Queria ser pianista profissional, mas é um dos cientistas portugueses com maior destaque no estrangeiro. Professor catedrático de Química Orgânica na Universidade de Viena, onde também dirige o Laboratório Christian Doppler, Nuno Maulide descobriu como transformar a água dos tremoços em ouro. Ou quase. E explica ao SAPO24 como o lixo também pode ser um negócio.
Nesta entrevista, o investigador fala do seu percurso, de como esteve quase para ser médico, seguindo os passos do pai e da mãe, das semelhanças entre a química e a música ou de como o plástico, "a invenção mais genial do século XX", está a afectar a nossa vida, de tal forma que já entra no nosso corpo a partir do ar que respiramos, da água que bebemos ou dos alimentos que comemos. O que podemos fazer?
Eleito Cientista do Ano na Áustria em 2019 e Prémio Ignaz Lieben, considerado o Nobel austríaco, em 2018, Nuno Maulide é autor de diversos livros onde, de forma simples e clara, desvenda alguns mistérios da vida.
Com o Zoom a ligar Lisboa e Viena, onde reside, vai descrevendo como tudo em nós é o resultado de milhões de reacções químicas a cada segundo, que nos permitem falar, pensar no que estamos a dizer, olhar, interpretar o outro e gesticular. E até fazer e beber o chá que preparou enquanto conversámos.
Era uma vez Nuno Maulide, que tocava piano e falava francês. E que hoje, coincidência das coincidências, faz não 33, mas 44 anos. Parabéns!
Quase que tenho vontade de começar com uma pergunta que também fiz a Carlos Fiolhais: qual a resposta para o sentido da vida, o universo e tudo o resto?
O sentido da vida é muito simples. Acho que as pessoas deviam procurar dentro de si próprias a felicidade. Tudo o que fazemos é uma tentativa, às vezes desesperada, de sermos felizes. Mas muitas vezes direcionamos essa busca da felicidade para fora, achamos que é alguma coisa de fora que nos vai fazer felizes, uma pessoa, um objeto, um acontecimento. E muitas pessoas passam a vida toda obcecadas com um objectivo e, depois, ficam frustradas porque não o atingem ou, pior, atingem o objectivo e ficam ressabiadíssimas porque a mudança que esperavam não veio de dentro. Fácil de dizer, difícil de realizar.
muitas pessoas passam a vida toda obcecadas com um objetivo e, depois, ficam frustradas porque não o atingem ou, pior, atingem o objetivo e ficam ressabiadíssimas
Sei que queria ser pianista profissional. Antes de entrarmos pela química, pode contar um pouco da sua história?
Desde muito pequeno que sinto que a música é a minha vocação de vida. Não por aos dois anos tocar um instrumento ou cantar desde os três, mas porque tive a sorte de, sem saber, ter feito parte de um programa piloto do Ministério da Educação que pretendia experimentar ensinar música a alunos da escola primária.
De repente, na segunda classe - acho que nem avisaram os nossos pais, se avisaram, foi de maneira muito sub-reptícia -, a professora disse: agora vão ter uma aula diferente. E foi-se embora. Depois apareceu uma senhora que desenhou umas coisas no quadro e que nos pôs a cantar e a bater ritmos com as mãos e, progressivamente, ao longo desse ano e depois na terceira e na quarta classe, nos foi ensinando cada vez mais música através de um método muito bom para crianças, o Método Ward, que começa o ensino da música com números: o dó é o um, o ré é o dois, o mi é o três e assim por diante.
Essa senhora começou por ir à escola uma vez por semana, depois duas e, no final, três vezes por semana. Eu gostava imenso e, na altura da transição [de ciclo de ensino], ela disse ao meus pais que eu tinha jeito para aquilo e recomendou que fosse para o Conservatório ou para o Instituto Gregoriano de Lisboa. Os meus pais, por uma questão de comodidade, porque o Instituto Gregoriano era e é na Avenida 5 de Outubro, nós morávamos no Lumiar, escolheram essa escola, que é mais pequena, mais familiar.
Depois há os acasos. Quando passei o exame de admissão no Instituto Gregoriano, o meu pai foi fazer a minha inscrição e só havia três instrumentos: piano, órgão e cravo. Senão, se calhar eu hoje era violinista. Mas o meu pai lá pensou que quem toca piano também toca órgão, que o cravo era muito antigo, e inscreveu-me no piano, que é o mais versátil.
