Não sei, quer dizer, eu acho que, enfim, agora estamos já a discutir o Salazar, mas na década de 1930, Salazar também quer criar em Portugal uma modernidade, isso está muito patente nas conversas dele com António Ferro, publicadas num livro de 1932. E é um crítico do fado, do tradicionalismo, da lamechice - quer fazer coisas, quer mudar os costumes, quer criar uma nova mentalidade, está sempre a dizer “uma nova mentalidade”, e que não parece nada ruralista, nem saudosista, nem passadista.
Bem, com todo o respeito, não podemos concordar com tudo…
Acho que essa maneira de ver o Estado Novo foi desenvolvida pela chamada “oposição democrática”. O Estado Novo dura de 1933 até 1974, são 41 anos, o regime é mais complexo do que isso, acho que também tem um projeto de modernização e transformação do país.
Agora, sim, não acredita na democracia, não acredita num pluralismo político que se expressa através de partidos, acredita na condução da opinião pública, daí a censura - quer dizer, acha que as pessoas têm de ser orientadas, enfim, como agora também pensam alguns dos nossos líderes europeus. Aliás partilham muito essa ideia também em relação às redes sociais, de querer orientar, de ter medo das opiniões que lá são expressas, etc.
Portanto, a esse nível a União Europeia neste momento tem a ver com o salazarismo.
E o que acha da confusão entre autocracia e fascismo? Porque eu acho que autocracia e fascismo não são a mesma coisa.
Não, o fascismo é um movimento específico, e é verdade que o Estado Novo tem às vezes ali uns pós de fascismo, como uma espécie de concessão à moda da época.
Sim, e havia Lumbrales, Marcelo Caetano e outros que simpatizavam com o aparato fascista, que Salazar aceitava a contra-gosto…
Sim, havia vários entusiastas, mas verdadeiramente Salazar não é um fascista, não se entusiasma com aquilo, e como disse, tem um regime em que faltam alguns ingredientes fundamentais do fascismo, como a mobilização social, não é? O peso do partido como um agente político fundamental também não se nota.
Portanto, há muita, a própria agressividade externa, que é típica também de regimes fascistas também não há cá. Isto não quer dizer que não seja uma ditadura, é uma ditadura como as de hoje.
É um regime autoritário, é um regime que não estava a evoluir para uma democracia, portanto era e queria continuar a ser uma ditadura, porque achava que aquilo assim é que era, “assim é que era bom”.
Portanto não faz parte da família democrática de maneira nenhuma, mas também não faz bem parte da família fascista?
Eu acho que a tentativa de chamar fascista aquilo é apenas porque o fascismo tem hoje um sentido pejorativo, é usado sem rigor nenhum como um insulto, é um estigma para o salazarismo. Acho que o salazarismo é suficientemente criticável em termos de ser um autoritarismo, sem precisar do estigma “fascista”.
Gostaria agora de falar do tempo presente na Europa. A UE está a ir para a direita, como toda a gente diz?
Sim, o mundo ocidental neste momento está numa viragem à direita, conservadora.
Conservadora ou à direita, são coisas diferentes, não é? Pode ser conservadora nos costumes, ou liberal nos costumes e conservadora quanto à imigração, por exemplo?
Há diferenças entre o que é o conservadorismo. Em Inglaterra, como há um partido Conservador, as pessoas às vezes dizem que são conservadoras com um C grande ou com um C pequeno. Com um C grande quer dizer que são do partido, com um C pequeno quer dizer que a pessoa é apenas um conservador, e aí pode estar em vários lados do espaço político.
Isso é porque o termo pode aplicar-se a comportamentos sociais, enquanto “direita” é mais uma postura política
Conservador pode ser uma pessoa que recusa as mudanças políticas violentas, as revoluções como forma de fazer política, recusa a possibilidade de se criar uma nova ordem social.
E conservador é o mesmo que reacionário?
Não, não é exactamente.
Porque, por exemplo, o Partido Comunista considera-se progressista mas na realidade, ao recusar uma evolução das suas ideias, é reacionário.
Pois, conservador não quer dizer passadista, uma pessoa que quer voltar ao passado. Quanto ao Partido Comunista, está tornar-se irrelevante. Representa uma ideia que falhou e já passou.
Do lado da direita, acho que o Chega não vai crescer, ganhou aqueles 50 deputados com votos de protesto.
Não sei se vai aumentar ou diminuir, mas parece-me que o Chega corresponde a um movimento de revolta na Europa. A liderança portuguesa pode aproveitar essa vontade de mudança. Não sei se o seu eleitorado terá chegado ao limite possível.
Também depende do que consigam os outros partidos. Mas as bandeiras deles - a corrupção, a imigração - ainda lhes dão algum espaço.
E as ideias?
As ideias, eles podem aproveitar o que os outros partidos europeus vão dizendo.
Na Alemanha, uma coisa espantosa é que o eleitorado da AfD está todo na antiga RDA. Livraram-se de um extremo, os comunistas, mas continuam a gostar de extremos.
Cada país tem a sua especificidade. A AfD na Alemanha, o Rassemblement Nacional em França, os Fratelli d’Italia, o Vox em Espanha, são diferentes. Tem origens e origens e histórias diferentes. Uns podem estar a crescer, outros a diminuir. As próprias tradições não são iguais. E também têm posturas várias. Estamos a falar de um fenómeno de contestação contra as elites estabelecidas e as imigrações descontroladas. Temos o caso dos Estados Unidos em que Donald Trump também apostou na questão dos imigrantes. E há países em que as antigas direitas são substituídas por novas direitas. Ainda é prematuro saber o que estes movimentos poderão fazer com os seus países e a UE.
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