Relatório sobre abusos sexuais na Igreja Católica: O que precisa de saber

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

Quem fez parte da Comissão Independente?

A equipa, organizada de forma paritária e multidisciplinar, foi integrada por Pedro Strecht (coordenador, médico pedopsiquiatra), Álvaro Laborinho Lúcio (juiz conselheiro jubilado), Ana Nunes de Almeida (socióloga), Catarina Vasconcelos (cineasta), Daniel Sampaio (médico psiquiatra) e Filipa Tavares (assistente social).

A Comissão contou ainda com a participação de Vasco Ramos (sociólogo), Ana Sofia Varela (psicóloga clínica) e Catarina Pires (jornalista).

Para o estudo dos Arquivos da Igreja, a Comissão convidou Francisco Azevedo Mendes (historiador), que constituiu autonomamente o Grupo de Investigação Histórica (GIH) com outros três investigadores: Júlia Garraio (especialista em estudos de género), Rita Almeida Carvalho (historiadora) e Sérgio Ribeiro Pinto (historiador).

Qual foi a principal conclusão do relatório?

A Comissão Independente validou 512 dos 564 testemunhos recebidos, apontando, por extrapolação, para um número mínimo de vítimas da ordem das 4.815.

Estes testemunhos referem-se a casos ocorridos no período compreendido entre 1950 e 2022, o espaço temporal que abrangeu o trabalho da comissão.

O sumário do relatório, contudo, revela que “os dados apurados nos arquivos eclesiásticos relativamente à incidência dos abusos sexuais devem ser entendidos como a ‘ponta do iceberg’”.

Em 52% dos casos, as vítimas só revelaram o abuso de que foram alvo em média 10 anos depois de ocorrido e em 43% dos casos essa denúncia aconteceu apenas quando contactaram a comissão.

Em 77% dos casos as vítimas nunca apresentaram queixa à igreja e só em 4% dos casos houve lugar a queixa judicial.

Foram reportados casos ao Ministério Público?

Sim, a Comissão enviou para o Ministério Público 25 casos de entre os 512 testemunhos validados recebidos ao longo do ano.

A prescrição dos casos, por um lado, e o anonimato por outro, são as principais razões para este reduzido número de casos entregue à Justiça.

No entanto, durante a apresentação do relatório, Laborinho Lúcio reconheceu que a maioria dos 25 casos enviados para o Ministério Público já prescreveu.

Quando ocorreu o maior número de casos?

As décadas de 1960, 70 e 80 do século passado foram as que registaram um maior número de casos de abuso sexual no seio da Igreja em Portugal.

Muitos casos terão ficado por identificar, pois foi identificada, no que respeita aos arquivos diocesanos, nomeadamente, “a ambiguidade que caracteriza uma parte significativa da correspondência eclesiástica do século XX”. “É frequente o problema dos abusos sexuais não ser referido explicitamente”, diz o relatório.

Quem são ou foram as vítimas?

A idade média das vítimas é hoje de 52,4 anos, 52,7% são homens, 47,2% são mulheres e 88,5% são residentes em Portugal continental, principalmente nos distritos de Lisboa, Porto, Braga Setúbal e Leiria, “mas os abusos estão espalhados por todos o país”.

Dos abusados, 53% continuam a afirmar-se católicos e 25,8% são católicos praticantes.

A percentagem de licenciados entre as vítimas de abusos é de 32,4%, enquanto 12,9% são pós-graduados.

Em criança, os abusados que deram os seus testemunhos, residiam com os pais (58,6%), 1/5 estavam institucionalizados, enquanto 7,8% pertenciam a famílias monoparentais.

E os abusadores?

Quase todos os abusadores das vítimas que contactaram a Comissão Independente eram homens e maioritariamente padres.

Segundo a psicóloga Ana Nunes de Almeida, 97% dos abusadores eram homens e em 77% dos casos padres, além de que em 47% dos casos o abusador fazia parte das relações próximas da criança.