Aquilo tem exatamente o mesmo número de anos que o ensino regular, mas é um ensino articulado com a música. É um instituto com uma qualidade muito elevada, não fica a dever nada ao Conservatório. E foram oito anos assim, até ao 12.º ano.
O que é que liga o piano, ou a música, à Química?
Acho que a música e a ciência em geral têm uma ligação muito grande. Há muitos aspectos da ciência que são puramente estéticos. Muitos pensam que na ciência há aquela coisa do "Eureka!", tive uma ideia. Mas geralmente não é nada assim, as ideias são incrementais, já se sabe isto e isto, se dermos um passinho mais à frente talvez dê aquilo.
E isso tem uma componente muito emocional. Por isso acho que a música e a química orgânica têm muito em comum. Da mesma maneira que a música é universal, também não preciso de saber falar chinês para conseguir exprimir química orgânica na China, "fala-se" através daquelas fórmulas moleculares que querem dizer a mesma coisa em todo o mundo.
É uma linguagem muito gráfica, que também tem um aspecto estético, porque a maneira como se desenha cada estrutura é diferente de pessoa para pessoa, cada um tem a sua forma de desenhar. Mesmo uma molécula complexa. Se olharmos para ela de frente, vê-se uma coisa, se olharmos para ela de lado, vê-se outra, se olharmos para ela de cima, vê-se outra. Consoante o ângulo de que se olha identificam-se pontos diferentes de ataque para fazer química, é muito importante não desenhar só de uma maneira. Em dez grupos de investigação a trabalhar ao mesmo tempo na mesma molécula, cada um desenha a molécula de maneira diferente.
[A chaleira do chá apita] Espero que vá buscar o seu chá e já passo à próxima pergunta.
Não, não. Pergunte. Tenho um colega na Universidade de Viena que me diz que às vezes a pessoa não se apercebe da quantidade de coisas que consegue fazer ao mesmo tempo, também porque estamos muito centrados em nós próprios, não é? Eu só preciso de ter as ideias arrumadas na minha cabeça, depois escrevo, falo ao telefone, trato da roupa ou de alguma coisa no forno, é um bocadinho assim.
Ia perguntar-lhe sobre a origem do nome Maulide. Li algures que deriva do árabe "Mawlid", que significa "aniversário do profeta".
Penso que sim, alguém me explicou que naquela zona de Moçambique, que é de onde o nome vem, tinha muito contacto com viajantes da Índia e da religião islâmica, que espalhavam por ali a sua fé. Portanto, é bem capaz de ter uma ligação a isso.
Crescer com este nome também não é fácil, toda a vida fizeram todo o tipo de piadas com o meu nome. Nas aulas tive uma professora que leu Nuno Matilde, desataram-se todos a rir e durante não sei quantos meses fui Matilde para os meus colegas, para me chatearem. Também fui Môlide, muitos acham que tem alguma coisa de francês. Até aqui me chamam "Herr Môlide", é mais fácil para eles.
Na vida, para os homens e mulheres o equilíbrio químico é a morte
O que é que no homem e na mulher é químico ou química?
Tudo. A razão pela qual estou a falar consigo, a vê-la ou a ouvir o que está a dizer, a pensar no que vou responder é o produto de uma série de reacções químicas em cadeia. Muitos milhares de milhões de reações químicas sempre, sempre a pedalar e sempre a fugir do equilíbrio químico, que é o mais interessante.
Aprendemos muito cedo na escola que as reações tendem para o equilíbrio: quanto se mistura uma molécula A com uma molécula B, ao fim de um certo tempo aquilo atinge um estado estacionário, em que se está permanentemente a formar o produto e o produto está permanentemente a voltar para os materiais de partida, tipo balancé. Atinge-se um equilíbrio em que aparentemente não muda nada, mas, na verdade, a reação para a frente está sempre a andar, a reação para trás está sempre a andar e elas equilibram-se.
Na vida, para as bactérias e animais, mas também para os homens e mulheres, o equilíbrio químico é a morte. Portanto, nós somos um sistema químico perpetuamente a fugir do equilíbrio. Acho isto muito poético, porque tudo tende para o equilíbrio, mas só há vida enquanto não houver equilíbrio. Isto dá para fazer aqui umas considerações metafísicas.