O grupo de trabalho aponta que “o perfil dos abusadores é variado”, predominando “adultos jovens com estruturas psicopatológicas, agravadas por fatores de risco como o alcoolismo ou o mau controlo de impulsos”.

Que tipo de abusos foram sofridos pelas vítimas?

Os homens sofreram principalmente “sexo anal, manipulação de órgãos sexuais e masturbação”, enquanto as mulheres sofreram, na maior parte dos casos, de “insinuação”.

Os abusos ocorreram principalmente entre os 10 e os 14 anos de idade (a média era de 11,2 anos, sendo de 11,7 no caso dos rapazes e de 10,5 no das raparigas), 57,2% foram abusados mais do que uma vez e 27,5% referiram que foram vítimas durante mais de um ano.

No caso dos rapazes, em 77% dos casos o abusador foi um padre.

Em que locais onde tiveram lugar os abusos?

A maior parte dos abusos ocorreu em seminários (23%), na igreja - em diversos locais, inclusive no altar - (18,8%), no confessionário (14,3%), na casa paroquial (12,9%) e em escolas católicas (6,9%).

O que leva as vítimas a calarem as agressões?

A Comissão Independente reconhece que “habitualmente, são as vítimas [de abuso] a iniciar o silenciamento, por sentimentos de medo, vergonha e culpa”.

No sumário do relatório, divulgado esta manhã, a comissão aponta para que seja “uma expressiva minoria” o número das vítimas que revelam os abusos.

Acrescenta que, quando o fazem, as vítimas “concretizam-no junto de pessoas próximas”, dependendo da atitude destas “a evolução futura da situação”.

Em fases posteriores da vida adulta, “é necessário suporte psicológico e/ou psiquiátrico para intervir em diversos quadros clínicos, como as perturbações de ansiedade e do humor depressivo ligadas a situações de stress pós-traumático”, acrescenta a comissão.

Foram feitas recomendações?

Sim, tanto à Igreja como à Sociedade Civil.

O que foi sugerido à Igreja?

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica defende a constituição de uma nova “comissão para continuidade do estudo e acompanhamento do tema”, com membros internos e externos à Igreja.

Além disso, recomenda “o reconhecimento, pela Igreja, da existência e extensão do problema e compromisso na sua adequada prevenção futura”, nomeadamente através do “cumprimento do conceito de ‘tolerância zero’ proposto pelo Papa Francisco”.

A adoção do “dever moral de denúncia por parte da Igreja e colaboração com o Ministério Público em casos de alegados crimes de abuso sexual”, o pedido “efetivo de perdão sobre as situações que aconteceram no passado e sua materialização”, bem como a “formação e supervisão continuada e externa de membros da Igreja, nomeadamente na área da sexualidade (sua e das crianças e adolescentes)”, são outras recomendações que a comissão deixa à hierarquia da Igreja.

O "apoio psicológico continuado às vítimas do passado, atuais e futuras” é encarado, também, como responsabilidade da Igreja, em articulação com o Serviço Nacional de Saúde.

E para a sociedade civil?

A Comissão Independente sugere que a prescrição dos crimes de abuso aumente para os 30 anos da vítima, pedindo à Assembleia da República a alteração da lei.

“Há um ponto que nós nos limitamos a fazer que tem a ver com o artigo n.º 118 do Código Penal, que diz que a vítima do crime sexual, sendo menor de idade, pode apresentar queixa até fazer 22 anos. Há aqui uma suspensão do prazo de prescrição, mesmo que prazo de prescrição tenha decorrido enquanto a vítima não havia feito 23 anos. Esse prazo fica suspenso”, disse Laborinho Lúcio.

De acordo com o antigo ministro da Justiça, tendo em conta a idade das vítimas, a comissão chegou à conclusão de que a idade deve ser aumentada.