Também pode ser irónico, se pensarmos que cada vez há mais pessoas a tomar químicos para conseguir um certo tipo de equilíbrio, falo do equilíbrio mental.
Vou responder a esta pergunta de uma forma diferente. Vou dizer-lhe aquilo que o meu pai, médico, sempre me disse: "Eu não tomo medicamentos". Tínhamos uma doença, sintomas como dores de cabeça, "Oh pai, tu és médico, podias ajudar". E ele dizia: "Vai-te deitar, fecha os olhos e tenta dormir".
E os meus pais eram os dois médicos, tudo na nossa casa evocava a medicina, desde os blocos com uma marca qualquer de medicamento até às canetas que eram oferecidas pelos laboratórios, artigos de merchandising, livros de medicina e medicamentos também. "Mas não podes dar uma coisa qualquer?" Era uma coisa tristíssima, ele sempre a evitar medicar-nos. Sempre nos disse que o medicamento só alivia os sintomas, não cura a razão de base.
Fico a pensar, é um pouco aquela questão metafísica com que começámos a entrevista; é procurar algo externo para regular aquilo que, na verdade, eu devia tentar regular internamente. Se calhar o melhor medicamento eram umas boas sessões de terapia, que é uma coisa que, infelizmente, ainda se reveste de um estigma muito grande.
A vida passa tão a correr que nunca se tem tempo para fazer instrospeção. Mesmo quem consegue fazer introspecção nem sempre a leva no sentido certo, porque estamos presos na nossa cabeça, nos nossos mecanismos. Ter uma pessoa que é treinada, formada e paga para fazer esse trabalho, se escolher bem tem a experiência certa para ajudar, dá uma visão completamente diferente. Cerca de 99% dos problemas que temos na vida são auto criados, são problemas cuja origem está na nossa cabeça. Depois parece que se tornam em coisas evidentes, quando na verdade nunca o foram. E são a demonstração de como o nosso cérebro é uma máquina de criatividade fantástica. Quando alguém diz que não tem criatividade, que não é original... Ah tem, tem, basta pensar nas obsessões e nos problemas e nas paranóias que têm e que são produto de uma imaginação fértil.
Cerca de 99% dos problemas que as pessoas têm na vida são auto criados, são problemas cuja origem está na nossa cabeça
Pode é ser mais orientada para coisas boas ou para coisas más.
Ainda ontem falei disto, porque foi a nossa festa de Natal. Quando cheguei à Universidade de Viena os dois professores de Química Orgânica tinham-se reformado ao mesmo tempo. Então aquilo estava um bocadinho órfão, muito vazio, um bocadinho abandonado.
Eu estava no Instituto Max Planck, na Alemanha, e quando disse a colegas no meio académico que ia para a Universidade de Viena disseram-me para não me meter naquilo, que era um sítio horrível, que o país (Áustria) era fraco e que o sistema tinha péssimo ambiente. Agora, ao fim de dez anos, começaram a surgir rumores de que me ia mudar e todos a querem saber quando é que a universidade abre vagas.
Porque é uma universidade muitíssimo boa, com imensas qualidades, como todas as universidades do mundo. Estou cada vez mais convencido que as pessoas é que fazem a diferença.
Vamos falar na química como parte da solução dos problemas da humanidade.
A química está em qualquer problema com que a nossa sociedade se debate actualmente. A começar pelos problemas do ambiente.
Como é que se combate o excesso de CO2? Capturando CO2. Este é um tópico um bocadinho controverso, porque se me perguntar o que é mais eficiente, usar métodos químicos para capturar CO2 ou plantar árvores, respondo que é melhor plantar mais árvores.
Plantar uma florestazinha ou um bom parque no centro da cidade é capaz de ter um impacto muito maior na qualidade do ar, na qualidade de vida, na redução da temperatura. As cidades têm um grande problema, sobretudo com as alterações climáticas, que é o aquecimento excessivo no Verão, porque todos os materiais que utilizamos para construir e para gerar a civilização são materiais que aquecem imenso, porque absorvem radiação ultravioleta, que vai sendo largada aos poucos.
Por exemplo, o alcatrão como superfície para estradas e pavimentos é uma solução muito boa para os carros, mas é péssima quando chega à questão de regulação de temperatura. Por isso é que se for para um bosque num dia de Verão muito quente, a temperatura pode estar até vários graus abaixo do que se estiver no Marquês de Pombal debaixo do sol, onde às vezes quase podia estrelar um ovo no pavimento.
Cada vez mais percebemos que tudo isto tem a ver com a química, com esta ideia de "como é que eu altero a estrutura dos materiais à escala molecular para conseguir com isso um reflexo à escala macroscópica?", aquela que vejo, nas propriedades dessa estrutura.
Uma das coisas que me impressiona são os dados sobre o plástico, mas também as soluções que estão a ser criadas.
Se pensarmos em problemas como o plástico, cuja solução é química, não há nenhuma dúvida. Até agora a melhor solução para nos vermos livres do plástico continua a ser queimá-lo, e não é uma boa solução, por várias razões.
Portanto, quando a química for capaz de desfazer aquilo que fez no plástico - que é uma construção em que várias pecinhas se juntam de mãos dadas para fazer uma cadeia muito longa -, quando for capaz de inverter o processo e partir ou separar novamente essas pecinhas umas das outras, então teremos chegado a um ponto em que conseguimos mais facilmente resolver o problema do plástico.
Disse que já existem umas bactérias que comem plástico, não é?
Sim, estão em estudo para ver se têm viabilidade económica. As primeiras bactérias que comem plástico foram descobertas no Japão, precisamente numa lixeira, onde microorganismos têm a capacidade de se reproduzir muito rapidamente e de fazer muito facilmente mutações do seu material genético. Uma dessas mutações gerou uma enzima capaz de processar o plástico. Naquele ambiente ganharam a luta pela sobrevivência, tinham uma vantagem evolutiva em relação às outras.
Numa pesquisa que fiz, descobri que há uma empresa em França que já processa assim 250 quilos de PET por dia numa espécie de fábrica que tem um exército de bactérias. O problema é que não comem todo o plástico, porque é uma enzima específica para determinadas moléculas (e há plásticos e plásticos), e não sei até que ponto os produtos que saem de lá não são às vezes pior a emenda do que o soneto, porque os subprodutos são coisas super tóxicas.
pedacinhos ínfimos de plástico já estarão dentro de todos nós, até nas placentas das mães grávidas já se encontraram microplásticos. É um problema muito sério
Já se encontrou plástico a 11 quilómetros de profundidade, retiram-se entre 30 e 40 pedacinhos de plástico de aves marinhas e um em cada dez peixes tem plástico. É aflitivo. Estamos a comer plástico?
Sim, microplásticos, pedacinhos ínfimos de plástico já estarão dentro de todos nós, até nas placentas das mães grávidas já se encontraram microplásticos. É um problema muito sério. Porque não tem uma solução óbvia. O que devíamos tentar fazer é afastar-nos de plásticos que sejam tão duráveis e ir para plásticos mais facilmente recicláveis, ver-nos livres da quantidade fantástica de plástico que acumulámos como humanidade neste planeta e procurar outro tipo de coisas mais sustentáveis.
É preciso fazer e é preciso ter coragem política para legislar neste sentido e também obrigar os produtores, porque o plástico é muito, muito barato de produzir. E reciclamos muito pouco.
Mas a saúde dos oceanos é um problema gravíssimo. Estamos a ir para um tom muito negro, porque as soluções não são óbvias. Estamos sempre na esperança que a investigação consiga propor soluções e, como as cadeias de produção estão tão estabelecidas, é muito difícil convencê-las a mudar os processos, mesmo que possa aumentar os lucros, mesmo que isso possa trazer algo de bom.
Provavelmente, quebrar este ciclo requer novos players e é muito difícil em certas indústrias um novo player ter qualquer hipótese, por isso é que, para o bem e para o mal, os subsídios governamentais, que são muito abusados, são a maneira de permitir que empresas que têm boas intenções e que querem mudar paradigmas entrem no mercado.
A Tesla, por exemplo, dificilmente teria resistido se não tivesse tido imensos subsídios governamentais.
o plástico é a melhor, a mais genial invenção do século XX. A culpa não é do plástico, a culpa é nossa
Mas podíamos, ao menos, levar para os países chamados em vias de desenvolvimento processo novos, mais limpos.
Mas geralmente o que fazemos é levar para os países menos desenvolvidos todos os maus princípios que temos. Por exemplo, como não conseguimos reduzir as emissões de CO2, vendemos o nosso excesso aos países pouco desenvolvidos que não têm grandes produções de CO2.