Outras recomendações à sociedade civil incluem a “realização de um estudo nacional sobre abusos sexuais de crianças nos seus vários espaços de socialização”, o “reconhecimento inequívoco dos Direitos da Criança”, o “empoderamento das crianças e famílias sobre o tema: o papel da Escola”, o “aumento da idade da vítima para efeitos de prescrição de crimes” e a “celeridade da avaliação e resposta do sistema de justiça”.

O grupo de trabalho sublinha ainda a necessidade do “reforço do papel da comunicação social na investigação e tratamento do tema” e o “aumento da literacia emocional sobre as verdadeiras necessidades do desenvolvimento infantojuvenil, sobretudo no campo afetivo e sexual”.

Como é que a hierarquia da Igreja olha para a luta contra os abusos?

Na generalidade, a hierarquia católica portuguesa “é favorável” à posição do Papa na condenação dos abusos.

“Com algumas divergências, e em alguns casos, a opinião dos bispos e dos superiores gerais, que foram entrevistados individualmente, é manifestamente favorável ao transmitido pelo Papa” Francisco, que considerou em 2019 na Carta Apostólica “Vos estis lux mundi” que “os crimes de abuso sexual a crianças são crimes que ofendem a Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e afastam-nas da comunidade”, afirmou hoje Pedro Strecht.

“Sabemos também que a percentagem da sua existência enquanto praticada por membros da Igreja é muito pequena, sobre a realidade do assunto dos abusos sexuais de menores em geral”, acrescentou.

Qual foi a reação do episcopado ao relatório?

D. José Ornelas, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), reconheceu hoje que os resultados do relatório da Comissão Independente não podem ser ignorados.

"O relatório hoje publicado exprime uma dura e trágica realidade. Houve e há vítimas de abuso sexual provocadas por clérigos e outros agentes pastorais no âmbito das atividades da Igreja em Portugal. O estudo apresentado recolhe o testemunho de 512 vítimas diretas e aponta para outras prováveis", disse o também bispo de Leiria-Fátima, assinalando "ainda várias consequências destes crimes, que podem ter estado na origem de dramas e sofrimentos incomensuráveis, que marcaram vidas inteiras".

"É uma ferida aberta que nos dói e nos envergonha. Pedimos perdão a todas as vítimas. As que deram corajosamente o seu testemunho, calado durante tantos anos, e às que ainda convivem com a dor no íntimo do coração sem a partilharem com ninguém", admitiu o presidente da CEP.

"A tolerância zero para os casos de abusos tem de ser uma realidade em toda a Igreja, e por isso não toleraremos abusos nem abusadores", afirmou. Depois de analisar o relatório final da comissão, a CEP vai procurar "os mecanismos mais eficazes e adequados para fomentar uma maior prevenção e para resolver possíveis casos com celeridade e respeito pela verdade".

No entanto, na fase das perguntas dos jornalistas, José Ornelas não foi tão perentório. Apesar de afirmar que, citando as diretrizes do papa Francisco, que "abusadores de menores não podem ter cargos dentro do ministério", o presidente da CEP não foi claro sobre o que acontecerá aos clérigos ou outros membros da igreja sobre os quais recaiam suspeitas e cujos nomes possam constar da lista de abusadores que a igreja ainda não recebeu, mas recusou qualquer processo de “caça às bruxas”.

José Ornelas sublinhou que as investigações de denúncias na igreja portuguesa são investigadas pelos bispos em Portugal, que “em caso de plausibilidade” de abusos remetem o processo ao Vaticano, que decidirá.

“Não temos ainda lista, haveremos de receber e haveremos de tratar convenientemente”, disse José Ornelas.

Sublinhou também que, tal como no Ministério Público, o princípio subjacente à condução do processo na igreja é do “segredo de justiça como base, para que as coisas não sejam tratadas na rua, mas sejam tratadas com dignidade para todos”.

Quanto ao término do processo uma vez chegado ao Vaticano, referiu que “leva o seu tempo, mas também não é assim tão demorado”.

*com Lusa

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