Voltando ao plástico, digo sempre que o plástico é a melhor, a mais genial invenção do século XX. A culpa não é do plástico, a culpa é nossa. Tivéssemos nós consumidores sido capazes de antecipar os problemas que o plástico nos iria trazer. Da mesma forma que não fomos capazes de antecipar os problemas que o automóvel nos iria trazer.
O automóvel, na sua altura, foi uma solução fantástica para um problema, a explosão demográfica. Com o aumento da população urbana na viragem do século XIX para o século XX, houve a chamada crise do estrume de cavalo, que as pessoas normalmente não sabem, mas faziam-se previsões de que em 30 ou 40 anos íamos estar todos com estrume de cavalo até à cintura.
Já imaginou o que era se todas as pessoas tivessem que fazer a sua vida em carruagens e carroças puxadas por cavalos, a quantidade de estrume nas cidades, o cheiro e os problema de higiene pública seriam enormes. Realizou-se até uma conferência mundial que reuniu especialistas em planeamento urbanístico de todo o mundo, para tentar perceber o que poderia ser feito para dar a volta ao problema.
A conferência devia ter durado dez dias, mas ao fim de três dias acabou porque não havia solução. Deram todas as voltas que podiam à cabeça, mas não encontraram maneira de descalçar a bota ou de desfazer o nó górdio.
Depois apareceu o automóvel e as pessoas esqueceram-se que isto alguma vez tinha sido um problema tinha sido um problema. Mas, claro, também não pensaram no problema que estavam a criar com a construção do automóvel.
Quando as pessoas ficam muito espantadas como é que determinadas soluções ainda não são aplicadas, é porque alguém fez a matemática, as continhas todas, e não compensa, não dá lucro
Porque motivo demoramos tanto tempo a aplicar o conhecimento que temos à prática?
Porque a economia e o capitalismo são implacáveis. Há muitas ideias que são muito boas, mas que não têm viabilidade económica. Quando as pessoas ficam muito espantadas como é que determinadas soluções ainda não são aplicadas, é porque alguém fez a matemática, as continhas todas, e não compensa, pura e simplesmente não dá lucro.
Uma das invenções mais bonitas que vi nos últimos anos é a folha artificial, que se coloca num tanque com água e, quando a luz incide no recipiente, começam a sair bolhinhas, que é o hidrogénio e o oxigénio. Portanto, separa a água e permite produzir hidrogénio, um combustível limpo, e água potável.
Foi constituída uma startup, que fez tudo o que podia, chegou ao fim e fechou. Porque não tinha viabilidade económica. Por algum motivo, em comparação com o que é state of the art [o mais avançado dos nossos dias], não compensa. A maior parte das grandes descobertas que não chegam ao mercado é simplesmente porque alguém fez o esforço para ganhar dinheiro. Só porque é bom para o ambiente, infelizmente, ninguém vai aplicar.
Que potencial tem a química enquanto motor de negócios?
Uma das coisas que digo sempre nas palestras que faço é que a química é um motor de negócio fantástico. E explico a história do tremoço. Quando começar a olhar para o lixo com olhos de químico, começo a descobrir naquele lixo moléculas. E só preciso de fazer uma ponte para uma molécula de valor acrescentado para conseguir o sonho de toda a gente: pegar no lixo e vendê-lo por 50 euros o grama.
Que é aquilo que a nossa empresa [Spartax, com sede em Oliveira do Hospital] faz: aproveitar a água dos tremoços, algo considerado lixo e que de qualquer maneira provavelmente pelo lavatório abaixo, para gerar um produto que se vende mais caro do que o ouro. E este princípio pode aplicar-se a quase tudo, só é preciso ter viabilidade económica. Mas aí a imaginação é que conta, porque o lixo é tão variado que não há razão para não tentar.
Há muitos anos havia uma telenovela brasileira em que um homem tentava encontrar um novo tipo de combustível, a urinolina, um combustível feito com chichi.
No livro "Como Desvendar o Quebra-Cabeças da Origem da Vida?", 27 perguntas sobre a vida e o Universo que sempre quis fazer a um químico, essa é uma das perguntas, é possível ter um carro movido a água ou não?
O que também levantaria outras questões, porque a escassez de água no mundo, e Portugal é um exemplo disso, é um problema gravíssimo. Há imenso tempo que se fala na dessaliniação da água e parece que agora vai finalmente avançar no Algarve.
Sabe que posso orgulhar-me de contribuído ter trazer o tema da dessalinização para a praça pública. Quando a revista "Visão" celebrou os seus 30 anos, fez um trabalho "30 anos, 30 visões" e convidou especialistas das mais diversas áreas para escolher um tema e apresentar essa visão para Portugal num minuto.
Pensei no que iria apresentar como visão e tive montes de ideias, mas eram todas cliché: Portugal devia criar uma carreira de investigador ou devia ter um sistema de investigação determinado. Mas isso não era uma visão, eram medidas. E comecei a perceber que, na verdade, faltam hoje no mundo pessoas com visão.
E porquê?
Falta visão porque as pessoas se prendem muito com o dia a dia, o curto prazo, o que importa é o imediato. Ter visão implica sermos capazes de nos transportar para um futuro alternativo, em que já estamos num patamar diferente daquele em que estamos hoje.
A falta de visão impede-nos de pensar no que vai ser o mundo com muitos carros e nos problemas que isso vai gerar, uma coisa que posso fazer já para daqui a 50 anos não ser confrontado com essas questões. Isso requer visão.
Mas ia dizer qual foi a sua visão para Portugal e interrompi...
A visão foi que Portugal devia tornar-se numa potência mundial de produção de água por dessalinização com energias renováveis.
O problema do mundo é um problema de falta de visão, falta de liderança. Também porque a liderança está um bocadinho presa aos ciclos políticos
O tema da dessalinização é recorrente, mas há sempre um travão, mesmo que isso nos venha a custar mais caro do que não fazer.
Pois, é a tal falta de visão. O problema do mundo, em certa medida, é um problema de falta de visão, falta de liderança. Também porque a liderança está um bocadinho presa aos ciclos políticos e à ideia de "quero ser eleito daqui a quatro anos, não posso fazer coisas muito radicais".
Mas ainda acho que quando se tem visões, e realmente se é capaz de transportar mentalmente uma realidade para o futuro, qualquer visão é boa. Então o que é preciso fazer é inspirar as pessoas para aquilo, não ser só o que eu tenho na minha cabeça e ser um objectivo de todos, um desígnio colectivo. O problema das coisas é que se fala delas mas nunca se tornam ideias de toda a gente.
Voltando à urinolina, toda a água que está dentro de nós de uma forma ou de outra foi consumida de fora. Portanto, o máximo que se pode conseguir com isso é um bocadinho de economia circular, de reciclagem das coisas. Mas já se faz isso com as estações de tratamento de águas residuais. Que continua a ter má fama, mas está a melhorar.
Quando estava a estudar no Técnico, tínhamos uma disciplina chamada Química Analítica II, em que fazíamos uma visita de estudo à ETAR de Alcântara - agora chama-se Fábrica da Água, fizeram um rebranding, um bocadinho de marketing. E nós íamos lá para ver o processo que aplicavam, para aprender.
Quando se entra nos primeiros tanques, e eles avisam, o cheiro é uma coisa nauseabunda, dos poucos momentos em que a pessoa realmente sente que vai vomitar na hora. Mas depois chega-se ao final e a guia diz "aqui está a torneira de onde sai a água tratada". E a professora diz, meninos, todos com os tubos de ensaio a recolher amostras, porque o objectivo final era analisar o teor em sódio, magnésio e potássio e outros iões.
E lembro-me de a técnica que nos estava a orientar, muito terra-a-terra, perguntar porque é que estávamos a fazer aquilo. "Mas vocês não vão encontrar aí nada", disse. Como assim? "Essa água é mais pura do que a água que sai da torneira em casa". Isto em 2002 ou 2003. Aquilo ficou-me na cabeça.
Agora, quando faço um fast forward, é que percebo. Mas, veja bem, vinte anos depois continuamos a dar prémios à Câmara de Lisboa porque usa aquela água que a senhora disse que é melhor do que a da torneira para irrigar campos de golfe ou parques. Com o passar do tempo percebi que o que falta é o click para as pessoas serem capazes de aceitar que quando abrem a torneira está a sair o que foi o chichi do vizinho de cima. É muito difícil convencer o público de digerir esta ideia, e digerir é a palavra certa. É mais fácil convencer o público quando já não há alternativa.
É como a dessalinização, não é necessária porque ainda temos água. Mas se um dia quando abrirmos a torneira não sair nada, ou quando recebermos a informação que a partir de agora não há água depois da meia-noite aos sábados, terças e quintas, aí, de repente, vamos começar a pensar naquela ideia de Portugal poder ser uma potência mundial de produção de água por dessalinização com energias renováveis. Mas já iremos tarde.
Visão também é antecipar primeiro e ser mais rápido do que os outros. Já poderíamos estar dez passos à frente.
É diretor do Laboratório do Christian Doppler, da Universidade de Viena. O que faz exatamente?
Somos um grupo de investigação muito diverso e versátil, fazemos um bocadinho de tudo. O Laboratório do Christian Doppler tem uma colaboração com uma farmacêutica multinacional, não sei se posso dizer o nome, as pessoas podem ser levadas a pensar que é propaganda barata, mas a empresa não precisa de mim para fazer propaganda, tem um marketing muito bom.
Mas tentamos, posso já dizer que com sucesso mitigado, mudar o processo de descoberta e desenvolvimento na farmacêutica, que é um processo longo, demorado e prolongado, muito baseado na tentativa/erro, que não segue uma lógica cientificamente razoável, tendo em conta aquilo que se conhece hoje sobre a maneira como as moléculas interagem.
Temos uma abordagem diferente, baseada na entropia. A entropia (ou desordem) é uma coisa que toda a gente percebe quando tem crianças. A melhor maneira de perceber é esta: arruma-se o quarto da criança, fecha-se a porta com a criança lá dentro e volta-se mais tarde. O resultado é a manifestação da entropia!
A entropia tem um papel muito importante, mas que ainda não está bem compreendido na forma como as moléculas interagem com receptores biológicos. No fundo, uma molécula é um bocadinho como uma criança de quatro ou cinco anos, naquela fase em saltam no sofá e têm muita energia.
As moléculas também são assim, podem existir em estados diferentes, estar a saltar no sofá, trepar para cima de uma cadeira ou estar a dar cabriolas no chão. Então tenho de lhe reduzir os graus de liberdade, dizer-lhe, como se fosse uma criança, tu agora vai ficar aqui sentada sem te mexeres, vou como que congelá-la na forma que é a melhor para entrar num determinado receptor, por exemplo, para reduzir a dor de cabeça.
Isto é como tentar ter criancinhas que por si só tenham menos liberdade de ação para depois nos custar menos adotar a atitude necessária. Esta perda de liberdade custa muita energia ao sistema. Ou seja, se tivermos uma molécula que por si só não se mexe muito, a fatura a pagar é mais reduzida.
O que é que isso significa?
Que poderemos um dia chegar a um ponto em que em vez de demorar dez ou 15 anos no processo que demora até descobrir e a validar uma molécula - e a fase inicial é a fase da química, em que se fazem mais de 100 mil moléculas à procura da molécula certa. Se calhar, em vez de ter de fazer 100 mil moléculas, conseguia reduzir esta fase a fazer dez. Mas o problema tem muitas dimensões, e é por isso que está a ser difícil. Ainda não conseguimos provar e validar o nosso conceito.
Esta é uma parceria público-privada, por cada euro que a empresa privada mete, o governo mete outro euro, gera-se facilmente um grande volume de recursos financeiros, o que é muito importante para uma investigação.
Como olha para a investigação em Portugal?
Com optimismo.
Acho que há muita gente a fazer bom trabalho e com boa vontade. O que talvez falte, lá está, é visão do que é que poderia ser o nosso ecossistema de investigação, o que podíamos ter como qualidade científica que não temos e como poderíamos lá chegar. A solução passa também por mais recursos, mas não só. Acho sempre que é preciso optimizar processos e fazer melhor com aquilo que se tem.
Mas sim, há muita gente capaz de fazer grandes projectos e valor internacional, pessoas que ganham aquelas bolsas do ERC, há sempre portugueses na lista, mas para um país do tamanho do nosso podiam ser mais. Mas, para serem mais, tinha de se olhar para a investigação científica de forma diferente.
O primeiro passo já se deu, que é permitir à população ganhar o à vontade com a ciência que é saudável para um país desenvolvido, do século XXI. Isso foi feito com nota dez. As pessoas estão muito sequiosas de informação.
Um dia recebi uma mensagem de um senhor que me dizia que uma das grandes dificuldades da engenharia era transportar água para um prédio de dez andares de baixo para cima. E falava nas sequóias gigantes, com centenas de metros, que transportam fluídos no seu interior a distâncias às vezes equivalente a um arranha-céus. E perguntava porque é que não se conseguia replicar isso. Até pode não dar nada, mas só o raciocínio é fascinante. Olha para a natureza, vê como a natureza faz e extrapola: se eu fosse capaz de perceber como a natureza faz, podia aplicar isto neste contexto.
O passo seguinte seria os poderes decisórios dar a Portugal a ciência que um país com esta população precisa e merece.
o ensino em 2023 é igual ao que era em 1960, com pequenas mudanças. Não me venham convencer que o ensino digital é a grande revoluçãoEra preciso reinventar a maneira como se ensina
Não seria possível, pelo menos na ciência, o ensino estar um passo à frente?
É como toda a escola. Eu adoro dar aulas, mas tenho de reconhecer que a escola, a universidade, o ensino em 2023 é igual ao que era em 1960, com pequenas mudanças. Não me venham convencer que o ensino digital é a grande revolução. Acho que era preciso reinventar a maneira como se ensina. Mas para isso também é preciso visão.
Qual o papel da Inteligência Artificial em tudo isto de que temos estado a falar?
Essa ainda tem que me convencer que merece o título de “inteligência”. Para já vejo uma capacidade de resumir dados, de apropriar conceitos e de deduzir e copiar tendências. Mas nunca copiaria “de cruz" um texto gerado pelo ChatGPT, para dar um exemplo. Precisa de supervisão e de muito sentido crítico. Acho que o perigo é maior do que o ganho pontual.
Vamos aos mitos da química. As vacas é que poluem, os piolhos preferem os ruivos, as melgas picam mais os que são mais doces...
Gosto desse. É verdade que umas pessoas são mais picadas por mosquitos do que outras, mas não tem nada a ver com o açúcar que comem.
As melgas e os mosquitos dependem muito de serem ou não capazes de encontrar outros organismos vivos aos quais possam ir chupar um bocadinho de sangue, têm mecanismos para sentir onde estão organismos vivos com bastante sangue. As razões têm muito mais a ver com detetar coisas como quanto CO2 é que a pessoa liberta, qual é a temperatura corporal que tem ou até a cor da roupa que está a usar e o tipo de roupa.
Se fosse congelado hoje e acordasse daqui a 300 anos ou 500 anos, qual a primeira coisa que ia querer saber?
Imediatamente? Ainda há seres humanos? Ainda não conseguimos dar cabo disto tudo? Em que planeta estou e será que é seguro respirar fora desta cápsula? Porque confesso que às vezes fico com bastante medo do que possa realmente acontecer.
O filme que mais me marcou nestes últimos tempos foi o Don't Look Up [Não Olhem Para Cima]. Que é assustador na óptica de: há pessoas que estão lá em cima a tomar conta das coisas, uns imbecis de primeira, que não têm visão nenhuma e estão é a tentar salvar o seu rabinho, enquanto o coletivo está tão absorvido por distrações como os TikTok e os likes, que se esquece do que é essencial. Depois, e acho que esta é a metáfora do Covid, vem aí uma catástrofe, nós, cientistas, detetámos isso e estamos aqui a avisar-vos, e as pessoas todas na mesma, sem fazer nada.
É uma comédia - tem a Meryl Streep a fazer o papel de Donald Trump -, mas faz-nos pensar: será que somos assim tão burrinhos? Se não fossemos aquele senhor não tinha conseguido 70 milhões de votos.
Há uma pergunta que costumo fazer aos político, "em que ocasiões mente?", e a resposta é quase sempre "só mentiras piedosas". Fiquei a saber que mentimos em média entre duas a 80 vezes por dia. Esta e uma questão da biologia ou da química?
Não sei bem qual é a química que está envolvida na mentira, mas já me deu uma ideia muito boa para pesquisar: a química da mentira. Isto é giro.
Uma anedota sobre químicos, tem?
Dois químicos entram num bar no Reino Unido. Ao balcão, o primeiro pede "a glass of H2O" [água]. O segundo pede "a glass of H2O, too [também, que em inglês tem o som de dois (two)]. O primeiro bebe e tudo bem, o segundo bebe e morre. É que trouxeram-lhe H2O2, que é água oxigenada. É daquelas piadas secas dos químicos.
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